
Grande parte dos vinhos da região Minervois, no sul da França, chamam atenção. Mas um com um rótulo em especial consegue atrair mais olhares. É o Le C – Le Rouge des Oubliés, ou O Tinto dos Esquecidos, que apresenta variedades de uvas pouco conhecidas, como Riveyranc Noir, Riveyrenc Verdal, Morrastel Noir à Jus Blanc e Œillade Noire, que são cultivadas por Cécile Delucchi e a sua mãe, Patricia Boyer-Domergue, que juntam administram o Clos Centeilles. Hoje, a propriedade possui 20 hectares de área total, e abriga 12 hectares de vinhas, além de amendoeiras, carvalhos, vegetação rasteira e trilhas para caminhada.
A origem do nome do vinhedo é incerto. “Clos” significa uma área cercada, algo confirmado por um extenso muro de pedra que circunda a propriedade. “Centeilles” é o nome de uma igreja de pedra do século 13 situada no local, provavelmente batizada com base em um dialeto local que significa “brilho” — uma referência à forma como o telhado da igreja reluz ao amanhecer e ao entardecer.
Das 23 variedades de uvas cultivadas, 16 podem ser consideradas “raras e esquecidas”. A maioria era cultivada em séculos passados, mas raramente é plantada hoje em dia. Entre elas estão quatro tipos de Riveyrenc (nomeadas de acordo com a cor), Araignan Blanc, Clairette Rose, Picpoul Gris e Noir, Aramon Gris, Œillade Noire e Morrastel Noir à Jus Blanc.
O começo de tudo
Patricia cresceu entre Cannes e Paris, até se mudar para a região de Languedoc, no sul da França, dentro da denominação de vinhos Minervois La Livinière, próxima à cidade de Siran. Em 1990, ela adquiriu a propriedade de vinhedos Centeilles, que na época cultivava, entre outras, a variedade Cinsault. Cécile contou que seu pai ficou surpreso ao ler livros antigos sobre a região.
“Ele estava lendo um livro sobre o Languedoc dos séculos 17 e 18, que descrevia o vinho local como elegante e refinado. Ele pensou: ‘Era assim mesmo? Nada parecido com o que eu estou bebendo agora.’ Então, ele começou a pesquisar e a aprender os nomes das uvas em línguas locais. Tornou-se parte de uma equipe dedicada a recuperar vinhas antigas da região sul do Languedoc e buscava uvas que haviam sido ‘perdidas’ com o tempo”, diz Cécile.
As uvas descobertas pelo seu pai foram levadas para o Domaine de Vassal, uma estação experimental francesa localizada no sul da França, parte do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica em Montpellier, que abriga uma das maiores coleções de videiras do mundo dos últimos 150 ano. Agora, essas vinhas estão em processo de transferência para outra unidade experimental, Pech Rouge, perto da cidade de Gruissan.
Após o envolvimento do então marido com as uvas raras, Patricia compartilhou esse mesmo interesse. Enquanto ele ensinava viticultura, ela fundou o vinhedo e a vinícola.

O nome do vinhedo homenageia uma igreja de pedra do século 13 situada no local
“O pai da Cécile leu muitos textos antigos e estudou as variedades de uvas”, explicou Patricia. “O que era difícil, porque no século 18 a ampelografia ainda não existia. Fizemos pesquisas e escolhemos as variedades que temos hoje”. A ampelografia é a ciência que identifica e classifica as variedades de uvas.
“Sou do Languedoc. É realmente minha terra natal. O que eu queria mesmo era redescobrir o patrimônio da nossa região em uma época em que ela era gloriosa. Tenho interesse nas uvas que existiam aqui”, diz Patricia.
Ao longo dos séculos, muitas variedades desapareceram do uso comum por causa de doenças e interesses comerciais. Na metade do século 19, o pulgão filoxera devastou vinhedos no mundo inteiro. Quando surgiram métodos para contornar o problema, passaram a ser priorizadas vinhas resistentes a doenças, e as mais vulneráveis foram abandonadas. Como resultado, a biodiversidade das uvas cultivadas despencou.
Os viticultores começaram a favorecer variedades que produziam vinhos escuros e com maior teor alcoólico. Isso porque os comerciantes pagavam pouco pelo suco, o que incentivava os produtores a adicionarem água ao vinho para aumentar o volume e, com isso, o lucro. Uvas que produziam suco mais claro ou com baixo teor alcoólico foram deixadas de lado e “esquecidas”.
Por exemplo, as uvas Riveyrenc passaram a ser rejeitadas, pois, segundo Cécile, “se você colocar um balde de água em um tanque de Riveyrenc, vai perceber na hora.” Diluir vinho comercial com água é ilegal na França desde 1907. Mas nos séculos 18, 19 e parte do 20, a prática era comum.
