
Num desses domingos me deliciei com o programa Barroco Contínuo na Radio Cultura FM sobre madrigais, gênero musical que surgiu na Renascença italiana que expressa o ápice do lirismo vocal à capela (sem acompanhamento instrumental). Embalada pela malemolência e pelas vozes celestiais, refleti sobre a pintura de Fabio Miguez, em individual até meados de abril em nossa galeria novaiorquina. O interesse do ex estudante de arquitetura pela arquitetura é uma constante em sua trajetória. Na individual pode ser constatado em suas obras de pequeno formato (a partir de 24 cm) e nas maiores, como na tela Sem título (Casa Ohtake), de 2024, a maior delas, inspirada na sala de estar da residência de Tomie Ohtake (1913–2015), projeto emblemático do brutalismo paulistano assinado por seu filho Ruy Ohtake.
Pensei na relação da obra do pintor, oriundo do grupo Casa 7 nos anos 80, com o período da arte toscana, centrada ainda em Siena, antes de Florença assumir a liderança com Da Vinci e Michelangelo, abordado na exposição Siena: The Rise of Painting, 1300-1350 (Siena: a ascensão da pintura), na National Gallery em Londres, até junho, grande sucesso de público e crítica.
Você entenderá a menção à exposição londrina ao ler abaixo o texto sobre a individual de Miguez, assinado pelo historiador, poeta e crítico, Luís Perez-Oramas, autor da curadoria. Mas antes, eis como o próprio Miguez resume sua proposta de pequenos e grandes formatos cuidadosamente pintados em luminosa tempera (tinta artesanal introduzida no século 12, na pré-Renascença). “A exposição se estrutura em três séries que se complementam: Piero della Francesca, com ‘decupagens’ da vista de Arezzo feita pelo pintor do século 15; Maranhão, a partir da observação do casario abandonado de São Luís e, por fim, a série Dobras/Paramentos, em maior formato, que busca trazer, agora de forma abstrata, a materialidade dessas construções”.
Segue o belo texto de Oramas sobre Ichnographies de Miguez, publicado na íntegra:
Ichonografia é o termo utilizado por Vitrúvio, engenheiro militar e arquiteto da época de Júlio Cesar, e autor do tratado sobre arquitetura – De Architectura – para dar nome à planta projetual de um prédio. Devemos ao poeta e arquiteto Charles Perrault a reflexão que segue, inspirada no tratado romano: “Em francês, Iconografia significa vestígio, o traço que a planta do pé deixa na terra, que hoje utilizamos para indicar a planta de um prédio”. Através desse atalho discursivo, Perrault implicava que o conceito de prédio (sua ideia), em último caso coincide com sua ruína, ou seja, com o traço a ser deixado por esse mesmo prédio ao se transformar em ruína.

Fabio Miguez, Sem título, 2017, tinta a óleo e cera sobre tela, 80x70cm
Arquitetura e a pintura estão na tradição ocidental inextricavelmente vinculadas. Chama a atenção que o primeiro tratado sobre pintura tenha sido escrito por um arquiteto, Leon Battista Alberti. “Falo como pintor”, descreve-se o arquiteto e teórico no início do texto Da Pintura (1435), que pela primeira vez considera a ideia, baseada na matemática e na geometria, ser a pintura uma arte liberal, e o dedica a outro arquiteto, Filippo Brunelleschi. “Leia-me com atenção e, se for o caso, corrija-me”, implora Alberti ao amigo na dedicatória.
Fabio Miguez (n. 1962), um dos pintores mais importantes de sua geração, tem dado enfoque à pintura e à arquitetura ao pintar arquiteturas nos últimos anos. O paradoxo que incita sua obra: a arquitetura da pintura – seu poder de apresentação como um campo estruturado de representação, mesmo tridimensionalmente – e consequentemente a pintura de arquiteturas, traz em si a questão ambígua da representação mimética e da abstração. Com magistral controle dos elementos que compõem a pintura em si, como o extremo cuidado com que executa texturas e planos cromáticos, assim como a precisão nas composições, Miguez representa imagens de prédios e estruturas que ainda hoje admiramos em obras dos mestres fundadores, os primeiros humanistas, admirados igualmente por Alberti e Brunelleschi, como Sassetta, Piero della Francesca, Fra Angelico e Giotto.

Fabio Miguez, Sem titulo (Maranhão), 2024, tinta a óleo e cera sobre linho, 30x30cm
Apesar de poeticamente partir da História da Arte, a pintura de Miguez está firmemente fincada na linguagem contemporânea. Se na presente individual, a série de pinturas que abre a exposição são baseadas nas arquiteturas vistas em afrescos e painéis em madeira de Piero della Francesca, é uma nova série representando a arquitetura vernacular do Maranhão que encerra o circuito expositivo de sua individual. Alguns trabalhos em grande formato, intitulados ‘Dobras-Paramentos’, possuem áreas de cor em estruturas abertas que lembram plantas arquiteturais monocromáticas. Podemos dizer que este grupo se refere literalmente à Ichonografia mencionada no início deste texto. São obras que resumem o poder da pintura de abraçar, ao mesmo tempo, em cada imagem, tanto a ideia da planta como a da ruína, do início e do fim, do passado e do devir.
(Versão em português por Cynthia Garcia, autorizada pelo autor)

Fabio Miguez, Sem titulo (Maranhão), 2024, tinta a óleo e cera sobre linho, 30x30cm
SERVIÇO
Fabio Miguez: Ichnographies
Curadoria de Luís Perez-Oramas
Até 19 de abril de 2025
Galeria Nara Roesler, Nova York
Com colaboração de Cynthia Garcia, historiadora de arte, premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) [email protected]
Nara Roesler fundou a Galeria Nara Roesler em 1989. Com a sociedade de seus filhos Alexandre e Daniel, a galeria em São Paulo, uma das mais expressivas do mercado, ampliou a atuação inaugurando no Rio de Janeiro, em 2014, e no ano seguinte em Nova York.
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