Doze anos, três meses e 25 dias depois, Luiz Inácio Lula da Silva voltou a desfilar no Rolls-Royce Silver Wraith 1952 presidencial, na cerimônia de posse para seu terceiro mandato como presidente da República. O último encontro havia sido em 7 de setembro de 2010, no segundo mandato do petista.
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Praxe nos rituais de posse e na festa da Independência, o cortejo virou incerteza após declaração da agora primeira-dama, Rosângela da Silva. “O presidente Lula estará no carro aberto, como é o protocolo, se o Rolls-Royce estiver em condições, porque parece que ele foi danificado na última posse”, disse Janja em entrevista coletiva, no último dia 8, se referindo ao evento de 1º de janeiro de 2019, quando o agora ex-presidente Jair Bolsonaro assumiu o cargo.
Na última sexta-feira (30), a coluna conversou com Eduardo Lambiasi, especialista em carros ingleses que visitou o Rolls-Royce presidencial em julho último e garante que o veículo está “muito melhor do que imaginava”, apenas com marcas do tempo previsíveis, como a capota já sem o viço de outrora.
O que poderia ter quebrado para imobilizá-lo?, perguntei.
“Não consigo imaginar, no carro que vi, algo que o impedisse de rodar. Talvez um problema mecânico, que dependesse da importação de alguma peça. Mas pelo que vi está muito bem mantido, funcionando perfeitamente”, afirmou Lambiasi.
Ele e a esposa, Vera, comandam a R&E Restaurações, em 2001 designada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso a dar uma levantada no Rolls-Royce, à época com 27 mil quilômetros rodados. “A parte mecânica havia rodado muito pouco, pela qualidade que tem. Fizemos apenas uma manutenção básica”, conta Lambiasi.
Na mesma sexta-feira, recebi a confirmação do que me dissera Lambiasi. “Informamos que o veículo Rolls-Royce, que é utilizado nas cerimônias de posse presidencial, encontra-se em perfeitas condições de funcionamento, situação que se mantém na presente data”, dizia o comunicado oficial da Secretaria Geral da Presidência da República.
Presente da Rainha Elizabeth?
Polêmicas e mitos acompanham desde sempre o Rolls-Royce Silver Wraith presidencial, começando pelo motivo que o trouxe ao Brasil.
“A realidade foi sendo substituída por várias lendas que foram tomando corpo e substituindo os verdadeiros fatos. O resultado deste processo de desinformação coletiva – de forma proposital ou não – fez crer ao público que o automóvel conversível havia sido um presente da Rainha Elizabeth II ao presidente Getúlio Vargas, em 1953”, concluem José Vignoli e Sérgio Ribeiro, colecionadores e pesquisadores que conduziram um estudo sobre o modelo.
Afinal de contas, a rainha Elizabeth II foi coroada em 2 de junho de 1953. “Isto nos leva a concluir que quando de sua coroação os automóveis já haviam inclusive sido entregues. Cabe lembrar que a Presidência confirmou o pedido em 1º de fevereiro de 1952 e a Rolls-Royce o recebeu entre fevereiro e abril de 1952 e finalmente iniciou o embarque dos automóveis para o Brasil no início de 1953. Também cabe considerar que a princesa não teria nenhuma razão e, talvez, nem poder, para presentear com dois automóveis Rolls-Royce o presidente de um país que, inclusive, estava com sérios problemas com relação às dívidas acumuladas junto à Inglaterra”, ponderam.
Até aqui a mais abrangente e detalhada já produzida, a pesquisa incluiu uma visita ao automóvel nas garagens do Palácio do Planalto, análises de arquivos fotográficos e de jornais, visitas à Receita Federal, consultas na Biblioteca Nacional, conversas com especialistas em Rolls-Royce na Inglaterra e entrevistas – uma delas com Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha de Getúlio Vargas.
“História do Rolls-Royce da Presidência da República” revela que em 1951 – ano do segundo mandato de Getúlio Vargas – o Major Ene Garcez dos Reis, chefe do pessoal da Presidência da República e responsável pelo Serviço de Transportes da Presidência, recebeu ordens do próprio Vargas para providenciar substitutos para os dois Cadillacs que o serviam.
Os escolhidos – um conversível e um fechado – foram os modelos Silver Wraith, que a Rolls-Royce lançara em 1946 e produziria até 1958. Vinham com motor de 4.257 cm3 e seis cilindros em linha, câmbio de quatro marchas e rodas de 16 polegadas, mas sem direção hidráulica. Aqueles destinados à Presidência ofereciam distância entre-eixos maior, de 3,378 metros, e somaram 639 unidades fabricadas.
Como muitas marcas de luxo da época, a Rolls-Royce vendia apenas o chassi, que depois recebia carroceria e interior encomendados de encarroçadoras como Brewster, Vanden Plas e Park Ward, entre outras – neste caso, o “corpo” é da H.J. Mulliner.
E o carro da Presidência ainda conta com customizações para melhor desempenhar seu serviço: plataforma no para-choque traseiro para suportar o peso dos seguranças, mastros para o uso de bandeiras nos para-lamas dianteiros e velocímetro no compartimento traseiro.
De acordo com o levantamento da dupla Vignoli e Ribeiro, o modelo fechado custou à época 6.205 libras, enquanto a limusine aberta saiu por 7.949 libras, valores que incluem chassi, carroceria, extras, frete e seguro.
“Para se ter uma ideia de valores, com o preço do conversível seria possível comprar, na época, na Inglaterra, algo como sete exemplares do Jaguar XK 120”, avaliam. Responsável pela importação foi a Companhia Comercial de Motores e Veículos, que à época já representava por aqui outras marcas inglesas, como MG, Morris-Oxford, Wolseley e Riley.
Outra polêmica ao redor dos Rolls-Royce é que os carros foram faturados e emplacados em nome do presidente Getúlio Vargas, que pretendia doá-los à Presidência da República quando seu mandato chegasse ao fim.
“Neste momento, o Chefe do Gabinete Militar, General Aguinaldo Caiado de Castro, determinou que os automóveis fossem relacionados no Serviço de Transportes da Presidência da República, inclusive emplacando-os com placas oficiais e baixando-se assim, nos órgãos de trânsito, as placas particulares”, revela a pesquisa dos colecionadores.
O problema é que Vargas se matou, em 24 de agosto de 1954.
“Aí se inicia outra fase na história dos Rolls-Royce. A tal doação planejada pelo presidente nunca chegou a se concretizar e consequentemente os automóveis continuaram a pertencer ao cidadão Getúlio Vargas. Após sua morte, seus herdeiros reclamaram ao governo a entrega dos automóveis que lhes pertenciam”, contam Vignoli e Ribeiro.
O imbróglio só se resolveu em junho de 1957, já no governo Juscelino Kubitschek, quando o exemplar fechado (que hoje pertence a um colecionador) foi entregue à família de Vargas, em troca da permanência do conversível no Serviço de Transportes da Presidência.
No próximo dia 1º de maio o Rolls-Royce Silver Wraith presidencial completará 70 anos de serviços aos presidentes do Brasil – a primeira missão foi nas comemorações do Dia do Trabalho, em Volta Redonda (RJ) –, tendo no currículo a condução de vários líderes estrangeiros, como General Manoel Odria (presidente do Perú), Rei Balduino da Bélgica, General Charles de Gaulle (presidente francês) e a própria rainha Elizabeth II.
Para Vignoli, o Silver Wraith presidencial ainda tem um longo caminho pela frente: “nada de aposentadoria! Temos isso como uma das poucas tradições no Brasil. Que viva por muito tempo mais”.