As manchetes sobre a fome na América Latina e na África são ainda deprimentes e frequentes. Em tal contexto, onde a ingestão de alimentos ou comer é uma questão política, qualquer preocupação com o desperdício de alimentos talvez seja até hoje surpreendente. No entanto, o desperdício de alimentos também é econômico, alimentado, por um lado, por preocupações morais com a extravagância e o excesso em face da fome e da inanição e, por outro, pelas crescentes preocupações com a segurança alimentar e a resiliência das cadeias globais de abastecimento de alimentos.
Um relatório recente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) relata que perdas alimentares globais e desperdício alimentar são problemas sociais e ambientais da agenda do desenvolvimento econômico global. Ele estima que um terço dos alimentos produzidos globalmente a cada ano para consumo humano, aproximadamente 1,3 bilhão de toneladas, é perdido ou desperdiçado.
De acordo com a FAO/ONU, esse volume desperdiçado daria para encher 11.428.571 de aviões (Boeing 747-8f). Economicamente, equivale ao PIB da Austrália, ou seja, US$ 1,2 trilhão. E ambientalmente, emite 3,3 milhões toneladas de gases efeito estufa.
Há que se justapor fome e desperdício de alimentos, entendendo que desperdício é um erro.
Os países industrializados e em desenvolvimento perdem quase a mesma quantidade de alimentos, 670 e 630 milhões de toneladas, respectivamente (FAO/ONU). A diferença é que os países pobres perdem mais no início da cadeia de produção e abastecimento, ao passo que, em países de renda média e alta, os alimentos são normalmente descartados enquanto ainda são adequados para consumo humano, ou seja, é jogado fora, por varejistas ou consumidores, para se tornar lixo alimentar.
Como então podemos pensar sobre o desperdício de alimentos? Para responder, devemos entender o problema sob os prismas: 1. da economia política; 2. da virada educacional; e 3. do ser humano no centro do problema.
É urgente que se desconstrua o aforismo de Lévi-Strauss de que “bom para pensar, bom para comer”, onde socialmente é compreendido que os alimentos primeiro devem ser comestíveis para nossas mentes e só posteriormente digeridos fisicamente por nosso organismo.
O desperdício de alimentos é conceitualmente interessante e crucial para entender como vivemos no mundo. Vejamos o cenário do Brasil, à guisa de ilustração: 26,3 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente no país [Fonte: FAO/ONU, 2018] e 23,8 milhões de pessoas passam fome no Brasil [Fonte: boletim políticas públicas & sociedade – abril/2020]
Nada melhor, nesse contexto, do que apresentar uma iniciativa cuja missão é visível: a Comida Invisível.
A Comida Invisível nasceu da indignação de uma mulher num momento de lazer culinário. Durante as compras de frutas, insumos de sua pretensa geleia, em um armazém, reparou em pilhas de comida boa descartadas, jogadas no lixo. Indignada, ato imediato, jogou a lupa para a oportunidade de um negócio de base tecnológica dando vida aos alimentos perdidos.
Trata-se de uma startup certificada pela FAO/ONU com o selo Save Food. Sua missão visível é a mediação para reduzir o desperdício. Tem o DNA de gerar impacto na veia e conduz um caminho próprio para uma modelagem de investimento ESG. Como? Com base em tecnologia inteligente, oferece uma plataforma completa, com métricas e indicadores para que as empresas possam gerenciar melhor suas perdas e resíduos e dar a destinação correta aos alimentos que possuem.
Ou seja, a plataforma Comida Invisível utiliza geolocalização para aproximar empresas que possuem alimentos bons e adequados para doação com ONGs que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social. E quais são os resultados?
1. Redução do custo logístico;
2. Combate ao desperdício de alimentos; e,
3. Redução da quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera.
Desde o início da plataforma, mais de 150 toneladas de alimentos foram doados, beneficiando aproximadamente 1.677.892 pessoas, com mitigação de 81.960 kg de CO2. Tudo isso, tendo a mediação de 120 empresas e 400 ONGs.
O desperdício de alimentos perturba muito, pois o desafio é enfrentar a produção dos resíduos com a produção agroalimentar. Até porque, infelizmente, ainda é diretamente proporcional.
Isso é vital para o Brasil, onde as mudanças nos padrões de consumo de alimentos emergem rapidamente em territórios urbanizados.
O desperdício de alimentos precisa ir além do prato e até mesmo da lata de lixo.
Haroldo Rodrigues é sócio-fundador da investidora in3 New B Capital S.A. Foi professor titular e diretor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Universidade de Fortaleza e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Ceará.
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