Nos arredores de Alba, cidade italiana calçada com pedras e que remonta à época romana, há uma austera fortaleza moderna. Atrás de paredes de concreto de 3 metros, portões de aço e guardas uniformizados encontra-se não uma instalação nuclear ou uma base do exército, mas uma fábrica de chocolate. Trata-se da unidade local da Ferrero, fabricante de produtos como Nutella, Tic Tac, Mon Chéri e Kinder.
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Lá dentro, trabalhadores com roupas cáqui monitoram centenas de braços robóticos que produzem doces com precisão militar. No alto, milhares de barras Kinder recheadas de creme passam rapidamente sobre as correias transportadoras. Embaixo, câmeras de alta velocidade fazem uma varredura em busca de imperfeições: uma minúscula falha na cobertura é suficiente para disparar um jato de ar que tira o chocolate defeituoso da linha de produção. “Fazemos tudo com seriedade e extrema competência”, diz o presidente da empresa, Giovanni Ferrero, de 53 anos, em sua primeira reunião com a imprensa americana.
Essa disciplina construiu um império. A Ferrero vendeu US$ 12,5 bilhões em doces no ano passado, e seus proprietários homônimos têm um patrimônio total de US$ 31 bi, dos quais US$ 21 bi pertencem a Giovanni, que é a 47ª pessoa mais rica do mundo.
O sucesso deles levou gerações. Fundada em 1946 pelo avô de Giovanni, Pietro, na Itália devastada pela guerra, a empresa expandiu-se ao longo de décadas de crescimento cuidadoso, com poucas dívidas e sem aquisições.
Porém, depois de uma vida inteira trabalhando de mãos dadas com o irmão e o pai, Giovanni viu-se repentinamente sozinho no comando. O irmão, também chamado Pietro, com quem ele dividiu o cargo de CEO da Ferrero por 14 anos, morreu de ataque cardíaco em 2011, aos 47 anos. Depois, há três anos, o pai, Michele, também faleceu. Sozinho, Giovanni designou um CEO – Lapo Civiletti, antigo executivo da Ferrero – no fim do ano passado, para se concentrar na estratégia como presidente executivo.
Em muitos aspectos, agora ele está se afastando daquilo que impulsionou a ascensão da Ferrero: o foco único em suas marcas nativas. Ao contrário, Giovanni está em busca de receitas maiores por meio de aquisições. Ele acredita que as linhas de produtos existentes não serão suficientes, no longo prazo, para concorrer com rivais maiores, como a Mars, que produz M&M’s e Snickers (vendas em 2017: US$ 23,7 bi), e a Mondelez (US$ 23 bi), fabricante de Oreo e Toblerone. Assim, em 2015, ele comprou a Thorntons, venerável fabricante britânica de chocolates, por US$ 170 milhões. Foi a primeira aquisição de uma marca pela Ferrero em todos os tempos. Sua maior compra ocorreu em março, quando adquiriu a divisão de doces da Nestlé nos EUA por US$ 2,8 bilhões em dinheiro. Ícones americanos, como Butterfinger e BabyRuth, agora são de Giovanni.
Ele pode bancar isso. A Ferrero é altamente lucrativa – Forbes calcula que a empresa lucre cerca de 10% do faturamento – e tem bilhões de dólares em caixa. No entanto, ela ainda é um empreendimento arriscado. Na essência, o ramo de chocolate é um jogo de branding. Cada fornecedor vende mais ou menos as mesmas mercadorias. No entanto, por alguma alquimia – ou habilidade de marketing –, os produtos Ferrero recebem uma maior devoção. Nutella, em especial. Quando, em 2013, a Universidade Columbia começou a oferecer a pasta (que combina principalmente cacau, açúcar, avelã e leite) num refeitório, os estudantes a contrabandearam como bandidos, o que gerou um aumento de US$ 5 mil nos custos em uma semana, pelo que consta. Em janeiro, quando uma rede de supermercados francesa ofereceu um desconto de 70% nos potes, houve tumultos.
As novas linhas de produtos adquiridas, no entanto, são menos nobres, o que ameaça diluir essas altas margens e comprometer o modelo de negócios da Ferrero. E Giovanni está indo contra a corrente: seus concorrentes estão fugindo de doces baratos e de baixo valor nutritivo, já que guloseimas mais saudáveis, como as misturas de frutas secas e castanhas variadas, estão cada vez mais em voga.
