As discussões sobre cannabis medicinal nunca estiveram tão presentes nos âmbitos público e privado da sociedade brasileira. Há cinco anos, quando o primeiro passo para regulamentação foi dado, com a liberação da importação de medicamentos à base de canabidiol (CBD) para o Brasil (mediante autorização obrigatória da Anvisa), pipocaram empresários que, olhando a potência de mercados internacionais, como o norte-americano, passaram a vislumbrar o desenvolvimento de uma indústria local. Até então, tal objetivo parecia distante.
Quatro anos se passaram e mais um grande passo foi dado: a Anvisa regulamentou a fabricação e a venda de produtos para uso medicinal nas farmácias brasileiras mediante prescrição médica. A medida entrou em vigor no dia 10 de março de 2020. A ideia é simplificar a trajetória de compras dos usuários: no passado, os pacientes precisavam, após ter a prescrição, requerer autorização da Anvisa para importação e comprar direto dos laboratórios internacionais, processo que levava cerca de 90 dias. Apesar do progresso, a decisão não engloba o cultivo de cânhamo em solo brasileiro, discussão que permanece acalorada, principalmente pelo potencial da planta, que além das propriedades medicinais também pode ser utilizada em indústrias diversas como a têxtil e a alimentícia.
A projeção mais otimista é que, em 36 meses após a legalização das vendas no país, o Brasil tenha 3,9 milhões de pacientes, o que representa um mercado de R$ 4,7 bilhões.O ecossistema canábico, independentemente das decisões legais que seguem pendentes, vem tomando forma com a chegada de players internacionais, startups, aceleradoras, médicos ativos pela causa – sem contar o aumento do interesse por parte de pacientes. Segundo estudo promovido pela New Frontier Data em parceria com a The Green Hub em 2018, a projeção mais otimista é que, em 36 meses após a legalização das vendas no país, o Brasil tenha 3,9 milhões de pacientes, o que representa um mercado de R$ 4,7 bilhões.
A americana HempMeds, braço do grupo Medical Marijuana Inc. (o primeiro do segmento a abrir capital nos Estados Unidos), foi a primeira empresa autorizada pela Anvisa a importar produtos à base de canabidiol para o Brasil, em 2014, após observar uma demanda crescente de clientes brasileiros pelo produto RSH Oil, usado no combate de crises convulsivas: “Eu brinco que foi o Brasil que quis a HempMeds aqui”, diz a fluminense Caroline Heinz* de sua casa, no estado de Utah. A jornalista, recentemente promovida a coCEO global da empresa, iniciou sua carreira em 2014 como assistente de comunicação, quando os americanos precisaram de um nativo no idioma português, e teve uma trajetória meteórica: chegou ao cargo de diretora-executiva para o Brasil e, no meio da pandemia, foi promovida ao cargo global.
“O Brasil e o México [país no qual a HempMeds também está presente] possuem muito potencial para se tornarem mercados gigantes. Quando a gente entra em uma nova legislação que permite que as empresas possam trazer os registros desses medicamentos para vender em farmácias, isso também gera competitividade e, consequentemente, irá ocasionar a queda dos preços”, explica Caroline quando questionada sobre as perspectivas para o país. A HempMeds, que até então importava produtos da marca Real Scientific para o Brasil, acaba de anunciar uma nova marca, a Hezium, desenvolvida exclusivamente para o mercado brasileiro e que atende às determinações da Anvisa. O produto chegará às gôndolas das farmácias no primeiro semestre de 2021.
Mesmo com o lançamento, Caroline declara que o caminho ainda é longo: “Uma das principais barreiras é a desinformação, principalmente dos políticos que nos representam, e vejo acontecendo muito lobby, o que é chato para a indústria. Mesmo que o plantio seja liberado, vai demorar para os produtores que têm experiência no assunto passarem a plantar, afinal, é necessário entender o clima do país. O mundo inteiro está em crise – e não agarrar essa oportunidade é até burrice. Enquanto o mercado não é estruturado e não possibilita uma produção, existem as plantações clandestinas, vários óleos que não se sabe o que tem dentro, os quais são difíceis de saber a procedência. Tudo isso é uma barreira muito grande.”
