Por linhas tortas, ou pelo menos não usuais, o baiano Itamar Vieira Junior, 41 anos, se tornou o escritor brasileiro mais comentado do momento. Seu romance de estreia, “Torto Arado”, saiu primeiro em Portugal, depois de vencer um prêmio literário, o Leya 2018, e só depois chegou ao Brasil, onde ganhou o prêmio Jabuti de 2020. Nos últimos dois anos, o nome do autor até então desconhecido foi ganhando as bocas, os podcasts literários, as redes sociais, os clubes do livro online e o noticiário. E assim, aos poucos, fez reverberar aos quatro ventos a história de Bibiana e Belonísia, duas irmãs conectadas entre si após um acidente tirar a voz de uma delas.
Com 100 mil exemplares vendidos no Brasil, “Torto Arado” (editora Todavia) retrata a vida precária de um grupo de trabalhadores rurais no sertão baiano. Vem sendo comparado a clássicos como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, ou “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Mas foi só quando passou a se ver citado como autor na imprensa que Itamar acreditou que tinha, de fato, virado um. Até então, era o Itamar geógrafo, funcionário do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Mas um Itamar que já tinha lançado dois livros de contos, e que sempre escreveu. Desde a infância em Salvador, quando tinha uma “fome por leitura que não acabava”. “Na minha escola não tinha biblioteca, mas um vizinho estudava em uma particular muito boa e diariamente pegava livros para mim”, lembra. “Eu frequentava duas bibliotecas públicas, toda semana pegava livros lá.” Itamar cresceu os olhos para as obras de Machado de Assis, José de Alencar, Eça de Queiroz. “Aos 12, 13 anos, fui fisgado e fascinado por eles”, diz. “Hoje são autores considerados difíceis. Não concordo muito que não se deva começar por aí, porque me senti realmente vocacionado quando li aqueles romances. Fez uma diferença muito grande na minha vida.”
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Mesmo antes, com 7 anos, já escrevia histórias. Quando a mãe achou os textos, não gostou. Ficou decepcionada: preferia ver o filho fazendo as lições a escrevendo “essas bobagens”. Tanto a mãe, que cursou o ensino fundamental, quanto o pai, técnico em contabilidade, viam na formação escolar um jeito de transformar o futuro dos quatro filhos. Assim como pensa o personagem Zeca Chapéu Grande, o pai de Bibiana e Belonísia. Itamar seguiu escrevendo ficção, mas escondido. Aos 16 anos, chegou a começar “Torto Arado”, mas não finalizou e perdeu as páginas. “Acho que essa versão de ‘Torto Arado’ não valia muita coisa.” Cursou graduação e mestrado em geografia na Universidade Federal da Bahia enquanto trabalhava para pagar as contas. Foi empacotador de supermercado e balconista de farmácia antes de entrar para o serviço público. Depois fez doutorado em estudos étnicos e africanos — diz ter “as três origens que costumam dizer que é a base da formação do povo brasileiro”, mas que “o momento histórico pede que ressalte algumas em detrimento de outras”. Como analista agrário e pesquisador, rodou o Maranhão e a Bahia por 15 anos. E nessas andanças encontrou a realidade que permeia a ficção de “Torto Arado”.
A seguir, trechos da entrevista que Itamar deu à Forbes por videoconferência, de sua casa em Itapuã, bairro em Salvador (BA) onde vive com a mãe, o irmão caçula, cerca de 500 livros, duas cadelas e quatro gatos. E onde, durante a pandemia, recebe acarajé delivery todo sábado.
Forbes: “Torto Arado” trata de temas difíceis, como servidão, racismo, escravidão, violência, machismo. E apesar disso, ou por causa disso, ele atinge um público amplo. Como isso acontece?
Itamar Vieira Junior: Talvez haja algo nas personagens que comunique uma experiência humana única, independente da sua origem, sua posição social. Embora trate de uma realidade bem específica, em um lugar remoto do Brasil, ali há sentimentos que são universais. O direito à liberdade, à vida, à autonomia, tudo isso está em jogo para todos, desde sempre. Eu imaginei primeiro as personagens, os temas fazem parte porque elas não estão alheias ao mundo.
F: Você chegou a começar a escrever esse livro, perdeu as páginas, depois recomeçou. Esses temas já permeavam a primeira versão? Ou foi algo que veio depois, com seu trabalho no Incra e suas pesquisas?
