Durante o voo que a levava à Índia para receber o prêmio 101 Top Global Diversity & Inclusion, promovido pelo World HRD Congress em 2019, a consultora de diversidade Liliane Rocha teve bastante tempo para pensar na trajetória que a levou até ali. Não era a primeira vez que a especialista era reconhecida internacionalmente por seu trabalho, e certamente não seria a última – este ano, Liliane ganhou novamente o prêmio indiano, mas não pode buscá-lo por conta da pandemia -, mas uma viagem extensa como essa é uma ótima oportunidade para pensar na vida.
Ao conversar com a Forbes, na semana passada, Liliane relembrou os caminhos que a fizeram referência no setor de diversidade e sustentabilidade para empresas. “Eu parei de falar sobre isso por um tempo porque as pessoas ficavam muito impressionadas”, conta. E não é pra menos. Nascida em 1981, em São Paulo, Liliane vivenciou o cotidiano de uma grande cidade de forma muito dura. Com a mãe, morou em barracos com chão de barro, passou um tempo dormindo em uma rodoviária e precisou pedir dinheiro nas ruas. Foi uma primeira infância marcada por preocupações básicas, como saber se teria almoço ou jantar.
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Aos nove anos, quando passou a morar com o pai, a vida tomou um rumo diferente. “Ele não era um cara rico, mas, a partir daquele momento, eu tirei da frente essas preocupações que uma criança não deveria ter. Sempre estudei em escola pública, mas ali eu comecei a sedimentar minha paz para seguir meus estudos. Uma paz que reverbera até hoje.”
E foi a partir dessa calmaria que Liliane construiu as bases para, em 2003, ingressar no curso de Relações Públicas da Faculdade Cásper Líbero. Embora diga, brincando, que guarda uma certa frustração por não ter passado no vestibular da Universidade de São Paulo (USP), reconhece que a graduação numa instituição particular lhe deu insights importantes para seu futuro na diversidade. E isso aconteceu quase que imediatamente – assim que percebeu a falta de representatividade, já que era uma das únicas negras na sala de aula.
Liliane conta que a questão ganhou ainda mais força no seu primeiro estágio, na empresa de eletroeletrônicos Philips. Ela foi uma das primeiras da classe a estagiar, e foi no meio desse processo seletivo, quando a transferiram para a área de sustentabilidade – e não de comunicação -, que ela conectou-se fortemente às temáticas sobre as quais construiu sua carreira. “Disseram que fazia mais sentido no meu caso, por se tratar de um departamento que cuidava de questões ambientais, sociais, desigualdade, renda… Isso, em 2005, era novidade. Eu lembro de ter pensado: ‘E vocês vão me pagar para fazer isso? Eu topo’”, diz, rindo. “Aprendi sobre sustentabilidade e diversidade em uma empresa que estava à frente do seu tempo.”
Além do “boom” no aprendizado, como ela mesma cita, foi naquele ambiente que Liliane aprendeu, na prática, o que era desigualdade de renda. “Até aquele momento eu nunca tinha convivido com pessoas com rendas muito acima da minha. Eu sou muito falante, mas não conseguia manter conversas com as pessoas no ambiente profissional porque os lugares, os amigos em comum, os hobbies… era tudo muito diferente.” Mais do que isso, Liliane se deu conta, de uma maneira mais ampla, da desigualdade racial. “Na minha família, na escola pública, no ônibus, no metrô, na feira, em todos esses lugares têm negros. Isso nunca tinha sido um ponto para mim. Até que começou a ser.”
Sua visão sobre diversidade foi sendo desenvolvida em dois âmbitos da vida: na percepção de quem era como ser humano e em sua área de atuação, na qual ia ganhando projeção. Depois da Philips, passou pelo Banco Real-Santander e pelo Walmart, até chegar em uma mineradora – que foi um divisor de águas em sua carreira.
Mulher, negra e lésbica, Liliane se viu em um ambiente ao qual não estava acostumada até então. Ser mulher negra já categorizava dois marcadores identitários muito fortes, principalmente em altos cargos. “O pensamento deles é: um estagiário negro é fofo. Um analista? Que lindinho. Um líder negro na mesma sala que eu discordando do que eu estou falando?”, destaca.
