Enquanto a sociedade busca uma resposta à ameaça das mudanças climáticas, grande parte dessa atenção está voltada para maneiras de gerar mais energia renovável e para a “eletrificação” do setor de transporte. Mas há muitos outros desafios e oportunidades para a ação climática, incluindo aquele que envolve estratégias para lidar com as emissões de gases de efeito estufa provenientes dos arroto dos bovinos.
Embora possa parecer absurdo ou cômico, é, na verdade, um tema importante e os cientistas de universidades e institutos de todo o mundo que se dedicam a encontrar soluções para o agro. Existem bactérias que vivem no complexo sistema digestivo de vacas e outros ruminantes que podem gerar metano, um gás que o animal então arrota para a atmosfera. O metano tem de 18 a 24 vezes o efeito de aquecimento do dióxido de carbono nos primeiros 10 a 12 anos após sua emissão e é responsável por cerca de 30% do aquecimento global, desde a revolução industrial. A conta é que 60% das atuais emissões globais de metano são provenientes de atividades humanas e os arrotos das vacas representam 28% dessa carga.
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A proteína animal desempenha um papel extremamente importante na saúde alimentar humana, como foi destacado em uma nova publicação daFAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) baseada na revisão de 500 estudos científicos sobre esse tema. Por isso ele interessa tanto às agências agrícolas, reguladores, cientistas de ONGs ambientais (Environmental Defense Fund), representantes da indústria de rações para animais, indústria de alimentos e, claro, aos produtores de carne bovina e laticínios.
Pesquisadores buscam tornar essa produção de laticínios e de carne bovina mais amigável ao clima. Não por acaso, elas são uma área muito ativa para pesquisa aplicada, como a Universidade da Califórnia, em Davis, o Departamento de Agricultura da Califórnia e o Clear Center, dedicado à pesquisa de gases de efeito estufa relacionados à pecuária.
No Canadá, um o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Lethbridge é referência. No Brasil, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) promove estudos, como por exemplo o da unidade Agrossilvipastoril que está mensurando a emissão de metano entérico por bovinos em diferentes sistemas produtivos de criação de gado a pasto em Mato Grosso. O estudo serve para fechar o balanço de emissões de gases causadores de efeito estufa na ILPF (integração lavoura-pecuária-floresta).
O progresso nessa questão complexa exigirá a cooperação entre inúmeras partes interessadas. Atualmente, alguns pontos começam a ser consenso:
- As soluções para as emissões de metano entérico serão a continuação de uma história já positiva sobre como a indústria pecuária tem demonstrado o compromisso em lidar com seu impacto nas mudanças climáticas.
- No entanto, o fenômeno dos arrotos dos bovinos é muito complicado e o esforço de pesquisa terá que lidar com muitas variáveis, desafios de medição e a necessidade de entender todos os efeitos planejados e não planejados de quaisquer soluções potenciais.
- Um desafio adicional é que as soluções mais prováveis podem acabar em uma espécie de território desconhecido do ponto de vista regulatório, uma vez que os quadros de agências dos países e os mandatos codificados não foram projetados para ações nesse sentido.
- Provavelmente haverá um custo adicional para qualquer solução e diversos mecanismos estão sendo considerados para cobrir isso de uma forma que ainda permita um tipo de adoção generalizada e que é necessária.
- Qualquer sucesso nesse empreendimento exigirá a construção e manutenção da confiança de todas as partes envolvidas, mas especialmente dos consumidores e produtores de gado.
Construindo sobre o progresso anterior
Vários grandes produtores colocam algumas questões importantes nesta discussão. Brasil e Estados Unidos, por exemplo, têm se posicionado entre as entre as regiões mais eficientes quando se trata da produção de proteína animal, e isso se traduz em uma menor “intensidade de carbono” por quilo de carne ou produto lácteo.
Grande parte da sustentabilidade na pecuária foi alcançada por meio do melhoramento genético e eficiência alimentar. Reduzir o tamanho do rebanho nessas regiões eficientes seria contraproducente no contexto da crescente demanda global por proteína. Mesmo assim, as indústrias da carne e do leite estão comprometidas com reduções adicionais na pegada de carbono. Outra questão de gases de efeito estufa para a produção animal é o metano associado aos dejetos, o que é particularmente problemático para laticínios ou gado de corte criados em confinamento.
A melhor solução nesses casos é a digestão anaeróbica, que transforma os dejetos em GNV (gás natural renovável). Na Califórnia, por exemplo, ela é uma tendência importante para a indústria de laticínios como um todo. Recentemente, foram instalados 131 digestores com a ajuda de US$ 432 milhões (R$ 211 milhões na cotação atual) em fundos correspondentes, reduzindo as emissões de metano em 2,3 milhões de toneladas métricas em equivalentes de CO2. Isso é um ótimo começo em direção à meta da Califórnia de reduzir as emissões em 40% em relação aos níveis de 2013 até 2030. Soluções para as emissões de metano entérico representarão um próximo passo, construindo sobre esses outros avanços.
