O que faz um queijo ser campeão em concurso? No final da semana de 11 a 15 de abril, dois queijos saíram empatados na avaliação dos 15 jurados supremos do 3º Mundial do Queijo no Brasil, que aconteceu no Teatro B32, na avenida Faria Lima, em São Paulo. Quem estava na plateia do teatro e acompanhava as notas, uma a uma, quando cada jurado levantava sua plaquinha com um número, fazia contas rapidinhas, tentando comparar com as placas do queijo anterior e, mentalmente, ranquear as possibilidades. Entre especialistas e aspirantes, a plateia era um frisson, aquela vibração comovente que toma um indivíduo ou um grupo de pessoas.
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O desempate demorou algumas horas e o campeão somente foi anunciado na noite da sexta-feira (13), em uma cerimônia que sagrou campeão o brasileiro Morro Azul, produzido pela Vermont Queijos Especiais, de Pomerode (SC), criado pelos irmãos Juliano e Bruno Mendes, e que tem feito barulho nas redes sociais nesta semana. Ele deixou para trás o suíço Le Gruyère AOP Réserve 14 meses, da Fromagerie du Château. Foi uma queda de braço entre um “queijo de leite de vaca com casca mofada, massa mole, com notas amanteigadas e lácteas predominantes, e um queijo queijo prensado (cozido), de vacas criadas em grandes altitudes, produzido a partir de leite cru, mais salgado e seco”, como eles se autodefinem.
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“Foi um dos dias mais especiais das nossas vidas profissionais. Em uma disputa muito acirrada com o queijo que mais admiramos no mundo, o Gruyère suíço”, disse Bruno. “O queijo Morro Azul tem uma história muito especial para nós. Foi nosso primeiro queijo autoral, com receita criada em Pomerode.”
Bruno também foi um dos 15 jurados supremos do concurso do qual foi campeão. Que acontece assim: na plateia, e ao vivo, cada um deles defende um finalista tirado da sua mesa geral de degustação (onde estão cerca de 20 produtos). Daí, todos os demais jurados provam o lácteo, que pode ser um queijo, um iogurte ou um doce de leite, e levantam uma placa com sua nota. Claro, nesse exato momento, um não vê a nota dada pelo outro. Esse privilégio fica com a plateia. E sim, o queijo de Bruno e seu irmão não saiu de sua mesa de degustação, ou seja, foi outro jurado que o defendeu.
Além de Bruno, entre os avaliadores supremos estavam nomes como o inglês Jason Hinds, da Neal’s Yard Dairy; o alemão Christtoph Presseur, hoje no Canadá e um dos diretores do International Cheese Council no país; o icônico parisiense Laurent Dubois, que foi o presidente da comissão julgadora, e outros nomes do olimpo queijeiro global, entre eles o mestre Dominique Bouchait, que além de jurado supremo comandou o concurso de maior queijista do Brasil, e Arnaud Sperat-Czar, que comandou o concurso de melhor queijeiro e que é o presidente da Fondation pour la Biodiversité Fromagère, entidade que tem como fundador, justamente Dubois.
“Impressiona os sabores dos queijos brasileiros, pela sua composição. É inspirador estar no Brasil neste momento”, disse Dubois. Presenças deste calibre somente são possíveis porque a SertãoBras, a associação brasileira de produtores artesanais com cerca de 250 associados de 17 estados, tem como parceira no Mundial do Queijo a Guilde Internationale des Fromagers, presente em 40 países e uma das maiores associações globais de queijeiros.
No grupo dos jurados supremos também estavam brasileiros, como John Braga, radicado em Nova York, certificado pela Sociedade Americana do Queijo e atualmente representante na Food Matters Again, e o professor Antonio Fernades, pesquisador de queijos da Universidade Federal de Viçosa (MG) e um dos fundadores do grupo de pesquisa Inova Leite, entre outros nomes. Dos 1.900 produtos concorrentes, o Mundial do Queijo no Brasil premiou 598 queijos e produtos lácteos, entre eles 99 com medalhas máximas Super Ouro, 149 com medalhas Ouro, mais 150 Pratas e 200 Bronzes.
Campeões a caminho do melhor queijo
Para além dos grandes campeões, há uma legião de queijeiros que estão promovendo uma drástica mudança no hábito de apreciar os bons aromas e sabores possíveis a partir do leite ordenhado. É um movimento que vai na mesma toada dos cafés, azeites, cachaças e vinhos, este mais adiantado na tarefa. O fato é que há uma procura intensa pela definição de novos terroirs, termo de origem francesa que define uma extensão limitada de terra para compreender características de um produto específico, no caso do queijo, a sua microbiologia, e que leva à formação de um mercado consumidor dedicado.
“O leite do Brasil tem uma microflora, uma microbiota, ele tem bactérias que são muito mais ricas do que o que a gente vê na França, hoje. Por causa do pasto, do clima, do solo, das árvores, da fauna. Isso se chama terroir. É tudo isso junto que dá uma tipicidade para o queijo brasileiro”, diz Débora Pereira, diretora geral da SertãoBras e coordenadora do Mundial do Queijo no Brasil.
