O que o champanhe francês e o saquê japonês têm em comum? Nada, exceto que ambos são líquidos alcoólicos com tradições altamente estabelecidas.
Mas Richard Geoffroy, conhecido como o lendário Chef de Cave (ou mestre da adega) da Dom Pérignon, uma das marcas mais prestigiadas de champanhe, onde ficou 27 anos, não via dessa forma.
Agora, toda a sua vida é dedicada à produção de saquê japonês em sua própria fábrica, cercada pelas montanhas em Shiraiwa, na província japonesa de Toyama. Mas por que e como essa mudança drástica de carreira aconteceu?
“Adorava meu trabalho na Dom Pérignon e me senti verdadeiramente abençoado. Mas provavelmente fiquei acomodado demais”, diz ele. Ele precisava de um novo desafio. Foi assim que se voltou para o saquê japonês.
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Geoffroy visitou o Japão inúmeras vezes enquanto trabalhava na Dom Pérignon e, naturalmente, provou muitos saquês excelentes. “Fiquei fascinado com a complexidade da produção de saquê. A qualidade do champanhe é determinada principalmente por seus ingredientes e técnicas. Mas, no caso do saquê, há elementos muito mais imprevisíveis para moldar seu sabor – desde a interação de diferentes micróbios como o koji e a levedura específica, o tipo de arroz de saquê e sua taxa de moagem até o layout das fermentadoras, com séculos de idade”, diz ele.
Em 2019, ele construiu sua própria fábrica de saquê chamada IWA Sake of Japan.
Saquê tradicional e fora do óbvio
Mas o objetivo de Geoffroy não era produzir outro saquê premium. “Eu não sou japonês. Com total respeito pela bela tradição japonesa, só posso seguir meu senso do que é gostoso”, diz Geoffroy.
Então, o que é um “saquê gostoso” para ele? O especialista explica: “Primeiro, eu adoraria ter um fluxo limpo e contínuo de líquido na boca, que é a característica clássica do saquê japonês. Mas também queria adicionar riqueza e reforçar a experiência do paladar.”
Nos seus dois mil anos de história, o saquê japonês sempre foi feito em torno da filosofia da pureza – a abordagem minimalista para esculpir os sabores essenciais de ingredientes preciosos. Assim como a culinária kaiseki, o objetivo é a subtração: retirar tudo o que possa diluir o potencial dos ingredientes.
Em contraste, a comida francesa é frequentemente descrita como a culinária da adição: camadas de gostos e sabores com molhos e outros componentes para obter riqueza e complexidade. O champanhe é baseado na mesma ideia.
Para concretizar sua versão do saquê ideal, Geoffroy introduziu uma ideia totalmente inovadora na produção tradicional de saquê: ‘assemblage’. Assemblage, ou mistura de vinhos base em português, é uma parte essencial do processo de produção de champanhe.
O saquê de Geoffroy chamado IWA5 é feito com vários “saquês de base”, cada um dos quais é fabricado tradicionalmente com três tipos de arroz de rótulos premium. Para a levedura, ele usa variedades de saquê e vinho, já que “as leveduras de vinho adicionam leves aromas como alcaçuz e molho de soja, enquanto as leveduras de saquê fornecem notas florais e frutadas”, diz ele. Cada tanque do saquê base tem um perfil único dos cinco sabores básicos: doce, azedo, salgado, amargo e, o mais importante, umami.
Por mais que Geoffroy incorpore elementos não tradicionais ao processo de produção, o profissional tenta intensificar os sabores japoneses. Por exemplo, ele usa dois métodos autênticos de fabricação de saquê. Uma é a forma moderna mais prevalente chamada Sokujo e a outra é o ancestral Kimoto, demorado e trabalhoso. De 70% a 80% de seu saquê é baseado neste último, já que a técnica pode fazer com que o terroir local totalmente se manifeste em suas garrafas.
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Em seguida, ele mistura esses saquês base no estilo de assemblages.
Para Geoffroy, assemblage não é só misturar. “O blend não significa necessariamente que cada componente é combinado em uma unidade harmoniosa. A harmonia é a qualidade máxima que procuro nas minhas garrafas”, afirma.
“O número 5 é um número universal de harmonia no Oriente e no Ocidente.” Portanto, seu saquê é chamado IWA5.
“Não existe receita. Nosso saquê evolui”
Geoffroy lançou três versões (ou montagens) do IWA5 até agora. Ao fazer a primeira delas, percebeu que a montagem não era suficiente para atingir seu objetivo de harmonia. Então ele decidiu aplicar outra técnica de fabricação de champanhe: a maturação em garrafa.
“O envelhecimento tornou-se um passo crucial para o nosso saquê”, diz. “Depois de pasteurizar o líquido misturado, apenas microorganismos benéficos permanecem nele. Enquanto descansam na garrafa, arredondam-se e desenvolvem sabores superiores que só o tempo pode dar.”
