“O melhor lugar do mundo é aqui. E agora.” Enquanto Gilberto Gil canta nos alto-falantes, durante uma das nove etapas do jantar/espetáculo sensorial lançado por Claude Troisgros no Rio de Janeiro, é quase irresistível pensar na jornada que levou o chef até ali. Filho de Pierre Troisgros, um dos criadores da nouvelle cuisine, o francês de Roanne desembarcou no Rio em 1979 movido por uma proposta de trabalho e pelo gosto por viagens.
Era para abrir o restaurante Le Pré Catelan e ficar dois anos. Mas o jovem chef logo se casou com uma brasileira, teve filhos, aprendeu a pescar e mergulhar, conheceu jabuticaba, aipim, goiaba e outras maravilhas. Juntou o coq au vin com o quiabo – ou técnicas da alta gastronomia com ingredientes locais – e surgiu algo inédito. “A gente abriu o caminho para uma cozinha criativa brasileira”, diz, referindo-se às descobertas que fez ao lado do amigo e parceiro profissional Laurent Suaudeau. Claude acabou se prolongando no Brasil por mais de quatro décadas (com um intervalo de seis anos em Nova York). Aqui construiu uma carreira de sucesso a um oceano de distância do restante da família, que se mantém como uma das mais renomadas da gastronomia mundial. Agora acompanha – de perto em alguns negócios, de longe em outros – a nova geração escrever as próprias linhas nessa história.
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Entre os capítulos recentes da saga dos Troisgros no Brasil está o Mesa do Lado. Inaugurado em agosto, o jantar “secreto” no Leblon recebe 12 clientes por vez. Depois de cruzar uma passagem escondida na cozinha do restaurante Chez Claude, os comensais experimentam duas horas e meia de gastronomia autoral acompanhada de projeções nas paredes, música e poesia. Com direção artística de Batman Zavareze (que assina também shows como o de Marisa Monte), a refeição se divide em três atos e custa R$ 1.240 por pessoa, incluindo harmonização com bebidas. “Há muitos anos tenho refletido sobre o que pode influenciar no sabor”, diz Claude. “Então comecei a pensar em fazer um chef’s table tentando – através de sons, cheiros, memória, saudade, história – influenciar o que a pessoa está comendo.”
Artistas como a cantora Roberta Sá, a violonista Samara Líbano e a atriz Camila Pitanga gravaram performances para o jantar, assim como o próprio Claude, com aquele sotaque carregado que nem 40 anos de Brasil tiraram. Outros tantos famosos costumam dividir com anônimos os poucos lugares disponíveis. E todos embarcam em uma viagem sensorial pela história do chef enquanto comem de biscoito de polvilho ao curry com creme de trufa a escalope de salmão com molho de azedinha – receita icônica de Pierre Troisgros degustada ao som de Iggy Pop cantando La Vie en Rose. Outro destaque: o curioso “este prato não tem nome”, que pode não ter nome, mas tem uma instigante profusão de elementos, com ostra, tomate, abacate, ova, salicorne, flor e queijos de cabra e cuesta azul. É, de alguma forma, um retorno do chef à alta gastronomia. O Olympe, que chegou a ter uma estrela Michelin, fechou na pandemia. E Claude faz tempo que não é só cozinheiro – ele se ocupa com vários negócios, incluindo a carreira como apresentador de TV e garoto-propaganda (é embaixador da BMW, por exemplo). Mas agora está apaixonado pelo novo projeto na cozinha. “Não consigo sair daqui. Me pergunto: será que todo esse trabalho de 48 anos de profissão está aqui dentro, nestes 30 metros quadrados? Tenho um pouco essa sensação de que botei em uma caixa toda a minha vida profissional, até a pessoal.”
Isso não significa que pense em parar. “Tenho 66 anos e minha vida foi sempre criar, inovar, pensar em um novo conceito. Depois que ele está feito, vou pra outro.”
FRANCO-CARIOCAS EM SÃO PAULO
Paralelamente aos negócios no Rio, a história brasileira dos Troisgros se desenrola em São Paulo, em um complexo gastronômico que vem recebendo novos componentes. Sociedade entre Claude, o filho Thomas e Marcelo Magalhães (do grupo gastronômico Alife-Nino), o Le Quartier, no Itaim, começou em 2020 com uma unidade do Chez Claude (que se define como de “cozinha autoral casual”). Agora tem também o Boucherie, focado em grelhados, e o Bar du Quartier, aberto em agosto. O próximo a abrir é um bistrô.