Pesquisa científica
Também na corrida para produzir produtos medicinais que serão futuramente comercializados em drogarias, está a brasileira Ease Labs, fundada em Belo Horizonte em 2017. No último ano, para começar a linha própria, formou equipe científica e adquiriu uma indústria farmacêutica especializada em fitoterápicos. “Atualmente temos a operação de importados e, agora, estamos com a indústria, a qual adaptamos por completo para um modelo de produção de cannabis. Estamos na fase de finalizar o produto e pedir o registro para a Anvisa”, conta o CEO Gustavo de Lima Palhares.
O grupo The Green Hub, que atua como aceleradora de startups ligadas à cannabis e consultoria, foi fundada pelo empresário Marcel Grecco em 2017. “Comecei as pesquisas em 2015, e fui analisando principalmente os EUA. Naquele momento, entendi o tamanho do potencial e percebi que era questão de tempo para ser desenvolvida uma indústria aqui, com o foco prioritário no uso medicinal. Com a empresa, o objetivo é atacar alguns dos principais problemas, que são a educação, pesquisa científica e inteligência de dados”, afirma Grecco. Em 2018, abriram o primeiro ciclo de aceleração, no qual foram selecionadas duas startups. Recentemente, no primeiro semestre de 2020, aceleraram a fintech Cannapag e o Jamba Estúdio, focado em conteúdo educativo. Até 13 de novembro, em parceria com a alemã Merck, a The Green Hub está realizando uma segunda chamada de startups. “Já consigo notar uma evolução com projetos de grande potencial em nível global. Na hora de selecionar, não somos engessados e não nos interessa a maturidade e, sim, o potencial do negócio”, explica Grecco.
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Defensor da liberação do cultivo, ele aponta que o país ainda tem muito a evoluir. “A questão da educação e do conhecimento é fundamental para amadurecermos. É preciso tirar o estigma que a cannabis tem, dar foco no agronegócio, e não pode deixar de lado a discussão sobre as drogas, que é justamente onde está o preconceito. A experiência dos mercados maduros internacionais é um ativo para desenvolvermos um regulatório e ter o crescimento do mercado interno.”
O interesse pelo cultivo, como é de se esperar, é uma realidade por parte dos produtores: o Grupo Terra Viva, que tem sede em Holambra (SP) e atualmente produz e comercializa batatas, bulbos, cereais, laranja, mudas, eucaliptos, flores e plantas ornamentais, pretende acrescentar o cânhamo em seu portfólio o mais rápido possível. Há menos de um ano, em dezembro de 2019, o grupo conseguiu uma liminar para o cultivo, a qual foi derrubada pela Anvisa em abril de 2020. “A venda do CBD já está autorizada e atualmente a matéria-prima é exclusivamente importada para o Brasil. Por isso, não entendemos o motivo da não permissão. Além disso, acreditamos no potencial agrícola do país para a produção”, diz Fernando Casado, gerente comercial da Terra Viva e responsável pela iniciativa.
Procuram-se médicos
“Cada vez mais médicos prescrevem a cannabis, mas é necessário mais médicos que prescrevam, pois, atualmente, são apenas mil profissionais de um total de quase 500 mil médicos no país. Não adianta estar na farmácia e não ter quem prescreva”, diz Viviane Sedola, a fundadora e CEO da Dr. Cannabis, plataforma que conecta pacientes e médicos que buscam o tratamento, promove o acesso à informação e tem um novo braço educacional, com cursos para médicos. Fundada em 2017, atualmente são 30 mil usuários e 3 mil médicos. Do total, apenas 120 cadastrados na plataforma estão aptos a prescrever.