IVJ: Não permeavam. Eu tinha só 16 anos quando comecei, com pouca consciência de mundo. Não morava no campo. Nem moro, nunca morei. Mas meu pai teve uma vida no campo, assim como minha avó paterna e meu avô paterno, então tinha memórias sempre contadas pela família. Por exemplo: meu pai nos proibia de assoviar à noite porque dizia que chamava cobra, e eu imaginava como uma cobra ia escalar o prédio e entrar no nosso apartamento. Depois passei longos períodos no campo, por causa do trabalho. Quando recomecei a contar essa história, o mote permaneceu, que é a história das duas irmãs, da relação que elas tinham com a terra e com o pai. Mas a vida dos personagens não tinha a mesma densidade, ela só foi possível porque os últimos 15 anos eu passei entre trabalhadores rurais.
F: Mas a ideia da relação com a terra já existia antes, quando você tinha 16 anos?
IVJ: Sim, era algo que já me fascinava. Acho que pelo pelos romances que eu li. “Grande Sertão: Veredas”, “Vidas Secas”, “O Quinze”… Ali há um embate, parece que eterno, entre homem e natureza. No meu romance, ele é representado pelas próprias intempéries, a irregularidade das chuvas, ou as cheias muito intensas ou as secas, o que leva a duelar com a terra. E também pelas estruturas sociais. O acesso à terra não foi garantido a essas pessoas. Então, elas estão nesse duelo duplo.
F: Existe um duelo, mas também uma ligação essencial. No livro, se diz que a terra não é nada sem o trabalho, e as pessoas nascem na terra e morrem na terra.
IVJ: Frases como esta, “A terra sem trabalho não é nada”, eu ouvi dos trabalhadores rurais. Não saiu da minha mente. É uma relação que está entre o bem material e algo que transcende essa materialidade. Algo íntimo, orgânico, que faz parte da vida deles. Se a gente for pensar, é um direito elementar do ser humano, o direito à terra. Quando eu falo terra, estou falando de solo. Até o chão da nossa casa é solo. Independente da origem, do lugar onde vivemos nesse planeta, é um direito de que não podemos abrir mão, porque não temos asa para ficar no ar.
F: Parece que na cidade temos menos essa consciência, não pensamos tanto no chão, no solo. E no livro aparece muito clara para os personagens essa ideia da ligação com a terra, e da terra com a comida.
IVJ: É o trabalho deles, eles são agricultores. Então, era natural falar do alimento, do pão que eles plantam e colhem. É também um embate que existe hoje no campo brasileiro. Porque existe o agronegócio, que é importante para as divisas, para a geração de commodity no país, um país agroexportador. Mas nós comemos, e quase tudo que consumimos vem do pequeno e do médio agricultor. O que o livro evidencia é que não há uma vida em nenhum lugar do mundo realmente plena se não houver condições para o desenvolvimento no campo. Na cidade, vamos ao supermercado e encontramos tudo, não pensamos no processo de produção. Assim como não costumamos pensar na terra. Mas basta lidarmos com alguns problemas que despertamos para isso. Na greve de caminhoneiros, há alguns anos, houve um desabastecimento severo dos supermercados. Isso nos mostra que há uma dependência grande do campo. Todo país que preza por uma soberania alimentar não pode prescindir de dar assistência aos seus trabalhadores rurais, de fornecer condições para que eles se desenvolvam.
F: Você vê a pandemia levando as pessoas a pensarem mais sobre esses temas?
IVJ: A pandemia é o duelo entre a terra e o homem. E temos muita responsabilidade nisso, se pensarmos em como surgiu essa doença e como se disseminou. Estamos destruindo os habitats dos animais, que portam seus vírus, suas bactérias, e essa destruição vai nos aproximando de calamidades. Presto atenção nas coisas que me cercam, me fez entender que somos muito pequenos perto do poder da natureza. A nossa fragilidade é uma constante, e ela vai ficar cada vez mais em evidência. Nossa geração já está sendo atingida, mas talvez seja muito pior para as seguintes se o grau de exploração — seja do homem, como o livro retrata, seja da terra — permanecer nos mesmos níveis.
F: Como você vê a recepção de “Torto Arado” fora do Brasil (o livro já saiu em Portugal e Itália, vendeu os direitos de publicação para México, Peru, Eslováquia, Bulgária, Croácia, França, Alemanha e EUA)?