“Foi nessa empresa que eu comecei a ter a noção de que o mundo poderia estar mais avançado em relação a esses temas”, diz. Com mestrado em Gestão de Políticas Públicas pela Fundação Getulio Vargas (FGV), MBA executivo em Gestão da Sustentabilidade pela mesma escola, especialização em Gestão Responsável para Sustentabilidade pela Fundação Dom Cabral e um livro amplamente adotado no mundo corporativo (“Como Ser Um Líder Inclusivo”, editora Scortecci), Liliane conta ter percebido que, mesmo com esse extenso currículo, não conseguiria um cargo adequado às suas habilidades em uma empresa. “Existe uma barreira. Mas, se não era para ter um cargo dentro de uma grande companhia, eu precisava pensar em uma alternativa…”
A criação da Gestão Kairós
Foi assim que a Gestão Kairós nasceu, em 2015, com uma ótima rede de contatos conquistada em quase 15 anos de experiência no mundo corporativo e muita força de vontade. Hoje, a empresa de consultoria e mentoria de diversidade e sustentabilidade já conta com dez funcionários – três fixos e sete consultores associados -, além de, pelo menos, uma dezena de clientes fixos, com contratos de um ano. Gerdau, PayPal, Centauro, Ricardo Eletro e Ambev são alguns dos nomes que protagonizam a lista. Liliane faz questão de manter contato direto com os representantes dessas grandes empresas, e explica que o networking continua sendo essencial para o sucesso de seu projeto. “CEOs puxam CEOs”, destaca.
Assim, de pouco em pouco, a Gestão Kairós se expande, impactando todo um ambiente corporativo que passa por mudanças para se adequar à nova realidade do mundo no quesito diversidade e sustentabilidade. “Tenho olhado a empresa como um ecossistema. Somos dez pessoas que trabalham com umas dez empresas. A Ambev tem 30 mil funcionários, a Gerdau também, a Via Varejo tem 50 mil… Só nessa cadeia direta nós impactamos tranquilamente 100 mil pessoas. Se cada funcionário tem uma família de quatro membros, já estamos atingindo 400 mil”, contabiliza. Com planos de ampliar o campo de atuação ao atingir os fornecedores de cada empresa, a consultora diz ter esperança de um dia impactar mais de 1 milhão de pessoas com seus serviços.
Essa visão otimista não poderia estar mais de acordo com a essência da companhia. Kairós significa “tempo do momento oportuno”. Uma antítese ao tempo de Chronos, da mitologia grega, que se configura em passado, presente e futuro. Liliane conheceu essa palavra na faculdade, ao fazer um trabalho, e se identificou muito com seu significado. “Com a infância que eu tive, o tempo cronológico não me trouxe onde eu estou. O que me trouxe aqui foi o tempo de Kairós. Meu pai ter decidido me criar e a ajuda que tive das pessoas que eu conheci no meio do caminho e que acharam que eu tinha potencial.”
Na Gestão Kairós, Liliane revela que uma das grandes dificuldades é trabalhar em 2020 com preceitos de mais de 50 anos atrás. “A gente faz gestão com o que nossos avós nos passaram. Eu não sou escrava, nem meu pai, nem minha avó, mas minha bisavó provavelmente sim. São quatro gerações de ensinamentos e precisamos nos atualizar.” Seja em palestras ou mentorias em grupo, a empreendedora é responsável por colocar a linha temporal nos eixos novamente, mostrando quais são os dilemas e habilidades do mundo atual.
Existem alguns tópicos essenciais quando se pensa em diversidade para empresas. Veja, na galeria abaixo, quatro visões que, segundo Liliane, não podem ser ignoradas quando se trata do assunto:
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Alistair Berg/Getty Images Cuidado com o Diversity Washing
Recentemente, Liliane encontrou uma menção ao termo “diversity washing” no exterior. Porém, ela já utiliza a expressão desde 2016, ao ter um insight assistindo um comercial de cerveja na televisão. “Uma propaganda muito linda, mas eu sabia o que acontecia naquela empresa. Então eu pensei: companhias estão se apropriando do conceito de diversidade sem trabalhá-lo. E comecei a escrever sobre isso.” A lavagem da diversidade – em português – é a apropriação da temática apenas para impressionar o mercado de consumo e chamar a atenção, sem gerar qualquer impacto na sociedade.
“As empresas pensam: vou fazer serviços e produtos para esse público. Mas, se eles mandarem currículo, eu não contrato, e, se contratar, será em cargos de base, mas não levo para a liderança”, explica. Segundo a consultora, esse comportamento fica claro quando olhamos as estatísticas. “O perfil social, racial e de gênero do Instituto Ethos, de 2016, mostra que na alta liderança das 500 maiores empresas do Brasil apenas 13% são mulheres, 4,7% são negros e 0,6% são pessoas com deficiência. Então, de novo, cadê a gestão do mundo atual?”.
