Falar em Carrefour é falar em supermercado, certo? Há 44 anos no Brasil, a rede francesa é a maior varejista do país, com quase 700 unidades espalhadas por todos os estados brasileiros. Mas, se a venda de alimentos é consolidada como carro-chefe, o conglomerado tem focado na variedade de portfólio para sustentar os mais de R$ 56 bilhões de faturamento anual, com investimentos que vão de campanhas por alimentos saudáveis ao aumento dos serviços financeiros – que incluem até a compra de uma startup e o lançamento de uma plataforma de seguros.
Os serviços financeiros da companhia, lançados em 1988 no Brasil, estão deixando o papel tradicional de apoio ao consumo do varejo e passando cada vez mais a ter protagonismo na empresa. Se somarmos os cartões Carrefour e Atacadão, lançado no final de 2017, há quase 8 milhões de cartões do grupo em circulação atualmente. Isso torna o Carrefour nada menos que o quinto maior emissor de cartões do país.
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“Eu diria que, hoje, os cartões servem 50% para estimular vendas e 50% como negócio próprio”, afirma Noël Prioux, CEO do Carrefour Brasil. O francês bem-humorado (e com um sotaque carregado que lembra o do chef Érick Jacquin) explica que essa alta taxa de emissão não é à toa: o grupo aprova cerca de 30% dos pedidos, o dobro da média nacional dos bancos tradicionais.
Sem divulgar números, ele afirma que a taxa de inadimplência é alta, mas diz entender que faz parte do modelo. “Se você quer ajudar o varejo a vender ou, mais do que isso, ajudar o cliente a comprar, você tem que correr riscos. É da estratégia. Claro, não pode dar um cartão para todo mundo, é preciso responsabilidade. Também não queremos criar mais um problema para aquela família, se ela não consegue pagar.” Por outro lado, o objetivo, claro, é aumentar ainda mais os números. “Ainda há 70% das pessoas que não conseguem [pagar]. Então, o que podemos fazer?” O grupo tem estudado soluções. “Temos que iniciar outro processo para entrar nesse universo de maneira diferente. Temos que conhecer melhor o cliente e oferecer um crédito, vamos dizer, menor, sem criar riscos para ele.”
Os cartões são só uma vertente do crescente setor financeiro do Carrefour. No terceiro trimestre de 2019, o Banco Carrefour cresceu 30%, para R$ 8,4 bilhões de faturamento, um aumento de R$ 2 bilhões se comparado ao mesmo período do ano anterior.
Em outubro deste ano, a companhia anunciou a compra de 49% da fintech Ewally, de soluções de pagamentos, por um valor não divulgado. A startup é especializada em transações financeiras digitais. Agora o cliente poderá fazer pagamentos, transferências e outros serviços pelo celular, como em um banco tradicional. Sob a mesma estratégia, o grupo lançou em agosto uma plataforma de seguros totalmente digital voltada aos clientes de seus cartões, mas aberta ao consumidor geral.
Os bons resultados financeiros não estão restritos ao banco. No geral, o grupo cresceu 8,9% no terceiro trimestre de 2019, com faturamento de R$ 15,1 bilhões. Se considerarmos os nove primeiros meses deste ano, já chegou a R$ 44,6 bilhões, 10% a mais que o mesmo período de 2018, ano em que o grupo comemorou faturamento recorde de R$ 56,3 bilhões. “Nós decidimos acelerar o que estava dando certo, como o atacado, as lojas de proximidade e o banco, e melhorar o que não ia tão bem, como os hipermercados”, afirma Prioux, comandante do grupo desde janeiro de 2017.
A cultura de cada país
Há 35 anos no Carrefour, Prioux já passou por grande parte dos setores da companhia em vários países. Ele começou na área financeira na França em 1984, “uma época em que não tinha nem computador”. Passou pelo banco e, depois de gerenciar diferentes áreas, foi enviado em meados dos anos 1990 para comandar a expansão do grupo na Turquia, um país completamente diferente da sua terra natal.
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Os bons resultados fizeram com que o francês se tornasse uma espécie de especialista em crises: foi enviado para a Colômbia no início do governo Álvaro Uribe em meio à dura luta contra as Farc, comandou negócios de diferentes países da Ásia e teve de gerenciar a Espanha logo após a crise de 2008, quando o desemprego bateu recorde no país.
Ele recusa a alcunha de solucionador de crises, mas diz que tal bagagem cultural diversa contribuiu muito para o seu modelo de gerenciamento. “Se você quiser ajudar os times [de cada país], tem que trocar de cabeça, tem que se adaptar. A Indonésia não tem nada a ver com a Malásia, que, por sua vez, não tem nada a ver com a Índia. Você tem que entender a sensibilidade de cada consumidor”, garante Prioux. Como fazer isso? “Conhecendo os locais.” O francês não se baseia apenas em pesquisas, números e relatos. Ele conta que, antes de começar a movimentar uma equipe, busca andar pelo novo país, aprender na prática sobre o comércio e os costumes da população.
“Se as pessoas estão sem dinheiro no fim do mês, elas vão focar nas lojas que têm os menores preços.”Por isso, não ficou assustado ao desembarcar no Brasil em 2017, quando o país saía de dois anos de recessão. O francês decidiu seguir sua fórmula e procurou entender a cabeça do brasileiro, que via seu poder de compra diminuir ao passo que o desemprego continuava a aumentar. Como, seguindo lógica oposta, ele poderia fazer com que o consumo não diminuísse? “Se as pessoas estão sem dinheiro no fim do mês, elas vão focar nas lojas que têm os menores preços”, avalia o CEO. E menores preços no Brasil ele descobriu que tem um nome muito particular: atacarejo – ou Atacadão, nos moldes da empresa. “É uma coisa que, nessa dimensão, só existe no Brasil, né?”