Desafios para medir e avaliar a alimentação animal
Os bovinos têm o “superpoder” de consumir uma ampla variedade de alimentos e transformá-los em comida humana nutritiva. E eles podem crescer com alimentos que contêm muita celulose – uma fonte de energia armazenada que os humanos e a maioria dos outros animais não conseguem digerir. Ou seja, a criação de gado a pasto, como ocorre para 95% dos 190 milhões de bovinos no Brasil, chama a atenção do mundo.
Mas nos EUA é diferente. Por exemplo, em 2019, o gado leiteiro da Califórnia derivou 2,13 milhões de toneladas de nutrientes apenas dos sete principais subprodutos em sua alimentação, sendo a maior quantidade proveniente das cascas de amêndoa. Portanto, as dietas das vacas leiteiras são extremamente diversas e, dependendo do que comem e até mesmo de sua genética, pode haver diferenças em seus microbiomas intestinais.
Tudo isso precisa ser levado em conta nos testes e na avaliação de aditivos alimentares destinados a reduzir a produção de metano. A medição desse metano também é muito desafiadora, pois a produção varia ao longo do tempo. Assim, a pesquisa sobre suplementos alimentares potenciais para a redução de metano entérico pode ser lenta e cara, exigindo apoio público e privado.
Também não se trata apenas do metano – qualquer uma dessas soluções deve ser avaliada em termos de seus efeitos na produtividade (leite, carne) ou na saúde geral dos animais. E pode haver efeitos na eficiência da recuperação de energia por meio do processamento de dejetos em digestores anaeróbicos. Existem muitos candidatos promissores para aditivos alimentares que reduzem o metano, mas ainda há muito trabalho a ser feito para avaliá-los completamente.
Um território regulatório inexplorado
As indústrias de carne bovina e laticínios são altamente regulamentadas em relação aos padrões de qualidade e precauções de segurança alimentar. Os ingredientes de ração animal e os medicamentos veterinários também são altamente regulamentados.
No entanto, o tipo de aditivos alimentares que são especificamente destinados à redução de metano não se encaixam realmente nas regras e estruturas existentes. Nos EUA, dizem os produtores, eles nem justificam o alto custo e as lentas cronologias se forem tratados como “medicamentos” pela FDA (Food and Drug Administration, órgão que regula o uso de medicamentos nos Estados Unidos), que já discute internamente possíveis iniciativas legislativas em andamento em busca de uma “modernização” do sistema.
Quem vai pagar a conta da produção amigável para o clima
Quando as soluções estiverem comercialmente disponíveis, não seria justo nem prático esperar simplesmente que os produtores de gado arquem com os custos, a menos que a administração também leve a ganhos de produtividade – algo imaginável, mas certamente não garantido.
Se produtos destinados a carne ou laticínios “inteligentes para o clima” se tornarem apenas um produto premium para os consumidores mais motivados, isso não seria suficiente para promover uma mudança significativa do ponto de vista da ação climática.
Uma opção poderia ser por meio do mercado de compensações de carbono, e outra poderia estar ligada aos compromissos de pegada climática de várias empresas de bens de consumo, mas não está claro como esses mecanismos possibilitariam a adoção no nível do produtor. Um aumento geral no custo desses produtos não seria equitativo em nível social, especialmente para fontes tão importantes de nutrientes. A solução econômica é claramente um debate em curso neste momento.
Tirando o “marketing de ausência” da agenda
Em última análise, a implementação bem-sucedida de uma solução para o metano entérico exigirá um alto grau de confiança por parte daqueles cuja renda depende da saúde e produtividade de seus animais e por parte dos consumidores que precisam acreditar que os benefícios climáticos são reais e que os produtos finais são seguros para eles e suas famílias.
Mesmo assim, o processo de construção da confiança ainda exigirá transparência e comunicação eficaz sobre as parcerias público/privadas em vigor e sobre a necessidade de desenvolver um caminho regulatório racional e oportuno. Deve-se ter cuidado com a prevalência do “marketing de ausência” do sistema alimentar, o que demonstra como é mais fácil assustar os consumidores do que educá-los.
Também existe muita mensagem negativa sobre a pecuária bovina vinda daqueles que estão comercializando substitutos de laticínios e de carne. Isso muitas vezes envolve vantagens climáticas implícitas que geralmente não são respaldadas por análises rigorosas do ciclo de vida ou uma consideração completa das vantagens únicas associadas à biologia ruminante. O marketing de alimentos relacionados ao clima precisa de muito mais conversas de qualidade com múltiplas partes interessadas, como é para a questão dos arrotos bovinos.
*Steven Savage, colunista da Forbes EUA, é biólogo pela Universidade de Stanford e doutor pela Universidade da Califórnia, em Davis (tradução: João Pedro Isola).