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Giovanni, que administra a empresa em Luxemburgo, apegou-se à escala como um fim em si mesmo, desafiando as opiniões de seu pai e de especialistas do setor. Se ele estiver errado, a Ferrero pode balançar. E ele se tornaria o filho pródigo que torrou bilhões tentando reinventar a roda.
GUERRA
A história da Ferrero começa na sombra da 1ª Guerra Mundial. Em 1923, depois de servir o exército, Pietro Ferrero abriu uma confeitaria em Dogliani, no noroeste da Itália. Sua vida logo começou a acelerar. No ano seguinte, casou-se com Piera Cillario, de 21 anos, que deu à luz um filho, Michele, em 1925. A família passou a década seguinte deslocando-se entre cidades, enquanto Pietro aperfeiçoava suas habilidades em outras lojas. Então, em 1938, ele se mudou para a África Oriental com o plano de vender biscoitos para as tropas italianas enviadas para lá por Mussolini. A iniciativa gorou, e Pietro voltou à Itália. Quando estourou a 2ª Guerra, a família havia se instalado nas tranquilas colinas de Alba.
Foi lá que Pietro descobriu seu maior sucesso. A pedido do irmão mais novo, começou a fazer experimentos com alternativas mais baratas ao chocolate, um luxo fora do alcance na Itália em tempos de guerra. Ele chegou a uma combinação de melaço, óleo de avelã, manteiga de coco e uma pequena quantidade de cacau, que ele embrulhava em papel de cera e vendia pela cidade. Pietro deu à mistura o nome de Giandujot, que remontava a gianduiotto, um confeito semelhante que havia se popularizado na época de Napoleão. “Ele tinha a síndrome do inventor”, diz Giovanni. “Despertava a qualquer hora, ia aos laboratórios e, no meio da noite, acordava a esposa dizendo: ‘Prove isto. É uma receita ótima’.”
O Giandujot estava vendendo “com a mesma rapidez com que Pietro conseguia fabricá-lo”, escreve Gigi Padovani em sua biografia de Ferrero, Nutella World, publicada em 2014. Então, Pietro associou-se ao irmão (também chamado Giovanni), que tinha experiência no comércio por atacado, e constituíram a Ferrero em 1946.
Pietro mal viu o negócio decolar, pois morreu de ataque cardíaco em 1949, aos 51 anos. Mas as bases tinham sido estabelecidas. Naquele mesmo ano, a Ferrero lançou uma versão do Giandujot mais parecida com uma pasta e que acabou se tornando a Supercrema, precursora da Nutella. Com truques inteligentes, a família tornou a Supercrema mais atraente. Eles a vendiam em frascos que os clientes podiam reutilizar. Em vez de distribuí-la por atacadistas, a empresa usava um batalhão de representantes de vendas que iam diretamente às lojas, o que ajudava a manter os preços baixos. Então veio outra morte prematura.
Em 1957, aos 52 anos, Giovanni sofreu um ataque cardíaco fatal. A empresa comprou a participação herdada pela viúva. Com 33 anos, Michele foi empurrado para o comando. E se alguém tem mérito pela expansão mundial da Ferrero, essa pessoa é Michele. Pouco antes da morte do pai, ele convenceu os parentes a entrar no mercado alemão. A empresa transformou antigas fábricas de mísseis nazistas e começou a produzir doces. Ela logo estabeleceu sua presença com um chocolate recheado de licor de cereja, o Mon Chéri, lançado em 1956. Os alemães foram fisgados.
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Em seguida, veio a expansão para a Bélgica e a Áustria e, logo depois, para a França. A Ferrero bombardeava os novos mercados com propagandas que anunciavam seus doces como saudáveis e altamente energéticos. (Essas mensagens trouxeram problemas para a empresa nos EUA, onde ela chegou a um acordo de US$ 3,1 milhões num processo de propaganda enganosa em 2012, em parte por chamar a Nutella de “um exemplo de café da manhã saboroso, mas equilibrado”. A Ferrero negou irregularidades.)
Em 1962, quando a Itália enfim saía da destruição do pós-guerra, Michele decidiu melhorar a qualidade da Supercrema. O país já podia comprar chocolate de verdade, então ele adicionou mais cacau e manteiga de cacau à mistura. Quando o governo regulamentou o uso de superlativos na publicidade – colocando em risco o nome Supercrema –, ele decidiu reformular a marca. Sua equipe pensou num rótulo que evocasse o sabor de avelãs em idiomas de muitos mercados. Chegaram a “Nutella” e, em abril de 1964, começaram a distribuir os potes com o novo nome.
