
No Canadá existe um paradoxo. Enquanto milhões de pessoas enfrentam dificuldades para acessar alimentos frescos e nutritivos, refeições perfeitamente boas são descartadas por restaurantes, hotéis e empresas de catering. Os bancos de alimentos operam sob imensa pressão, muitas vezes sem ingredientes de qualidade. Ao mesmo tempo, uma barreira invisível — o medo de processos judiciais — impede que muitos fornecedores de alimentos doem refeições excedentes. Mas onde outros viam um problema insolúvel, Jean-François Archambault, fundador da La Tablée des Chefs, enxergou uma oportunidade.
Durante uma década trabalhando na gestão hoteleira, Archambault lidava com uma verdade desconfortável: grandes quantidades de alimentos eram desperdiçadas enquanto comunidades passavam fome. Ao refletir sobre os valores transmitidos por sua família, envolvida em ações comunitárias, ele decidiu agir. Em 2004, deixou sua carreira no hotel Fairmont Queen Elizabeth, em Montreal, e fundou a La Tablée des Chefs — uma organização que conecta a indústria de alimentos à luta contra a fome.
“Eu tinha sucesso”, lembra Archambault, “mas era como se, no fim do dia, eu tirasse aquele terno, guardasse no armário e voltasse a ser o Jean-François em casa — e eu odiava isso. Eu precisava acordar sentindo que estava inteiro”, diz.
O salto não foi fácil — mas foi impulsionado por crença e mentoria. “Esse senso de propósito ficou muito forte quando conheci minha esposa — e ela me deu confiança”, conta. “E depois alguns empresários importantes, em especial uma mentora — ela era vice-presidente executiva de RH do Banco Nacional do Canadá — me incentivaram muito a fazer algo”.
Ele lembra do momento em que se preparava para contratar o primeiro funcionário da La Tablée após arrecadar US$ 150 mil (R$ 855 mil na cotação atual), até ter um momento de clareza durante um café da manhã com sua mentora. “Eu disse a ela que parei o processo de contratação”, conta. “Ela perguntou por quê, e eu respondi: ‘Porque eu vou fazer isso. Ninguém é melhor do que eu para fazer isso.’ Foi aí que tudo começou.”
Derrubando Barreiras para o Aproveitamento de Alimentos
O primeiro desafio de Archambault foi desmontar um sistema baseado no medo. Trabalhando com especialistas jurídicos, ele descobriu uma solução ignorada: as leis do Bom Samaritano, que protegem fornecedores de alimentos de responsabilidade legal ao doarem alimentos de boa fé. Ao educar empresas e líderes do setor sobre isso, ele mudou a narrativa, transformando a visão de risco em uma de impacto social.

Em 15 anos, a La Tablée des Chefs forneceu mais de 20 milhões de refeições a pessoas em situação de insegurança alimentar
Em províncias como Alberta, regulamentações vagas sobre segurança alimentar ainda impedem a recuperação de grandes quantidades de alimentos seguros e intocados. Archambault está atuando com parceiros jurídicos pro bono para mudar isso. “Poderíamos dobrar a quantidade de alimentos recuperados se esclarecêssemos a definição de alimento servido”, diz ele.
Ele construiu parcerias poderosas com gigantes do setor, como o Bell Centre de Montreal, casa do time de hóquei Canadiens, e criou um sistema onde alimentos excedentes são recolhidos, reaproveitados e distribuídos para quem precisa — em larga escala.
“O que eu realmente quero é mudar a mentalidade da indústria sobre o desperdício de alimentos — e sobre os alimentos que poderiam ser recuperados e não são”, afirma. “Quero engajar o setor em maximizar todas as oportunidades que temos. Estou falando da indústria da hospitalidade se unindo para priorizar isso — e transformar o setor ao redor.”
Na sua visão, há muitos trabalhadores do setor que já queriam ajudar — só não tinham um sistema que tornasse isso viável. “A indústria não percebe que muitos funcionários de hotéis e centros de convenções são totalmente a favor disso”, diz Archambault. “Mas pararam de acreditar que isso seria possível. E estou aqui para tornar isso possível.”
Um marco importante veio quando a rede de hotéis Marriott Canadá aderiu. “Quando assinamos o acordo com a Marriott Canadá, o presidente na época disse: ‘Quero isso nos meus 260 hotéis’”, lembra. Graças a esse tipo de liderança, a ideia se espalhou rapidamente pelo setor. Por meio dessas parcerias, a La Tablée des Chefs construiu uma espinha dorsal operacional que torna a recuperação de alimentos algo simples para as equipes da hospitalidade.
