Fernando Jaeger carrega a sustentabilidade no olhar, desde sempre. Prestes a celebrar 40 anos de carreira com o lançamento de um livro no segundo semestre, o designer gaúcho de 64 anos cria parte de seus mobiliários no simples observar de sobras de uma fábrica de móveis. Restos de madeira cortados, tiras de tecido amontoadas na estante, peças esquecidas em cantos improváveis que se transformam em bancos, pufes e outros produtos entre mais de 250 comercializados em suas cinco lojas (São Paulo e Rio de Janeiro) – claro que só alguns itens nascem dessa observação despretensiosa na visita aos fornecedores. O que todos seus sofás, poltronas, mesas, cadeiras, tapetes e aparadores não sabem é que eles estiveram perto de não existir. Fernando estava no Rio de Janeiro decidido a cursar medicina, era inclusive essa a expectativa da família em Santa Cruz do Sul (150 km a oeste de Porto Alegre) – para ser motivo de orgulho, eram duas opções: ser médico ou gerente do Banco do Brasil. Foi então que ele soube que existia um curso de design industrial – e não titubeou ao preencher o formulário do vestibular para a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Com a bagagem de quem passou a vida em escola pública, Fernando conseguiu uma das 30 vagas disponíveis. O homem que viria a se transformar em um dos designers de móveis mais consagrados do país foi uma decepção para a família, que nem sabia o que era aquele negócio que ele iria estudar por cinco anos. Hoje, ele vive em São Paulo, ao lado da arquiteta Yáskara – e, se a marca FJ tivesse três letras, certamente a terceira seria Y, graças à efetiva participação dessa paulista de Penápolis na escalada de sucesso de Fernando Jaeger. Além de sócia e parceira de vida, ela faz a direção de criação das estampas, desenha os tapetes, escolhe tecidos, cores e acabamentos das peças projetadas pelo marido, além da ambientação e decoração das lojas. O casal, que se conheceu durante os estudos no Rio de Janeiro, mora com o filho caçula Theo, artista plástico de 24 anos. Os filhos mais velhos (Felipe, de 36 anos, e Marina, de 32) não moram na mesma casa na Vila Pompeia, onde estão desde 1996, mas trabalham na empresa familiar. O lar também conta com a presença dos cães Akira (da raça shiba inu) e Max (spitz alemão). A seguir, trechos da entrevista virtual com Fernando, que, se tivesse sido feita em dias normais, aconteceria no quintal de 700 metros quadrados, onde ele adora cozinhar e cuidar do jardim, com árvores, plantas, horta de temperos – uma floresta, nas palavras do dono.
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Forbes: Por que pensou em fazer medicina e mudou de ideia na hora do vestibular?
Fernando Jaeger: Desde pequeno, sempre desenhei muito. Bastava um lápis e um papel para me fazer voar… Era uma forma de expressão – e de sonho. O fato é que eu já fazia design de produto, pois desenhava moto, mandava para revista especializada para conseguir estágio, mas não tinha a menor ideia do que era design. Também era louco por avião, queria ser piloto, mas não consegui passar no exame. As pessoas falavam que eu deveria fazer arquitetura, mas não queria desenhar casa e prédio… Então, como gostava de ciência, botânica, zoologia, e medicina era uma carreira respeitada, cheguei ao Rio de Janeiro com isso em mente. Daí, descobri o curso de desenho industrial – mudei na hora.
F: Como foi o começo da vida em Santa Cruz do Sul?
FJ: Meu pai era eletricista autônomo e, ainda jovem, teve um AVC, ficou impossibilitado de trabalhar. Minha mãe faleceu quando eu ainda era bebê, tinha 1 ano e meio. Fui criado pela minha madrasta. Passamos perrengue. Só não passamos fome porque era casa própria, tinha galinheiro, horta, pomar. Mas andei de sapato furado, e só tinha um casaco. Ganhava roupas usadas. Foi uma infância típica de cidade do interior: muita brincadeira na rua, banho de rio, fogueira de São João, subir em árvores para apanhar frutas e soltar pandorgas (como se chamam as pipas no Rio Grande do Sul). É uma cidade fundada por imigrantes alemães, como grande parte da minha família. Há racionalidade do uso, não desperdiçar, ser empreendedor. No Sul, as pessoas têm coragem, são destemidas. Em outras partes do Brasil, sinto o freio de mão mais puxado.
F: Até que idade ficou na cidade? Por que saiu?