IVJ: Para parte do Brasil é bem estrangeiro o que “Torto Arado” aborda. Ao mesmo tempo, há algo familiar e afetivo ali. Fico me perguntando: o que é que há nessa história? Por que o interesse? Talvez por haver ali sentimentos que fazem parte da experiência humana. Isso independe da nossa origem, se estamos no Japão ou na África do Sul. O que eu posso dizer com mais profundidade é de Portugal. Por conta do primeiro Leya viajei para lá duas vezes, tive muitos encontros com críticos e leitores, e percebi que as pessoas com mais de 40 anos tinham uma memória muito viva da ditadura salazarista e da realidade da servidão na região do Alentejo. Elas remeteram imediatamente o livro a isso. E existe um interesse genuíno do leitor português em conhecer a história das ex-colônias.
F: Quando você fala do Alentejo, é algo que passou. E em “Torto Arado” existe uma questão interessante da atemporalidade. É muito arcaico, mas é também algo que você encontrava no campo em seu trabalho?
IVJ: É. Cheguei em 2005 no campo no Brasil e encontrei uma realidade que eu, como estudante, considerava superada, uma forma de trabalho muito próxima à escravidão. Tinha lido romances escritos há 60, 70 anos que traziam uma realidade, e pouca coisa parecia ter mudado. Vem daí a minha aversão a falar sobre tempos. Dou algumas pistas aos leitores: aparece uma Ford Rural quando as meninas se acidentam; na segunda parte, quando ocorre um evento importante, os personagens já estão numa motocicleta. Mas para mim fazia todo sentido que a história não demarcasse o tempo de maneira definitiva, já que estávamos falando de permanências de um passado escravagista que nunca nos abandonou. Ainda há muitos trabalhadores que são resgatados ano a ano em condição de escravidão. Não gosto nem do eufemismo “análogo à escravidão”. Essas pessoas vivem uma forma de escravidão contemporânea.
F: O livro mostra uma história de resistência crescente. Você viu isso desde que iniciou o trabalho no campo?
IVJ: Começou antes ainda. Há uma diferença grande do passado e do presente, no romance demarcada de uma maneira simples, que é a relação que o Zeca Chapéu Grande, o pai, tem com os proprietários daquela terra e com sua comunidade; e a relação que as filhas criam depois da morte dele. Eu não gosto muito do termo, mas a verdade é que elas vão criando consciência. Muito dos discursos que se proferem nessa segunda parte vem do que eu vi pessoas proferirem. O Zeca lutou com as armas que ele tinha pra garantir que aquele povo não sofresse violência maior, mas muito no campo da conciliação de interesses. Já com a geração seguinte isso muda. Eles estão cansados e propõem uma ruptura desse sistema de exploração.
F: O acesso à educação tem a ver com isso?
IVJ: Com certeza. Há 20 anos não discutíamos com tanta ênfase temas como o racismo. O sistema de cotas, que abriu as universidades públicas para a camada mais pobre e negra da população, e também para indígenas e outros grupos minoritários, criou uma classe menos desfavorecida que vem saindo da universidade e colocando no debate público os temas que lhes dizem respeito.
ITAMAR SELECIONA 5 OBRAS ESSENCIAIS EM SUA FORMAÇÃO
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Reprodução “Amada”, Toni Morrison
“Um retrato íntimo sobre a tragédia da diáspora africana e a escravização de trabalhadores nas Américas. Um dos grandes romances do século 20.”
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Reprodução “Gabriela, Cravo e Canela”, Jorge Amado
“Uma crônica sobre o Brasil do início do século 20 que retrata costumes, a violência do patriarcado, a disputa de terras e a liberdade expressa nos sentimentos da carismática protagonista.”
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Reprodução “Sidarta”, Hermann Hesse
“Um dos mais belos livros de todos os tempos. O romance baseado na vida de Sidarta Gautama toca em questões vitais da experiência humana.”
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Reprodução “Dom Casmurro”, Machado de Assis
“Um grande romance que continua a conquistar leitores e semear a dúvida do adultério neste que é um dos livros mais complexos e sofisticados da literatura brasileira.”
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Reprodução “Desonra”, J. M. Coetzee
“Num mundo de tensões e diferenças entre brancos e negros, humanos e animais, Coetzee constrói uma narrativa única sobre a violência da vida sem fazer concessões.”
“Amada”, Toni Morrison
“Um retrato íntimo sobre a tragédia da diáspora africana e a escravização de trabalhadores nas Américas. Um dos grandes romances do século 20.”
Reportagem publicada na edição 85, lançada em março de 2021
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