A expansão da Ferrero chegou à Suíça e à Irlanda e foi ainda mais longe: Equador, Austrália e Hong Kong. Novos produtos eram lançados: a linha Kinder em 1968, Tic Tac em 1969 e os pralinês Ferrero Rocher em 1982. Em 1986, o faturamento anual atingiu US$ 1,5 bilhão em valor atual.
Enquanto a empresa crescia, Michele não parava: registrou uma patente do Mon Chéri em árabe para impedir imitações; saía frequentemente de sua casa em Mônaco e aparecia em lojas de varejo para provar os produtos dos concorrentes. Quando o empenho não era suficiente, ele se voltava à fé, colocando imagens de Nossa Senhora de Lurdes para zelar pelas fábricas da Ferrero ao redor do mundo. Quando passou o bastão aos filhos, em 1997, a outrora minúscula operação havia se transformado num peso-pesado, com faturamento anual em torno de US$ 4,8 bi.
DE BERÇO
Desde o nascimento, Giovanni Ferrero foi preparado para fazer parte da realeza do chocolate. No fim da década de 1970, ele e o irmão foram enviados a um internato belga, numa providência clara para protegê-los dos Anos de Chumbo da Itália, período em que ocorreram sequestros de figuras de destaque, como John Paul Getty III e o ex-primeiro-ministro italiano Aldo Moro. Mas o pai deles tinha uma motivação adicional. Ele sabia que a Europa estava seguindo rapidamente em direção a um mercado único, por isso precisava que seus herdeiros se sentissem à vontade em qualquer parte do continente. “Foi o primeiro período histórico da Ferrero como empresa europeia. Na época, Bruxelas encabeçava o processo de integração europeia”, recorda Giovanni. E para lá foram os garotos. “A vida pessoal sempre ficou subordinada à empresa”, diz ele.
Giovanni estudou marketing nos EUA e começou a atuar na Ferrero nos anos 1980. Sua primeira missão foi trabalhar com Tic Tac na Bélgica. Depois, passou para um cargo gerencial na Alemanha, antes de aprender desenvolvimento de negócios no Brasil, Argentina, México e EUA. Ao longo dessa trajetória, dominou os detalhes técnicos necessários para administrar a empresa. Hoje, sua fala é repleta de jargões corporativos (“limites dimensionais”, “impulso de crescimento”, “focalização”). Ainda assim, vendas e marketing eram as áreas mais compatíveis com ele. Magro, bem-vestido e com um riso afável, ele se parece mais com um apresentador de programa de auditório do que com um bilionário dono de fábricas. Além disso, é autor de sete romances. Quando esse assunto vem à tona, ele sai para pegar um exemplar do mais recente, The Light Hunter, dedicado ao pai.
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A criatividade de Giovanni fez dele um bom complemento a seu irmão, Pietro, que se dedicou à área de operações. Juntos, em 1997, passaram a ser CEOs no lugar do pai, que continuou como presidente. Durante a década e meia seguinte, eles se concentraram em impulsionar as marcas internas da Ferrero. No entanto, em 2011, ao fazer ciclismo na África do Sul, Pietro morreu de ataque cardíaco, mesmo destino de seu avô e seu tio-avô, deixando a esposa, três filhos e a Ferrero. Giovanni foi obrigado a tocar sozinho os assuntos do dia a dia. “Foi uma grande descontinuidade”, diz. Quatro anos depois, Michele também morreu, aos 89 anos. Mais de 10 mil pessoas compareceram a seu funeral, em Alba. Essas mortes desencadearam inúmeras mudanças na Ferrero. Para começar, a empresa, da qual Michele havia sido o único dono, foi dividida entre a família. Ele deixou a maior parte para Giovanni, pois achava que a posse consolidada proporcionaria maior estabilidade. O restante ficou com os jovens herdeiros de Pietro, cujas participações permanecem num fundo fiduciário. A presidente nominal da Ferrero, Maria Franca Fissolo – que foi secretária de Michele e depois sua esposa –, não recebeu nenhuma ação, embora tenha herdado outros ativos, sendo hoje dona de um patrimônio calculado em US$ 2,1 bilhões.
Apesar dessa enorme herança inesperada, Giovanni ficou sobrecarregado. “É muita pressão”, diz. Ele passou mais de dois anos fazendo malabarismos com a dupla função de CEO e presidente e ficou com pouco tempo para tratar da estratégia corporativa. “Você é estorvado pelos pormenores práticos”, reclama. A nomeação de Lapo Civiletti como CEO em setembro de 2017 fez deste a primeira pessoa de fora da família a ocupar o cargo.