Patricia viveu uma parte desse contexto. Após a filoxera, “ninguém replantou as uvas que foram perdidas porque produziam vinhos com baixo teor alcoólico. 60 anos atrás, ainda se misturava água ao vinho, e a única região que conseguia fazer isso era o sul da França”, explicou, sugerindo que as condições climáticas quentes permitiam produzir vinhos com maior teor alcoólico — ideais para diluição.
“Não foi só no Languedoc. Também aconteceu na Provença e em todo o sul. Começaram a fazer vinhos em massa para poder misturar com água. Passei um ano em Bordeaux e, quando vi o clima e o terroir de lá, pensei: no Languedoc, com certeza podemos fazer grandes vinhos. Sou apaixonada por vinho e gosto de vinhos finos e elegantes. Foi isso que me levou a querer replantar essas variedades antigas.”
Carbonneau
Apesar da proposta de utilizar diferentes variedades ser tentadora, ela pode ser um desafio. Mas não para Patricia. “No cultivo, elas são mais ou menos iguais. Mas na vinificação há diferença. Por exemplo, plantamos Morrastel Noir à Jus Blanc e, durante dez anos, era horrível, intragável. Hoje? Está maravilhoso”.
Ela ainda acrescenta que a sua preferida entre as antigas é a Riveyrenc Blanc. “Acho uma grande uva. Misturamos com outras porque temos pouca. Alain Carbonneau, professor da escola de Montpellier [Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica], no mais alto nível da agricultura, disse que para ele a Riveyrenc Blanc é realmente a maior uva do Languedoc.”
Aceitação
Produzir vinho a partir de uvas raras pode ser considerado revolucionário e autêntico, mas será que os consumidores demonstram interesse por vinhos feitos com variedades tão únicas? Para Patrícia, a resposta é um duro “não”. “Quando se lê sobre essas uvas, dizem que produzem vinhos finos e elegantes, com pouco álcool. Mas essa não era a moda na época em que começamos. O que se queria era carvalho e Syrah”.
Ela acrescenta que, ao contrário do que acontece em muitas vinícolas espalhadas pelo mundo, as pessoas que se interessavam por essas uvas e que visitavam a Clos Centeilles para aprender sobre elas eram raras. “Não, acho que ninguém se interessava”, diz Patricia. “Mas agora as coisas estão mudando. Por exemplo, em Châteauneuf-du-Pape [no Vale do Rhône], está ficando complicado beber vinhos com muito álcool. As pessoas talvez queiram agora vinhos com menor teor alcoólico.”
Nos últimos anos, o mercado mundial de vinhos tintos encolheu, enquanto a preferência por vinhos com baixo teor alcoólico aumentou. Sete dos onze vinhos que o Clos Centeilles produz geralmente têm menos de 14% de álcool. O La Part des Anges 2024 tem 10,7% de álcool, e Cécile planeja fazer o claret com 10,5% no futuro.
Considerando as tendências atuais, essas uvas raras, que produzem vinhos com menor teor alcoólico, devem atrair mais produtores. No entanto, existe uma ressalva: algumas são consideradas mais suscetíveis a doenças. “É verdade que essas variedades antigas são muito vulneráveis a doenças como o oídio”, explicou Patricia. “Mas o Carignan também é”. O oídio é uma das principais doenças fúngicas que afetam as videiras.
É por isso que as vinhas do Clos Centeilles são substituídas. “As pessoas ainda se interessam por variedades resistentes a doenças, o que não é o meu caso”, declarou Patricia. Essa falta de interesse está relacionada à escolha de como substituir as vinhas. “Não temos clones aqui. Só usamos seleção massal.”
A diferença entre clones e seleção massal é simples, mas crucial. Para substituir vinhas, é possível comprar mudas em um viveiro. Elas são clones de uma variedade específica, criadas para garantir características como resistência a doenças. No entanto, todas as plantas dessa variedade são geneticamente idênticas.
Alternativamente, há a possibilidade de coletar estacas das vinhas de uma propriedade ou de outros vinhedos, plantá-las e deixá-las criar raízes. Esse método, chamado seleção massal, assegura maior diversidade genética. Viveiros como o Bérillon, no Vale do Rhône, produzem mudas selecionadas por esse método; no entanto, a prática é rara, embora altamente valorizada.
Cécile explica por que o Clos Centeilles não utiliza seleção clonal. “Isso é homogeneização genética, e nós preferimos a diversificação”. Uma excessão foi aberta quando elas plantaram Syrah e usaram a seleção massal e dois clones diferentes para comparar — e não notaram diferença.
Desafios
Trabalhar com múltiplas variedades de uvas pode ser desafiador. “Cada uma tem suas particularidades”, explicou Cécile. “Essas não são variedades de grande interesse comercial, pois têm custos de produção mais altos”.
Para Patricia, a maioria dos produtores é cautelosa com o que é diferente. “Essas uvas antigas? Elas assustam. As pessoas preferem esperar até que haja alguma experimentação. Talvez daqui a 20 anos comecem a plantá-las.”
Depois que Cécile assumiu a responsabilidade pelo cultivo das vinhas em 2019, ela percebeu que a suscetibilidade às doenças poderia ser reduzida com um trabalho mais preciso e mais tempo dedicado a cada videira.
