Anna Zhang não se cansa de “Nirvana In Fire”, um drama de TV baseado na China do século 4º, que foi ao ar em 2015. A estudante de 21 anos assistiu pela primeira vez o programa em seu telefone durante os intervalos para o almoço no ensino médio antes de revisitar a série de mais de 100 episódios mais duas vezes com os amigos na faculdade.
O isolamento social por conta do coronavírus desencadeou uma quarta rodada de maratona, só que desta vez, confinada à sua casa de infância em Pequim, Zhang mergulhou fundo em “White Flame”, um spinoff escrito por fãs que coloca os personagens da saga na época da epidemia de SARS, em 2003.
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“Ler meus personagens favoritos superando as adversidades e salvando vidas me deu mais força para enfrentar o evento atual”, diz Zhang, que acrescenta que assistir horas de notícias de Wuhan a levou de volta à série.
Ela não está sozinha. Com muitas partes do mundo em isolamento ou sofrendo com os efeitos da pandemia, a “fanfiction” –ficções escritas por fãs– está crescendo. O fenômeno ocorre mesmo na China, onde o governo proibiu o acesso ao “Archive Of Our Own” (AO3), o principal site sem fins lucrativos para leitores e escritores de fanfiction. A proibição foi em parte por causa do conteúdo sexual nas histórias, diz Zhang. A AO3 anunciou “medidas de emergência” no final de março, depois que as visualizações de páginas semanais aumentaram para 298 milhões em duas semanas e, em 7 de abril, o site sem filtros registrou uma alta diária de 51,4 milhões de visualizações, com os leitores aumentando cerca de 20% mês a mês. As visitas estão no ritmo de 1,5 bilhão, 60% superior a abril de 2019.
O gênero fanfiction é um canto curioso do mundo das histórias de sucesso, em que os superfãs criam seu próprio conteúdo usando roteiros pré-existentes e personagens já conhecidos. Foi inspirado pelos fãs de Star Trek, o cult de ficção científica das décadas de 1960 e 1970, que compartilharam suas histórias em periódicos auto-publicados, conhecidos como “fanzines”.
“Em geral, os escritores são mulheres e geeks”, diz Amanda Firestone, professora assistente de comunicação na Universidade de Tampa. “Se você não está vendo a si mesmo ou as narrativas que deseja na grande mídia –como nos blockbusters– você encontra nas fanfics uma maneira de escrever e ler o que deseja.”
Ainda é um mercado pequeno para os padrões de entretenimento. A AO3, que custou US$ 204 mil em 2019, não tem funcionários em tempo integral, apenas voluntários que levantaram US$ 694 mil no ano passado para financiar despesas. O gênero viu uma espécie de ápice comercial com “50 Tons de Cinza”, de E.L James, que se originou de uma ficção erótica vagamente derivada da saga “Crepúsculo” que foi publicada pela primeira vez no FanFiction.net. Uma versão editada da história, que já havia mudado a narrativa para uma cidade diferente e transformado as personalidades dos personagens originais, tornou-se uma série de livros e filmes que conquistou recordes de vendas.
É provável que isso não ocorra com muita frequência, de acordo com Claudia Rebaza, que trabalha na organização-mãe da AO3, “Organization for Transformative Works”. A ficção feita por fãs raramente é convertida em trabalho publicado comercialmente, e na maioria das vezes os autores enviam novos trabalhos para os editores devido a preocupações com direitos autorais que tornam o sucesso comercial mais difícil e raro. Embora James tenha sido capaz de separar o mundo de “Crepúsculo” dos livros dela, muitos escritores de fanfics baseiam suas histórias em universos e personagens existentes que não estariam abertos a essa modificação, diz Firestone.
Outros sucessos que geraram um corpo substancial para o gênero incluem a obra de J.K Rowling, com a franquia Harry Potter, que inspirou histórias sobre a vida romântica de Harry e sua rotina em Hogwarts, como a sensação global “Harry Potter and the Methods of Rationality”, além de Star Wars e The Untamed, outro sucesso chinês produzido pela Tencent Video e recentemente escolhido pela Netflix para se tornar uma adaptação. A internet agora é o lar de milhares de escritores e 50 milhões de histórias de fanfics gratuitas, embora ainda não haja nenhum grande o bastante para competir com o sucesso de “50 Tons de Cinza”, que vendeu mais de 70 milhões de cópias em todo o mundo, tornando-se a autora mais bem-sucedida de 2013 com US$ 95 milhões.
O coronavírus está chamando a atenção de volta para essas produções, com milhões de aspirantes a autores, como Zhang, voltando-se para a fanfiction como uma maneira de lidar com a ansiedade e o isolamento da quarentena. De acordo com dados da AO3, os usuários publicaram uma média de 4.000 peças todos os dias em março, em comparação com 3.000 há um ano.
“A fanfiction é produzida em uma comunidade”, diz Memé Calixto, professor de inglês de 29 anos da Argentina. “Qualquer um pode tomar a realidade em suas mãos e torná-la o que quiser, agora.”
Calixto dobrou seu consumo de fanfiction desde o início da pandemia. É o mesmo para Karen Hill, 55 anos, mãe de cinco filhos em Prosperity, Carolina do Sul, que está isolada com os adolescentes; dois deles atualmente trabalham em um supermercado e um está no negócio de fast food. “Foi extremamente estressante para mim enviar meus filhos para o trabalho todos os dias, sabendo que eles estão em perigo”, diz Hill. “Ser capaz de me afundar em uma história, seja lendo ou escrevendo, tem sido terapêutico. Apaga todo esse horror do mundo por um tempo”.
A fixação inicial dela? “Guerra nas Estrelas: uma Nova Esperança,” que ela viu 22 vezes em um cinema em Blacksburg, Virgínia, quase quatro décadas atrás. Hill mais que dobrou o número de horas por dia que ela passa lendo e escrevendo, não apenas sobre Star Wars, mas também séries de mangás japoneses, como “Attack on Titan” e “Hunter Hunter”.
Os fãs também estão usando a plataforma de mensagens Slack para criar clubes de leitura e criar desafios de escrita chamados “Big Bangs”. Em Michigan, a veterinária de 34 anos Theresa Perrault faz parte do grupo “100-person Les Misérables Big Bang”, com mais de 100 participantes, alguns dos quais gastam até cinco horas por semana criando comunidades de ficção.
Grace Laporte, trancada em Windsor, Canadá, e separada de seu noivo em Detroit, aumentou sua leitura de ficção de duas horas por semana para quase seis horas por dia. A jovem de 31 anos começou a escrever suas frustrações através de Reylo, um “shipp” criado pelos fãs do relacionamento romântico entre o protagonista da mais recente trilogia de Star Wars, Rey e seu colega, Kylo Ren.
“É meio patético, mas estou desesperado pela interação humana”, diz ela. “Eu amo pessoas.”
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