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A aplicação da maturação em garrafa de Geoffoy também é pioneira na produção de saquê. Alguns rótulos japoneses passam por maturação, como Hiyaoroshi, mas são amadurecidos em um tanque durante o verão, já os com uva Koshu devem envelhecer por um longo tempo para desenvolver sabores e cores distintas.
Segundo Geoffroy, não há receita para o IWA5. “Aprendemos com o processo de cada montagem e vamos refinando. Por exemplo, o Assemblage #1 era um pouco sisudo demais, então o Assemblage #2 era mais suave, redondo, floral e um pouco como o White Burgundy. O Assemblage #3 é baseado no Assemblage #1 com a adição de muitos ajustes”, diz ele. A terceira versão é feita com 20 saquês base e foi envelhecida por 20 meses.
Então, qual é o sabor do saquê com todos esses novos elementos? Como pretendido, o rótulo de Geoffroy é etéreo, rico em harmonia e te deixa com vontade de mais.
O Assemblage #3 é delicioso com uma complexidade agradável de especiarias, como pimenta branca e noz-moscada, seguidas de um sutil sabor frutado tropical de abacaxi e banana.
A textura suave e encorpada faz com que o sabor se prolongue, o que é o oposto do final efêmero do clássico saquê japonês. “O final duradouro amplifica a experiência do paladar”, diz ele.
Unindo o Japão e o mundo
A harmonia é a base do saquê de Geoffroy além do líquido em suas garrafas. “Antes de tudo, este projeto é sobre a harmonia entre as pessoas”, diz Geoffroy.
Essas pessoas incluem Ryuichiro Masuda, proprietário da quinta geração e mestre cervejeiro da Masuda Sake Brewery, fundada em 1893. Masuda foi consultor técnico de Geoffroy para a produção de saquê; e Kengo Kuma, renomado arquiteto e amigo íntimo do chef de cave, o tem apoiado de várias maneiras.
“Eu vim para o Japão sozinha com uma mala. Mas agora eu me vejo não apenas fazendo saquê. Estou misturando e unificando pessoas maravilhosas com talento, experiência e boa vontade. E todos nós compartilhamos o objetivo de fazer o melhor saquê possível. É uma verdadeira harmonia.”
Os japoneses têm sido bastante positivos e entusiasmados com a conquista de Geoffroy até agora. A mídia aprecia sua abordagem surpreendentemente nova, mas também perfeitamente tradicional para o saquê japonês e seus rótulos são altamente aprovados entre os consumidores.
“Acho que os japoneses entendem que sou sincero”, diz ele. “Eu costumava ser apenas um visitante que admirava profundamente a cultura japonesa, mas comecei a querer me tornar um colaborador.” Ele até espera transferir todo o seu negócio de saquê para o povo japonês eventualmente, com o objetivo final de fazer a ponte entre a indústria de saquê japonesa e o mundo.
“A indústria do saquê está em constante declínio. Costumava haver 4.000 fábricas na década de 1960, mas agora as operações caíram para cerca de 1.000. Dentro das minhas possibilidades, quero mudar de rumo”, afirma.
“As pessoas nas produtoras tradicionais de saquê são muito modestas e não tentam promover o suficiente seus produtos premium. Posso ajudar a trazê-los para o cenário mundial. Quero fazer com que o saquê japonês seja amplamente apreciado fora dos restaurantes japoneses.”
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Suas aspirações parecem se tornar realidade, graças à qualidade promissora do IWA5 junto com a reputação global de Geoffroy e as conexões que ele construiu na Dom Pérignon. Três anos após seu primeiro lançamento, o IWA5 já está na lista de bebidas de 40 restaurantes com três estrelas Michelin em todo o mundo – apenas nove dos 40 ficam no Japão.
Sua decisão ousada de se tornar um produtor de saquê o levou a estabelecer um propósito sólido e novo na vida. “Este é um dos momentos mais emocionantes, ambiciosos e divertidos da minha vida”, diz ele, agora com 69 anos, enquanto seus olhos brilham como se tivesse 17 anos.
“Saquê é muito mais difícil de fazer do que champanhe”
A Geoffroy’s, projetada por Kengo Kuma, está repleta de história e tradição japonesa. Modelada a partir de uma antiga casa de fazenda japonesa, ela apresenta um teto de cedro e uma grande lareira na área de recepção, representando um espaço de encontro para a comunidade. As paredes são feitas com cinzas de madeiras nativas e cobertas com o clássico papel washi feito à mão localmente. O local de fabricação fica aberto ao público, com hora agendada pelo seu site.
Depois de lançar três assemblages de saquê, pergunto qual é mais difícil de fazer: saquê ou champanhe?
“O saquê é muito mais difícil!”, ele ri. “Dizem que o saquê é mais sobre fazer do que encontrar bons ingredientes. 80% da qualidade da bebida depende do toji ou das habilidades e experiências do mestre e apenas 20% dos ingredientes. A proporção muda no caso do champanhe.”
De toda maneira, Geoffroy parece estar gostando muito do desafio e está se preparando para o próximo lançamento do IWA5 Assemblage #4 no final de 2023.
IWA5 está atualmente disponível em 31 países em todo o mundo.