FJ: Até os 18 anos, quando concluí o Científico, o equivalente ao ensino médio atual. Em cidade do interior, não tem muita oportunidade. Lá, era produção de tabaco. Com 16, consegui uma vaga para trabalhar como auxiliar de escritório numa loja de ferragens, mas até para isso você precisa de alguém conhecido para indicar. Quando surgiu a oportunidade de morar com meu irmão que estava no Rio de Janeiro, catei minhas coisas e fui embora. Fiquei no Rio de 1975 a 1983.
F: Foi na faculdade que decidiu seguir como designer de móveis?
FJ: A faculdade me deu uma visão mais social do design. Projetar equipamento urbano para população. Tanto que me identifiquei muito com Lina Bo Bardi [1914-1992], quando mudei para São Paulo, e o primeiro lugar que eu e minha mulher visitamos foi o Sesc Pompeia. Como Lina é genial, uma arquiteta para o público em geral, do mais pobre ao mais rico, sem ser elitista. Essa noção foi importante na faculdade. Sobre ser designer de móveis, não tinha essa expectativa durante o curso. Mas, logo que me formei, uma semana depois, surgiu um anúncio no JB [Jornal do Brasil] de uma empresa de móveis procurando um designer. Fui lá e, por incrível que pareça, consegui a vaga.
F: Qual foi o primeiro emprego na área?
FJ: Consegui emprego na Phenix, uma indústria que estava em formação no subúrbio do Rio de Janeiro, o dono da empresa tinha uma loja de colchões, herdada do pai. Vivíamos numa ditadura, os móveis eram clássicos, coloniais… Mas a coisa estava começando a aliviar, então, apareceram novas lojas, entre elas a Tok Stok, com móveis coloridos e de madeira clara. Foi um sopro de novidades. O dono da empresa onde consegui o emprego teve uma visão bacana, queria ter a linha dele. Eu era absolutamente inexperiente, ele perguntou para mim se entendia de móveis, disse que não, mas que iria pesquisar… Mais para frente perguntei por que me contratou e ele disse que tinha gostado muito da minha sinceridade. Não sou místico, mas a providência se move quando você tem uma vontade, um objetivo.
F: Qual foi a primeira peça que você fez?
FJ: Foi toda uma linha de móveis tubulares coloridos, com madeira clara, que era a tendência. A linha foi lançada com a grife Pierre Cardin. Essa experiência, de trabalhar dentro de uma indústria, cuidando de todos os processos, norteou minha carreira de designer, com foco na produção industrial seriada. Fiquei dois anos e oito meses nessa empresa.
F: Foi daí que veio para São Paulo?
FJ: Sim. Saí da Phenix e vim para São Paulo trabalhar na Freudenberg, uma empresa alemã que abastecia indústrias moveleiras com matérias-primas provenientes de reflorestamento. Madeira de pinus, sustentável, mas, na época, nem se falava em sustentabilidade. Graças a ela, conheci todos os grandes centros moveleiros do Brasil. A Serra Gaúcha; São Bento do Sul, em Santa Catarina; Mirassol e São José do Rio Preto, no interior de São Paulo… Pude constatar que, apesar de muitas indústrias serem enormes e bem equipadas, elas não tinham nenhuma cultura do design. Produziam cópias de desenho pobre, repetitivo e de mau gosto. Por outro lado, estava surgindo um varejo focado em design contemporâneo, ávido por novos produtos e fornecedores. Daí tive a ideia de, em vez de vender projetos para as indústrias – que não os valorizavam –, fazer um trabalho mais complexo, compreendendo o projeto, a implantação em fábricas e a colocação no mercado, fechando todo o ciclo. Pedi demissão depois de um ano, meu pai e meu sogro falaram que eu era louco, mas o ambiente estava estranho… A empresa foi vendida após dois meses. Saí na hora certa. Eu desenvolvi o meu design por cerca de 15 anos. A Cama Patente e o Sofá Chesterfield foram as primeiras peças e depois vieram várias outras, totalizando 65 modelos em linha. Meu primeiro “mini” show room foi numa casa geminada na rua Cotoxó, no ano de 1994.
F: Como funciona seu processo criativo?