Para Liliane, é preciso questionar esse tipo de conduta tanto no papel de consumidor quanto no de executivo. O caminho não é o marketing da diversidade, e sim a gestão. “No meu livro, eu digo: para de ler agora e vai olhar o percentual de negros e mulheres na empresa que você gosta.”
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MoMo-Productions/Getty Images O legado da justiça social
“Que sociedade queremos para os nossos filhos?”, pergunta Liliane em toda palestra que dá ou mentoria que ministra. Segundo a consultora, estudos mostram que a igualdade salarial entre brancos e negros e homens e mulheres não será alcançada nos próximos 100 anos. “Eu não vou estar aqui, mas a gente quer três gerações dessa desigualdade social?”, questiona. Para ela, a questão é parecida quando se trata de sustentabilidade, já que um mísero copo plástico descartável demora cerca de 400 anos para se decompor. Para filhos, netos e bisnetos, “o legado que estamos sendo capazes de deixar é esse copinho”, além de uma grande dose de desigualdade – a menos que a mudança comece agora.
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Luis Alvarez/Getty Images Diversidade já é pauta de gestão de risco
Com a internet cada vez mais presente no dia a dia das pessoas, a relação entre audiência e empresas mudou. Além da cobrança por posicionamentos, a exposição de um erro ou reclamação se torna muito maior e passível de ganhar relevância pública. O famoso “cancelamento” das mídias sociais pode surgir a partir de uma simples postagem nas redes. “Antigamente, quando uma pessoa queria reclamar de uma companhia, ela ia até a porta do estabelecimento, a um órgão público, tentava contato com a Globo… Hoje, a primeira coisa é postar nas redes sociais, ela não precisa de uma estrutura formal. Até o poder público responder, a audiência já validou ou desvalidou aquilo.”
Sendo assim, seja no tratamento com os funcionários ou na aprovação de materiais publicitários, companhias se tornam muito mais fortes com a diversidade presente. São várias pessoas distintas olhando para a mesma situação com diferentes pontos de vista, o que torna muito mais simples a detecção de erros que a audiência não vai perdoar. “Vemos casos supercríticos e pensamos: tinha diversidade na mesa responsável por essa aprovação? E, se tinha, essa pessoa tinha voz ativa ou estava em um cargo de base, sem oportunidade para crescer e opinar de forma eficiente?”. Para Liliane, esse tipo de gestão é essencial para o sucesso de uma empresa em 2020.
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Getty Images Vantagem competitiva
Além de todo impacto positivo na sociedade, há vantagens competitivas em ser uma empresa diversa e sustentável. Liliane cita uma pesquisa da Mckinsey chamada “A Diversidade Como Alavanca”, de 2016, para exemplificar esse fato. O estudo, que percorreu 12 países e ouviu mais de 1.000 empresas, constatou que as companhias que possuem diversidade étnico racial na alta liderança têm 33% mais propensão à lucratividade. Já aquelas que têm diversidade de gênero têm de 22% a 23% mais chances de serem lucrativas. Isso acontece por diversos fatores, desde maior confiança e prestígio dos consumidores até a formação de um time mais forte e unido com todas as habilidades necessárias para despontar no mercado.
Cuidado com o Diversity Washing
Recentemente, Liliane encontrou uma menção ao termo “diversity washing” no exterior. Porém, ela já utiliza a expressão desde 2016, ao ter um insight assistindo um comercial de cerveja na televisão. “Uma propaganda muito linda, mas eu sabia o que acontecia naquela empresa. Então eu pensei: companhias estão se apropriando do conceito de diversidade sem trabalhá-lo. E comecei a escrever sobre isso.” A lavagem da diversidade – em português – é a apropriação da temática apenas para impressionar o mercado de consumo e chamar a atenção, sem gerar qualquer impacto na sociedade.
“As empresas pensam: vou fazer serviços e produtos para esse público. Mas, se eles mandarem currículo, eu não contrato, e, se contratar, será em cargos de base, mas não levo para a liderança”, explica. Segundo a consultora, esse comportamento fica claro quando olhamos as estatísticas. “O perfil social, racial e de gênero do Instituto Ethos, de 2016, mostra que na alta liderança das 500 maiores empresas do Brasil apenas 13% são mulheres, 4,7% são negros e 0,6% são pessoas com deficiência. Então, de novo, cadê a gestão do mundo atual?”.
Para Liliane, é preciso questionar esse tipo de conduta tanto no papel de consumidor quanto no de executivo. O caminho não é o marketing da diversidade, e sim a gestão. “No meu livro, eu digo: para de ler agora e vai olhar o percentual de negros e mulheres na empresa que você gosta.”
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