Pai e filho dividem as atenções entre as casas paulistanas. No Rio, no entanto, eles separaram os negócios. Claude ficou com o Mesa do Lado, o Chez Claude e o Do Batista e cedeu o CT Boucherie, o CT Brasserie e o Le Blond para a geração seguinte. Sua filha, Carola, preferiu não dividir as operações com o irmão – quem virou sócio de Thomas foi o marido dela, Marcos Porchat. “A Carola está fazendo o caminho dela”, diz Claude. “Começou a voar sozinha produzindo bolo na pandemia e está crescendo. Tem ido muito bem no mercado da televisão também [ela fez uma temporada do programa Que Marravilha, do GNT, com o pai].“ Mesmo antes de sair do contrato de parte dos estabelecimentos, Claude já tinha se afastado da cozinha do Olympe. “Comecei a entender que eu precisava sair para deixar o Thomas evoluir. Senão ficava muito ele criando e o pai recebendo os louros”, diz. “Hoje em dia ele tem maturidade e idade suficientes para seguir com as próprias asas. Nesse processo, posso atrapalhar muito.”
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Aos 41 anos, Thomas conhece bem o peso do sobrenome Troisgros – para o bem e para o mal. Cresceu cercado por chefs por todos os lados, além de cozinheiros de outras patentes, garçons e maitres. “Eu ia comer na Maison Troisgros na hora do almoço”, diz, relembrando o período de um ano e meio em que morou na França e fazia refeições no estabelecimento triestrelado da família no intervalo da escola. Acostumou-se a ver reservas em seu nome acenderem alertas nas cozinhas dos restaurantes. Sabe que ser filho (e sobrinho e neto e bisneto) de um ícone da gastronomia ajudou a conseguir estágios (o primeiro aos 12 anos) – mas enfrentou a cara feia de colegas também por isso. Formou-se pelo The Culinary Institute of America, seguindo conselhos de amigos do pai, como Daniel Boulud e Paul Bocuse. “É uma escola em que, além de cozinha francesa, você vê culinária mundial, você vê tudo. E tem o lado business.”
Por mais que tenha trabalhado (e ainda trabalhe) com o pai, Thomas encontrou um nicho só dele. Há 9 anos, abriu, em sociedade com André Meisler, o T.T. Burger, que tem além de franquias em Niterói e em Brasília e planos para abrirem outros três estados. Cada T.T. se desdobra em outras três marcas on-line: Tom Ticken (especializada em frango), Três Gordos (de smash burger) e Marola (de pescados). “Escolhi um caminho que ninguém na minha família tinha trilhado, que é o do fast food”, diz. “Consegui tirar o meu nome debaixo da sombra do meu pai. Não é ‘Thomas, filho do Claude’; virei ‘Thomas, hamburgueiro’.”
Com Claude, ele diz ter aprendido a fazer sempre um mix de comida um pouco mais comercial e comida conceitual. “Porque você tem dois tipos de cliente: o que não gosta de sair da zona de conforto e o que gosta.” Mas ele vê diferenças no estilo de pai e filho, claro. “Eu sou mais nova-iorquino em querer replicar meus negócios. Meu pai já é mais criatividade, quer sempre criar negócios novos. A gente vai juntando a cabeça dos dois e tentando multiplicar.”
Em seu caminho à parte, Carola também leva lições familiares para a cozinha. “É um privilégio: a gente come muito bem e tem todo esse entendimento da criatividade, do pequeno produtor, de dar valor à comida.” Aos 39 anos, ela lembra que tentou tomar outro rumo que não o da cozinha. “Planejei para mim uma história completamente diferente”, conta. “Fiz publicidade, trabalhei muito tempo com produção de eventos, de filmes e fotos. Aí fui trabalhar nos restaurantes para fazer exatamente isso, eventos. Inserida naquele ambiente, comecei a me interessar pelos doces. Fui fazer uma aula de bolos e aí foi muito orgânico, as coisas foram acontecendo.”
Ela até estagiou na confeitaria do restaurante do pai, mas sentiu que não era esse doce supertécnico que gostaria de fazer. “Eu vendia no boca a boca, era meio que um hobby. Veio a pandemia, comecei a postar receitas e fazer lives. Mas sempre buscando esse lado artesanal, afetivo, de resgate de memórias, e não o mundo gastronômico de restaurantes. A minha pegada é bem diferente do que a família Troisgros anda fazendo há anos. Mas não deixa de ser dentro da cozinha e com muito amor.” Claude, que, se fosse pelo gosto do pai, teria retornado à França para atuar ao lado do irmão, tenta não exercer a mesma pressão, mas fica feliz de ver os filhos na cozinha. “No fundo, não voltei [para a França] para fugir da responsabilidade familiar”, diz. “Fico muito orgulhoso de ter filhos que continuaram a profissão, mas principalmente de ter filhos que decidiram não depender mais de mim. É uma evolução e mostra o caráter de cada um.”
(Matéria publicada na edição 104, de novembro de 2022)