A imaginação está intimamente ligada à criatividade e à habilidade de criar imagens mentais. Segundo a ciência da imaginação, baseamos a construção do nosso mundo perceptível em informações incompletas que resultam do reconhecimento parcial da realidade, mas que corresponde às nossas necessidades e se adapta à nossa visão pessoal e ao nosso comportamento. Freud entendeu isso e mais ainda seu pupilo Carl Jung. Anos depois o escritor e teórico francês André Breton (1896-1966), autor do Manifesto Surrealista, no final de 1924, expandiu as revolucionárias conclusões a todas as manifestações artísticas, moldando o Modernismo no século 20. A vanguarda da época, os surrealistas, ficou fascinada com a interpretação dos sonhos. Viram a descoberta como uma nova fronteira a ser explorada, um caminho para o misterioso universo de sentimentos e desejos do inconsciente até então incompreensível, intocável, amedrontador, vexaminoso.
Terminando o ciclo da programação de 2024, nossa galeria no Rio apresenta “Gerardo Rosales: Caçador de fábulas” e, em São Paulo, encerramos na mesma data, 18 de janeiro, a individual “Thiago Barbalho: Segredos e feitiços”. O elo entre ambos vem do fato de Rosales e Barbalho, cada um nascido em um país diferente e de gerações distintas, liberarem suas imagens mentais em suas linguagens peculiares com uma multiplicidade de símbolos. Nenhum dos dois afirma alguma influência do surrealismo que, a bem da verdade, foi pouco difundido na América do Sul. Mas não fosse o movimento idealizado por Breton, a magia da mente não teria contribuído, como faz até hoje, com todas as formas de Arte.
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O venezuelano Luis Pérez-Oramas, curador da individual carioca de Rosales, artista multidisciplinar e educador de 57 anos, que trouxe para nosso espaço em Ipanema 44 obras entre pinturas sobre papel, um grande painel e um livro de artista, conceitua assim a arte de seu conterrâneo, que se destaca pelo imaginário florestal, homoerótico e fantástico: “Seu objetivo final, talvez, seja questionar uma certa ideologia de inocência com a qual nós, humanos de nosso tempo, transformamos a infância em uma fantasia original. Contra isso, as obras de Rosales nos lembram, por meio da beleza luminosa de suas treliças ornamentais, que nunca houve realmente uma origem desconhecida ou uma era de inocência; que a humanidade sempre, para sempre, foi marcada e destinada pela posse e pelo desejo, por sua exultação e sua ansiedade, por sua pequena morte diária e seu paraíso instantâneo e provisório.” Atualmente, Rosales vive e trabalha em Houston, EUA.
Nascido em Natal, em 1984, Barbalho iniciou sua trajetória profissional como escritor e, segundo ele, ”o desenho veio do processo de insatisfação com a escrita, do esgarçamento dessa relação.” A crítica e curadora paulista Kiki Mazzucchelli explica a obra do artista potiguar, que compreende pintura, desenho, escultura e instalação: “Ao trabalhar essencialmente com desenho, Barbalho produz composições extremamente intricadas, porém não planejadas, nas quais imagens, símbolos e campos de cor se fundem umas nas outras para criar superfícies vibrantes ininterruptas”.
Surrealismo, origens de 1920 a 1950
O movimento surrealista comemora o primeiro centenário. À primeira vista falar dele parece fora de propósito. Ledo engano. À luz da ótica contemporânea, este movimento plástico, polivalente, paradoxal, resultou do caos gerado pela Primeira Guerra Mundial (1914-1917), que assolou a Europa, impactando o mundo todo, trazendo o surgimento do nazismo na Alemanha, a queda da Bolsa de Nova York de 1929, afetando a economia mundial, inclusive a do Brasil, desde o final do século 19 dependente das exportações da monocultura do café. O crash da Bolsa enterrou o poder oligárquico da política do café com leite dos barões do café paulista e do leite mineiro, iniciando um novo ciclo: o da borracha.
Conectando o surrealismo às nossas vidas, o paralelo se estende ao caos da política mundial, ao radicalismo de direita com o crescimento dos movimentos neonazistas, à crise climática que se instalou parecendo filme de Hollywood – claro, causada por nossos hábitos, nosso sistema – mas quem diria tão cedo se tornaria realidade? Quem pensaria estar em meio a uma pandemia como a da Covid 19? O sufragismo feminino de nossas avós e bisavós libertou-as do peso do passado, permitiu o voto feminino, a moda da saia curta, do cabelo curto. Agora elas podiam rebolar ao som do jazz, curtir mais plenamente, viver menos subjugadas à tantas regras sufocantes. Nós, suas filhas, netas, bisnetas, herdamos esses avanços significativos e fomos adiante quebrando mais barreiras até a tomada de posição e conscientização dada pelo movimento #MeToo, iniciado em 2017, contra a cultura de agressão sexual, a favor de maior igualdade social, paridade salarial, justiça e respeito a todos independente de credo, raça, idade e opção sexual, pelos quais continuamos a batalhar.
Desde o final de 2024, entrando em 2025, alguns museus internacionais celebram esse movimento de vanguarda do modernismo de valorização do inconsciente, que permitiu a todas as manifestações da arte a criação de uma “realidade paralela”. Com certeza, um escapismo necessário. Em Bruxelas, o Museu Magritte guarda o filé mignon do icônico mestre belga, incluindo a célebre, “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo), de 1929, ironizando a pretensão do realismo de mostrar a vida como ela é, o que não é possível. Duas das maiores feministas do surrealismo estão sendo celebradas de janeiro a junho em duas cidades, em dois países. A obra da musa suíça Leonor Fini (1907-1996), criadora de inúmeros acessórios e estampas para a couturière mais surrealista da moda, a italiana Elsa Schiaparelli (1890-1973), em breve aterrissa em Milão no Palazzo Reale. Do outro lado do Atlântico, as telas da cultuada inglesa Leonora Carrington (1917-2011), nascida na Cidade do México, estará nos arredores de Boston no Rose Art Museum.
SERVIÇO
Thiago Barbalho: Segredos e feitiços
Até 18 de janeiro, 2025
Galeria Nara Roesler/SP
Avenida Europa 655, São Paulo
Gerardo Rosales: Caçador de fábulas
Até 18 de janeiro, 2025
Galeria Nara Roesler/Rio
Rua Redentor 241, Ipanema, Rio de Janeiro
Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte, premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) [email protected]
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
[email protected]
Instagram: @galerianararoesler
http://www.nararoesler.com.br/
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