Usando uma plataforma baseada em dados, a organização coordena a coleta de excedentes e a distribuição de refeições com precisão. Restaurantes, hotéis e empresas de catering doam comidas preparadas, que são então etiquetadas, embaladas e entregues a bancos de alimentos e abrigos conforme a demanda em tempo real. O resultado? Uma solução sistêmica e sustentável para a insegurança alimentar — que permite à indústria agir com eficiência e compaixão. “Temos 400 hotéis ou espaços fazendo isso em todo o país e servindo 3 milhões de refeições por ano”, diz Archambault.
Empoderando a Próxima Geração
Mas Archambault sabia que fornecer refeições não era suficiente. Para realmente enfrentar a insegurança alimentar, era preciso empoderar as comunidades para que pudessem se alimentar sozinhas.
Foi aí que a La Tablée des Chefs criou programas de capacitação culinária. Por meio de iniciativas como Kitchen Brigades e Cook Up Your Future (Brigadas Culinárias e Cozinhando o Seu Futuro, em tradução para o portugês), a organização ensina jovens em situação de vulnerabilidade a preparar refeições de qualidade a baixo custo — construindo autossuficiência onde ela é mais necessária.
De escolas e centros juvenis a unidades de detenção de menores, os programas de educação culinária estão equipando jovens com habilidades essenciais para a vida — e um caminho para um futuro melhor.

A La Tablée Des Chefs possui dois programas de capacitação culinária
“Estamos em mais de 350 escolas públicas com chefs entrando nas salas de aula todos os dias”, diz Archambault. “Já educamos mais de 75 mil jovens por meio da alfabetização alimentar e educação sobre alimentos.”
Em 2018, o governo de Quebec fez um investimento importante no programa, permitindo que ele se expandisse ainda mais. Hoje, a La Tablée des Chefs opera uma plataforma de ensino a distância e uma escola de culinária, garantindo que seu impacto vá muito além da cozinha.
Um Movimento Global
Em seus primeiros 15 anos, a La Tablée des Chefs forneceu mais de 20 milhões de refeições a comunidades em insegurança alimentar, firmou parcerias com mais de 400 hotéis e espaços em todo o Canadá e capacitou jovens em mais de 350 escolas públicas e programas de acolhimento em sete províncias. Mas Archambault quer ir além das fronteiras do Canadá.
Hoje, o seu modelo está sendo testado na França. Ao formar uma nova geração de chefs socialmente conscientes, a La Tablée des Chefs está provando que a comida é mais do que sustento — é uma ferramenta de transformação social.
Esse impacto foi demonstrado de forma poderosa durante a competição bienal de golfe President’s Cup, no clube Royal Montreal Golf Club. “Havia 30 pequenas cozinhas no campo, alimentando dezenas de milhares de pessoas”, lembra Archambault.
“Fizemos parceria com a Proof of the Pudding, empresa de catering da Professional Golfers’ Association (PGA), principal associação de golfe profissional masculino dos Estados Unidos, e recuperamos 22 toneladas de alimentos que alimentaram mais de 120 mil pessoas em seis dias”, diz.
A qualidade da comida, diz Archambault, é o que mais surpreende as pessoas. “Abrimos um recipiente de alumínio e havia costeletas de cordeiro — rosadas, perfeitas”, conta. “Você comeria isso amanhã? Com certeza. É esse tipo de dignidade que isso traz”.
O Futuro da Alimentação
O trabalho de Archambault tem como objetivo alimentar pessoas e transformar a forma como pensamos a comida. É um trabalho de “reimaginação” do sistema alimentar, em que o desperdício não seja mais o padrão, onde chefs usem sua expertise como força do bem e onde comunidades tenham o poder de cuidar da própria nutrição.
“Nós somos o elo que faltava para tornar essa comida acessível à linha de frente”, afirma. “E é exatamente isso que quero continuar fazendo.” É assim que um homem — e um movimento crescente de chefs e líderes empresariais compassivos — está reescrevendo o futuro da alimentação no Canadá e além.
* Afdhel Aziz é colaborador da Forbes EUA, onde escreve sobre a intersecção entre negócios e impacto social.