FJ: Tem vezes que estou folhando uma revista, vejo uma coisa e penso em outra. Faço croquis, mas não uso cadernos, que isso me trava. Pego papel reciclado já usado, uso o verso, desenho a lápis. É meu lado ger-mânico. Algumas ficam ali, numa pasta, maturando. Outras já rolam de cara. Há também as peças que crio dependendo da demanda das lojas – de repente, o briefing mercadológico é que precisamos pensar em um sofá novo. Estamos atentos ao que é mais tendência, mas não ligo para modismo. Ou a gente [Fernando e Yáskara] pega o carro, coisa que adoramos, vamos até o Sul, parando, entrando nas fábricas, vendo sobras de madeira que vão ser queimadas. Já bolei peças nas fábricas.
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F: Quais são suas principais referências no design?
FJ: Bauhaus [escola alemã de arte vanguardista] é a mais antiga, da década de 1920. Depois, tem os nórdicos dos anos 1940 e 1950, Finn Juhl [dinamarquês, 1912-1989], Hans Wegner [dinamarquês, 1914-2007] e o casal [norte-americano] Charles Eames [1907-1978] e Ray [Kaiser Eames, 1912-1988, criadores de peças icônicas como a Eames Lounge Chair] – costumo dizer que eu e Yáskara somos uma reedição brasileira dos dois. Eu me identifico muito com os nórdicos, pois eles têm a síntese do design, são muito depurados – não gosto de pôr um douradinho aqui, um couro ali, só pra valorizar o que é ruim na essência. O bom design é aquele bem depurado. Entre os brasileiros, Sérgio Rodrigues [carioca, 1927-2014], que era muito gente boa, não era estrela e que conheço da época da Phenix, pois ele fez o estande dos móveis Pierre Cardin para o lançamento no Anhembi.
F: Na caminhada de 40 anos de trabalho, quais são seus produtos mais emblemáticos?
FJ: Produtos de bom design atravessam o tempo. Um exemplo é a Cadeira e a Poltrona de Spaghetti, que têm a idade da minha filha, desenhei em 1989, elas estão em linha desde então, e sempre vendeu muito bem. Outro destaque é a Poltrona Zé: sofisticada e de difícil execução. Mas nunca desenhei uma peça e depois saí atrás de alguém para produzir. Sempre faço uma coisa sabendo quem vai fazer. Conheço os maquinários, sei o que é possível. Meu design é muito racional, já é direcionado desde o início. A criação da Mesa Saturno também está ligada a um fornecedor que conheci há mais dez anos e tinha uma máquina com comando eletrônico para cortar as elipses em diversos tamanhos. Temos também exemplos de móveis criados para a nossa casa e que entraram na linha de produção, como a Poltrona Astor. Outros exemplos de peças que nasceram de sobras de madeira de laminação são a Mesa Paralelo e o Sofá Gávea. Com a cadeira Ox, de assento de couro de vaca e madeira de eucalipto – ainda inédita na produção de móveis seriados –, ganhei o prêmio Movesp Ibama, em 1992, como melhor produto com madeiras alternativas.
F: Quais são seus outros interesses além do trabalho?
FJ: Tenho academia no quintal, malho, faço jardinagem, que é um exercício bom, vou mexer nas plantas, faço um monte de coisa e parece que não fiz nada! [risos] Gosto de cozinhar, fazer pizza e churrasco no quintal de casa, beber um bom vinho. Yáskara também gosta de cozinhar. Adoramos viajar, dentro e fora do Brasil. Há dois anos compramos uma das casas mais antigas na parte alta do condomínio Outeiro das Brisas, na Bahia [praia vizinha à do Espelho]. Já fomos muito para a Pousada do Toque, em São Miguel dos Milagres [Alagoas]. Na América do Sul, acho que nunca tirei tanta foto como no Deserto de Atacama [norte do Chile] – ficamos no hotel explora. Na Europa, gostamos muito da Itália, já fomos várias vezes. Na África, fazer safári em jipes abertos é demais – estivemos na África do Sul. Agora, queremos ir à Patagônia, visitar Torres del Paine [extremo sul do Chile]. Quando for possível voltar a viver como se deve.
Confira, na galeria abaixo, alguns trabalhos de Jaegger:
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Divulgação Sofá Pilar e Mesas de Centro Lótus.
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Divulgação Mesa Enseada e Cadeiras Copacabana.
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Divulgação Poltrona Astor, Sofá Brisa e Luminária Meia Lua.
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Divulgação Um dos clássicos dos 40 anos de trabalho de Fernando Jaeger: Mesa Saturno.
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Divulgação Mesa Paralelo.
Sofá Pilar e Mesas de Centro Lótus.
Reportagem publicada na edição 87, lançada em maio de 2021.
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