Com Civiletti tomando conta dos negócios, Giovanni está concentrado em fazer aquisições, algo a que seu pai havia resistido fortemente. Quando indagado sobre o que o pai pensaria dessa onda de compras, ele ri: “Tenho 53 anos. Já me libertei totalmente”.
Hoje, o centro nervoso da Ferrero está em Luxemburgo. Ainda é tecnicamente uma empresa familiar. No entanto, Giovanni está, de fato, administrando uma multinacional com 25 fábricas espalhadas pelo mundo – e com ordem de expandir. “Sinto que somos obrigados a crescer”, diz ele. “Estamos apaixonados por um algoritmo de crescimento de 7,33 periódico porque, orgânico ou não orgânico, dobraria a empresa num horizonte temporal de dez anos”. Tradução: o plano de Giovanni é aumentar as receitas em pelo menos 7,33% ao ano para duplicar o volume de negócios em uma década. As linhas de produtos nativas da Ferrero provavelmente não poderiam se expandir com tanta rapidez. Então Giovanni está fazendo compras para compensar.
Daí a aquisição da Thorntons em 2015. Na época, a fabricante de chocolates britânica era vista como decadente. Giovanni viu valor nela. Em seguida, comprou as norte-americanas Fannie May (US$ 115 milhões, em maio de 2017) e Ferrara, que produz as balas Red Hots e Trolli (US$ 1,3 bilhão, em dezembro). Por fim, veio a transação com a Nestlé, no valor de US$ 2,8 bilhões. Ironia do destino. Dois anos antes, após a morte de Michele, surgiram boatos de que a Nestlé poderia adquirir a Ferrero.
Se o objetivo é escala, Giovanni está tendo sucesso. Após a compra da Nestlé, a Ferrero tornou-se a terceira maior empresa de confeitos do mundo, segundo dados da Euromonitor. E as compras dele ainda não acabaram. A teoria de Giovanni é que, assim como no mercado de cerveja, poucas empresas vão dominar o setor de doces. As demais serão relegadas ao status de empresas de nicho.
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Alguns observadores externos estão céticos quanto a esse plano. A crítica óbvia é que, ao contrário do pai, que impulsionou o crescimento por meio da inovação, Giovanni está apenas comprando seu caminho em direção à escala. E a Ferrero está mergulhando no mercado norte-americano bem no momento em que os consumidores estão mudando para alimentos mais saudáveis. Fintan Ryan, analista do Berenberg Bank, qualifica os antigos produtos da Nestlé como “doces muito voltados ao mercado de massas, com alto teor de açúcar e insalubres”. Jean-Philippe Bertschy, da Vontobel, afirma que a Nestlé era “um negócio fraco que perdia participação no mercado ano após ano”. Ferrero, diz ele, “fez algumas aquisições questionáveis”.
Para a sorte de Giovanni, ele tem uma margem de erro confortável. Se as finanças da Ferrero são semelhantes às de seus principais concorrentes, ela provavelmente gera lucros anuais de mais de US$ 1 bilhão. Mesmo com a atual onda de gastos, ela não assumiu muitas dívidas.
E há outros pontos positivos mais nítidos. No ano passado, a Ferrero lançou seu popular Kinder Ovo nos EUA. O produto tinha sido proibido devido ao risco de asfixia, já que as cascas de chocolate continham um brinquedo de plástico escondido. Após modificações, o produto recebeu a bênção da FDA e já está “superando as expectativas”, segundo Giovanni. A Ferrero lançou outros novos produtos em tempos recentes, principalmente derivados de linhas existentes, como as pastilhas Tic Tac.
A empresa também está em terreno mais seguro com seu negócio de avelãs. Há alguns anos, ela comprou dois dos maiores distribuidores de avelã do mundo, o turco Oltan Group e o italiano Stelliferi Group, e está investindo em plantações na Austrália, nos Bálcãs e na América do Sul, numa tentativa de aumentar a produção e a disponibilidade ao longo do ano. A Ferrero, que compra cerca de um terço das avelãs do planeta, é hoje também a maior fornecedora desse produto em nível mundial.
Essa estatística ressalta o tamanho crescente da empresa. Em apenas três gerações, a pequena loja de Pietro se tornou uma gigante que vende mercadorias em mais de 160 países, emprega 40 mil pessoas e produz 365 mil toneladas de Nutella por ano. Giovanni faz pouco de tudo isso: “Bem, é um começo promissor”.