A ex-engenheira mecânica que trabalhou por uma década na indústria automobilística, Ana Franceschini, 42 anos, e que deu um cavalo de pau na estrada da vida para colocar de pé a sua Queijaria da Estância, em Ibitinga (SP), levou pela primeira vez um produto à disputa e saiu dela com uma medalha para seu queijo de casca natural. “O queijo sempre fez parte da família. Não sou a primeira produtora, minha avó e tias sempre fizeram queijos para consumo em casa, mas nunca de forma comercial”, afirma Ana.
Na parte da propriedade herdada do avô, de 34 hectares, ela tem apenas seis vacas em lactação da raça jersey criadas a pasto, com um leite rico em proteínas e gorduras, os chamados sólidos do leite, e quer aumentar para 15 novilhas em lactação ainda neste ano. São 50 litros da ordenha diária destinados aos seus queijos crus, para os quais ela foi buscar ajuda na Associação Brasileira de Criadores da Raça Jersey, entidade que lançou um selo de certificação para o leite da raça.
“Eu me associei porque os animais são registrados, têm pedigree e posso contar com o apoio técnico da associação”, diz ela. “Vão me ajudar a chegar com segurança em, no máximo, 400 litros de leite por dia, porque quero manter uma produção artesanal.” A queijaria da Ana começou a funcionar de fato, com CNPJ, no dia 1º de março deste ano. Ela tem seis queijos registrados na inspeção municipal e está em busca da estadual e do Selo Arte, criado com a chancela do governo federal em 2018 para autenticar a qualidade de produtos artesanais.
Mas Ana já tem estrada. Ela conta que largou tudo em Tatuí (SP), onde estava a fábrica da Ford, e começou a estudar queijos em 2020, durante a pandemia de Covid-19, após a morte do pai e para não deixar a mãe sozinha. Foram cursos on-line, depois os presenciais e com a conclusão na França, em 2022, o da escola Mons Brasil, ligado à SertãoBras e que tem como uma das professoras a Débora Pereira. “A Ana foi minha aluna. O queijo, ela começou a desenvolver na formação escolar e depois foi lapidando. Investiu nela e nas salas de cura. É preciso ter paixão e convicção para ir até o fim, porque desenvolver um queijo é um projeto que pode demorar de dois a três anos”, diz Débora.
Do Amazonas ao Rio Grande do Sul
Entre Autazes, município de 40 mil habitantes às margens do rio Preto de Pantaleão, no coração da Amazônia, e a capital paulista, são 2.986 km em linha reta, segundo mapas de satélite (não adianta procurar no Google Maps), porque não há estrada que ligue os dois pontos. A queijeira Arlene Figueiredo tomou o avião em Manaus para participar do Mundial de Queijo no Brasil – e pode ser que São Paulo seja apenas um pit stop. Ela levou para casa duas medalhas de bronze, uma para o queijo coalho e outra para a ricota, ambos de leite de búfalas.
Arlene é a quarta geração de uma família de criadores de búfalos e bovinos. O nome Queijaria D’Lourdes, que ganhou forma legal em 2019 com o selo de inspeção estadual, é uma homenagem à mãe Maria de Lourdes e fruto da assessoria do Sebrae – Serviço de Apoio à Pequena e Média Empresa. O sítio São Sebastião, tocado pela família, tira 450 litros de leite por dia (60% de vaca e 40% de búfala).
Para Arlene, São Paulo foi uma provação esperada. Os queijos da propriedade são bi-campeões (2019 e 2022) do Concurso de Queijo Coalho realizado na exposição agropecuária de Manaus. “Em 2019, o Sebrae nos convidou para mostrar nossos queijos em Araxá (MG). Não concorremos, mas foi uma pena”, afirma ela. “E pensei: agora, só vou para concorrer”. Arlene se refere ao 1º Mundial do Queijo no Brasil, um evento que nasceu para ser itinerante e que foi realizado no município mineiro com cerca de 800 queijos e lácteos na disputa. As duas últimas edições do Mundial foram em São Paulo.
Entre as medalhas de bronze, mais duas inéditas e também esperadas, foram para o outro extremo do país: Santana do Livramento (RS), na fronteira com o Uruguai. Somente para constar, o município gaúcho está a 3.058 em linha reta de Autazes.
As medalhas foram conquistadas pela Terroir da Vigia, que produz o queijo de leite de ovelha denominado Etchêkoa. Os queijos premiados foram o de leite cru e o de leite pasteurizado, desenvolvidos há cerca de três anos. Graciela Bittencourt, que trocou o jornalismo pela gastronomia, conta que o projeto começou em 2016. “Começamos a comprar ovelhas de descarte e alugamos uma queijaria para desenvolver o produtos”, diz ela. Hoje, o projeto já conta com uma queijaria própria, construída há um ano e meio.
A produção de leite do rebanho da Terroir da Vigia é de cerca de 350 litros por semana. Para dar conta da demanda, atualmente a queijaria também vem processando o leite de propriedades vizinhas à criação. Com seus queijos autorais, no ano passado, Graciela conquistou seis medalhas em sua primeira participação no 6º Prêmio Queijo Brasil, realizado em Santa Catarina: foram duas de ouro, duas de prata e duas de bronze. Em tempo, assim como Arlene, de Autazes, Graciela, da região da Campanha Gaúcha, também estava no 1º Mundial do Queijo, em Araxá.