No momento, a Dr. Cannabis está com rodada de captação aberta. O objetivo é arrecadar R$ 2 milhões, os quais serão investidos principalmente em tecnologia. “Queremos tornar o processo mais eficiente e automatizado, melhorar cada vez mais a nossa base de dados e usá-los em benefício da própria comunidade, para ter prescrições apoiadas por métricas”, afirma Viviane. Um dos grandes entraves em relação ao uso do canabidiol é a dosagem necessária para cada tratamento, o que varia muito entre os pacientes. “Se houvesse uma enxurrada de prescrições, o que já aumentou no começo deste ano e 10 mil médicos prescrevendo, seria diferente. Agora, com as vendas nas farmácias, será necessário ter um mapeamento da demanda.”
A médica nutróloga Patrícia Savoi começou a estudar as aplicações de cannabis medicinal em 2015, e, desde 2016, receita aos seus pacientes. “Utilizo muito para epilepsia, ansiedade e até pacientes oncológicos, que sofrem com algum tipo de dor”, afirma Patrícia. A médica desenvolveu o curso junto a plataforma Dr. Cannabis e de outros profissionais, justamente para suprir essa falta de formação e informação no país. “A melhor forma ainda é educação médica, por mais que a gente tenha um público ativo, em que o paciente procura o médico para prescrever”, conclui.
O PIONEIRO NO ESTUDO DA MACONHA MEDICINAL
Reconhecido globalmente, o cientista israelense Raphael Mechoulam foi pioneiro nos estudos de aplicação de maconha medicinal. Hoje, aos 89 anos, tem, entre suas descobertas, a função do sistema endocanabinoide, que é um conjunto de receptores e enzimas que trabalham sinalizando entre células e processos naturais do copo. Seu nome é uma homenagem à cannabis, a qual levou a sua descoberta. É justamente no sistema que o CBD interage com o corpo humano. Os endocanabinoides e receptores estão espalhados por todo o corpo e executam tarefas diferentes. No entanto, o objetivo é sempre a estabilidade do ambiente interno, estado mais conhecido como homeostase.
Antes, olhe o DNA
O neurocientista Fabricio Pamplona e o administrador Fernando Gabas são os sócios-fundadores da Proprium, startup de testes genéticos que identificam a resposta individual de cada medicamento ou substância colocada no corpo, assim como a predisposição genética para o desenvolvimento de doenças. “A ideia da Proprium surgiu de um fato pessoal, após a minha esposa ser diagnosticada com câncer de mama, aos 39 anos. Deparamos com um tratamento que tem muito efeito colateral e que não garante a eficácia. Foi aí que pensei se não era possível saber, antes mesmo de se submeter a algo tão agressivo, se traria efeito, pois, se todo indivíduo é único, os tratamentos também deveriam ser”, recorda Gabas.
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Com um portfólio atual de quatro testes vitalícios batizados de MyCannabisCode, MyMedCode, My FitnessCode e MyNutriCode, a Proprium chegou simultaneamente aos mercados brasileiro, europeu e americano, com o objetivo de prevenir e garantir a eficácia de tratamentos, o que é, no caso da cannabis, uma maior segurança para médicos e pacientes. “O MyCannabisCode auxilia na prescrição e gera um enorme valor para os médicos e pacientes. A avaliação inicial é interessante para saber se fará bem, antes do investimento em produtos, e também traz mais segurança na prescrição, já que a variação de dosagem também é muito única: é possível saber o metabolismo do paciente, como ele absorve e degrada a substância, e fugir dos efeitos adversos. O mapeamento é feito pela avaliação de polimorfismos, variações naturais na nossa genética, que tornam algumas pessoas sensíveis e outras muito tolerantes, o que é fundamental na hora de decidir se o tratamento é indicado ou não”, explica Pamplona.
Especificamente para o teste de cannabis desenvolvido pela Proprium, já existem muitas evidências e é assertivo, mas ainda há espaço para evoluir. “No futuro, poderemos entender para qual patologia a cannabis é útil. Hoje as respostas são relacionadas ao metabolismo e aos efeitos adversos.”
Reportagem publicada na edição 81, lançada em outubro de 2020
* Caroline Heinz era a coCEO global da HempMeds quando deu a entrevista para a Forbes em outubro, mas deixou o cargo em novembro.
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