Depressão e vício são problemas de saúde mental enfrentados por milhões de pessoas em todo o mundo. No entanto, a cultura popular e os meios de comunicação muitas vezes têm dificuldade para retratar essas questões de forma realista. Acabam esbarrando no sensacionalismo para chocar e entreter ou minimizando a sua complexidade para simplificar o enredo.
Mas duas séries da Netflix – ironicamente, totalmente diferentes uma da outra – quebram esses estereótipos e representam desafios de saúde mental de maneiras corajosas. É por isso que ambas foram aclamadas por psicólogos por seus retratos genuínos dessas lutas.
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1. BoJack Horseman (2014–2020)
“BoJack Horseman” é uma série animada de humor ácido que acompanha a vida de uma estrela de sitcom dos anos 1990, lutando para encontrar um propósito em um mundo que seguiu em frente sem ele.
No programa, humanos e animais antropomórficos coexistem. A história narra as batalhas de BoJack contra a depressão, o vício e as consequências de seu comportamento autodestrutivo. Ao longo de seis temporadas, a série retrata os altos e baixos das tentativas de BoJack de encontrar felicidade e significado.
Comédias e animações muitas vezes banalizam ou menosprezam a depressão e o vício, usando essas questões como meros artifícios para o humor ou simplificando-as para evitar desconfortos no público.
Personagens com essas lutas são frequentemente retratados de maneira unidimensional, reduzindo suas complexidades a uma série de piadas. Essa abordagem pode fazer com que a representação da saúde mental pareça superficial e distante das duras realidades enfrentadas por aqueles que sofrem com essas questões.
Ao contrário dessas representações, pesquisas sobre depressão e dependência destacam o quão intimamente ligadas elas estão, e como aqueles que sofrem de ambas têm menos qualidade de vida.
A depressão pode se manifestar como uma condição persistente e debilitante que afeta todos os aspectos da vida de uma pessoa, enquanto o vício pode levar a um ciclo de autodestruição difícil de quebrar.
Simplificar essas experiências é um desserviço aos telespectadores – especialmente àqueles que são pessoalmente afetados por elas – porque não consegue representar com precisão o profundo impacto que tem nas carreiras, relacionamentos e bem-estar.
Os criadores do programa abraçam a confusão e o desconforto que acompanham essas lutas, apresentando um protagonista que é humano e falho. A jornada de BoJack é repleta de momentos de autoconsciência e regressão, refletindo o caminho não linear que muitas pessoas com desafios de saúde mental vivenciam.
Pesquisadores elogiam a série por sua representação autêntica, observando que “BoJack permite que o público descubra um livro de memórias muito confessional das batalhas da saúde mental”.
BoJack – um alcoólatra com masculinidade ferida que às vezes luta contra o orgulho, o narcisismo e a toxicidade – é retratado com uma profundidade que evita generalizações. A série não busca identificar uma causa única para o trauma sofrido por seus personagens, reconhecendo que tal representação seria negligente e contraproducente para aumentar a conscientização e reduzir o estigma das doenças mentais.
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2. O Gambito da Rainha (2020)
“O Gambito da Rainha” gira em torno de Beth Harmon, uma órfã prodígio que ganhou destaque no mundo do xadrez, dominado pelos homens durante a década de 1960. Paralelamente à sua busca pelo domínio do jogo, Beth enfrenta questões pessoais, incluindo a dependência de tranquilizantes e álcool, decorrentes de sua infância traumática e das pressões do seu talento.
As séries costumam abordar a depressão e o vício com sensacionalismo para criar narrativas mais impressionantes. Frequentemente enfatizam aspectos sexuais, violentos ou chocantes para melhorar o enredo e a teatralidade, e muitas vezes simplificam o processo de recuperação para mostrar como a pessoa finalmente triunfa. Essa abordagem pode resultar num retrato distorcido que ignora a complexidade e a luta contínua inerente a essas questões – reduzindo-as a pontos dramáticos da trama em vez de experiências reais.
Pesquisas indicam que o abuso de drogas e a depressão são comuns entre jovens superdotados e de alto desempenho – com até 23% atendendo aos critérios de diagnóstico de abuso ou dependência de substâncias. Essas condições dificilmente são lineares como sugerem as representações mediáticas; em vez disso, muitas vezes são batalhas que duram a vida toda, confusas e profundamente solitárias. Pessoas de alto desempenho podem enfrentar grandes pressões e isolamento, o que pode agravar as suas batalhas com a saúde mental e o abuso de substâncias.
“O Gambito da Rainha” subverte esses retratos estereotipados com sua descrição corajosa de como essas lutas podem ser isoladas e implacáveis para pessoas como Beth Harmon.
Uma pesquisa do British Journal of Psychiatry observa que, “embora alguns tenham argumentado que a descrição da recuperação de Beth do vício não é realista, essas críticas não reconhecem a apresentação detalhada dos fatores que levam ao uso de substâncias de Beth e à subsequente sobriedade”.
Em vez de abordar com sensacionalismo ou banalizar as suas lutas, a série mostra como o uso de substâncias é consistentemente desencadeado pela vergonha, ansiedade e isolamento – detalhando cuidadosamente os fatores que contribuem para o vício e depois para a sua sobriedade.
Segundo os autores, essa representação está alinhada com os padrões da vida real – onde a resolução de questões subjacentes é a parte mais importante da recuperação do vício. A representação difícil de assistir, mas verdadeira, faz de “O Gambito da Rainha” uma série importante para compreender e discutir a saúde mental.
*Mark Travers é colaborador da Forbes US. Ele é um psicólogo americano formado pela Cornell University e pela University of Colorado em Boulder.