Além disso, as variedades raras e antigas geralmente são colhidas tarde na temporada. Isso traz a vantagem de melhorar o equilíbrio dos taninos graças às noites mais frescas, mas também aumenta o risco de chuvas, que podem fazer os cachos incharem e favorecer o aparecimento de mofo e oídio.
“No início ou no meio de setembro, ainda faz muito calor onde vivemos. Os taninos ficam bloqueados. Por isso, fazemos a colheita em 15 de outubro”, explicou Patricia. “Todo mundo quer colher cedo; todos têm medo de uma catástrofe.”
Apesar de o risco ser grande — “é um jogo de pôquer todo ano”, enfatizou Cécile —, Patricia lembra de ter perdido uvas apenas uma vez em três décadas, e foi apenas metade de um lote de Carignan.
Escolha
O Clos Centeilles produz 11 vinhos, incluindo espumantes, brancos, rosés e tintos. O rosé com 11% de álcool — Le C – Le Rosé des Oubliés — é um blend de sete uvas “cinza e rosa”. O claret (La Part des Anges) é um corte de duas uvas raras, Riveyrenc Noir e Picpoul Noir, além da mais conhecida Carignan.
O branco — Le C – Le Blanc des Oubliés — inclui Riveyrenc Blanc, Riveyrenc Gris e Araignan Blanc. O tinto — Le C – Le Rouge des Oubliés — leva cinco uvas raras, incluindo a Morrastel Noir à Jus Blanc, descrita por Cécile como uma “…variedade antiga que é ao mesmo tempo intensa e suave, com uma acidez incrível.”
Cécile descreve um verdadeiro arco-íris vegetal. “A Riveyrenc tem quatro cores — cinza, branca, preta e verde clara: verdal, que é estranha porque você vê todas essas cores no mesmo cacho, do branco ao roxo”. “Talvez existam no máximo 20 hectares de Riveyrenc no mundo. Temos algo que é único”, ela completa.
Quando o ampelógrafo Pierre Galet visitou a propriedade em 2011, concluiu que era o único local no mundo onde Riveyrenc Gris e Riveyrenc Verdal eram cultivadas comercialmente. As proprietárias também valorizam variedades mais comuns da região. Produzem um corte clássico de Grenache/Syrah/Mourvèdre, típico da área. Ambas também elogiam a Cinsault.
“A Cinsault não é uma variedade rara, mas achamos que pode ser incrível”, acrescentou Patricia. “Ela era plantada no século 18 e tem muita finesse. Costumo chamá-la de o Pinot Noir do sul. Ela tem um ataque suave e elegância”. “Nós somos apaixonadas por Cinsault”, diz Cécile.
Mudanças climáticas
“Quando eu era criança, íamos procurar riachos entre aqui e Caunes-Minervois, e encontrávamos girinos e rãs. Sempre havia poças d’água no inverno. Agora, os riachos estão secos durante o inverno. Isso mostra a falta de reservas hídricas”, contou Cécile.
Em um mundo cada vez mais quente e seco, será que essas uvas são capazes de resistir aos efeitos das mudanças climáticas? “Para que as vinhas sobrevivam, precisamos de pelo menos 400 mm de chuva por ano. Tivemos isso no ano passado. No ano anterior, foram apenas 280 mm”, acrescentou.
“Também estamos enfrentando desertificação”, disse ela. “A vida precisa de água. Ondas de calor extremo prejudicam os taninos. Para variedades com muita estrutura e taninos, como Syrah, Grenache e Mourvèdre, as ondas de calor são difíceis. No entanto, Riveyrenc — Gris, Blanc, Noir, Verdal — tem taninos suaves e geralmente não é impactada por calor excessivo. O Morrastel e o Picpoul (Noir e Gris) também sofrem menos e se mantêm razoáveis em períodos de estresse hídrico.”
Decisão tomada
Após décadas cuidando dos vinhedos, Patricia ofereceu a Cécile a oportunidade de assumir o negócio, que saiu para uma longa caminhada com seu cachorro e voltou com a resposta na ponta de língua: estava apaixonada demais pela terra para deixá-la.
Por trinta anos, Patricia trabalhou incansavelmente para valorizar a história e o patrimônio dessa parte do sul da França, independentemente de modismos ou da demanda do mercado. Agora, Cécile continua esse legado — uma força da natureza: enérgica, carismática e focada. Sua própria filha adora estar ao ar livre, sinalizando o surgimento de uma possível terceira geração de produtoras.
Em uma era em que os consumidores estão cada vez mais interessados em experimentar vinhos com menor teor alcoólico e de uvas nativas únicas, suspeito que a hora mais brilhante do Clos Centeilles — assim como sua capela do século 13 ao amanhecer — está prestes a chegar.
* Tom Mullen é colaborador da Forbes EUA, onde escreve sobre vinhos, viagens e lifestyle na França.