Depois de estudar os números, Prioux decidiu dar prioridade ao formato: dobrou a quantidade de inauguração de lojas para 20 por ano em busca de aumentar a presença em lugares diferentes. Hoje, o Atacadão está presente em 144 cidades (enquanto os hipermercados Carrefour estão em 56) com vendas trimestrais na casa dos R$ 10 bilhões. “No Atacadão, você vai uma vez por mês para comprar muito – temos a política geral de preços baixos. Vale para todos os lugares, tendo concorrente ou não. No fim, ele vale por 20 Carrefour Express em vendas.”
Mas, se o atacado já estava de vento em popa, o mesmo não se podia dizer dos hipermercados com a tradicional letra C camuflada entre o azul e o vermelho. Afinal, o motivo que ajudou a acelerar um, com preços mais baixos, é o mesmo que atrapalhou o outro, não tão acessível: a crise econômica. O grupo teve de adotar uma mudança de formato no setor que deu origem à marca: além de baixar os preços, pouco a pouco, a cada trimestre, aumentaram a qualidade e a variedade dos produtos, aderindo a itens regionais e mais opções de orgânicos.
“Procuramos o que poderia nos diferenciar”, conta o CEO. Por meio de pesquisas de consumo, o Carrefour descobriu que mais de 70% dos brasileiros preferem produtos com menos gordura e açúcar e sem aditivos. Qual o problema? Esses alimentos são, geralmente, mais caros. Tendo isso em vista, o grupo lançou no ano passado a campanha “Act For Food”, que busca oferecer opções de comida cada vez mais saudável em seus supermercados a preços mais acessíveis.
Para estimular o consumo, foi preciso começar um trabalho de educação alimentar que passava do consumidor ao fornecedor. “Tivemos que explicar para o fornecedor que os consumidores querem produtos que não tínhamos”, lembra Prioux. Começou com os produtos de marca Carrefour e logo passou ao estímulo aos diferentes parceiros.
A estratégia deu certo – e teve impacto nas vendas. Um ano depois, a busca por receitas saudáveis aumentou mais de 500% e a procura por produtos veganos cresceu quase 150%, ao passo que o segmento de hipermercados tem crescido a cada divulgação de resultados. No terceiro trimestre de 2019, registrou aumento de 8,8%.
Outro fator que acelerou as vendas do grupo foi o investimento em e-commerce e entregas via aplicativo, em parceria com a Rappi. Hoje, 11% das vendas do Carrefour são online. “O cliente muitas vezes tem problema para chegar às lojas. Às vezes não tem ônibus, o metrô está longe, é complicado. Então, uma das soluções é entregar o produto em casa”, afirma o executivo. Para isso, o grupo criou as chamadas “side stores”, pontos voltados exclusivamente para entrega de produtos que dão apoio às lojas físicas. Já são sete na região de São Paulo. O objetivo é aumentar para 40 em dois anos por diferentes lugares do Brasil.
Reforma tributária
Prioux vê com entusiasmo os anos seguintes sem temer a instabilidade econômica. “Chegamos em 1975, conhecemos o Brasil. Já nos adaptamos a uma inflação de 1.000%”, argumenta. Para o francês, é tudo questão de “sazonalidade”: durante as estações boas, você se prepara para as estações ruins. Mas e se, para você, nem as estações ruins foram realmente ruins? Ele faz uma conta simples: se, mesmo com recessão e redução de consumo, o grupo continuou a crescer, com estabilidade econômica maior a expectativa é ainda mais alta.
É isso que ele espera do governo atual. “Queremos um pouco de visão. Como vamos estabilizar a economia? Como vamos atrair investidores? Que visão queremos para o futuro?”, questiona. “Nós queremos compartilhar a riqueza, mas, primeiro, precisamos ter riqueza. Se pudermos ter uma visão de médio prazo com um pouco de estabilidade, isso já teria um impacto espetacular.”
Um dos principais pontos seria a simplificação dos impostos no Brasil – algo que, ele indica, assusta qualquer investidor estrangeiro – com ênfase nas diferentes cargas tributárias federais, estaduais e municipais. “A complexidade é espantosa. Só o Atacadão tem 200 pessoas para lidar com isso. Seria interessante para todo mundo um produto poder passar de um estado a outro sem ter problema. Não estou nem falando de exportação, estamos falando de produtos brasileiros: é difícil vender de um estado para outro”, lamenta. Por isso, apoia a reforma tributária, um dos principais assuntos de Brasília no momento. “Temos que imaginar algo que seja mais fácil. Isso vai ajudar as empresas brasileiras, pode até trazer novas empresas [de fora].”
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Entusiasmado, Prioux diz que gosta de morar no Brasil. Ele garante que o Carrefour continuará com investimentos sólidos no país: este ano fechará em R$ 1,8 bilhão investido. Para 2020, o projetado é de R$ 2 bilhões, com a abertura de pelo menos 20 unidades do Atacadão, novos Express e side stores, além da expansão do portfólio de produtos de marca própria (com foco em comida saudável) e do avanço dos serviços financeiros (com foco em soluções de pagamento por meio de contas digitais). “A cada mês temos novas ideias. Pequenas ideias que, no final, nos diferenciam cada vez mais da concorrência. O que podemos fazer para cada tipo de cliente? Isso é que é interessante.”
Reportagem publicada na edição 73, lançada em dezembro de 2019
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