Pouco mais de um mês depois de completar 90 anos, em 8 de janeiro, o engenheiro Ozires Silva fez história – de novo. O fundador da Embraer é o primeiro brasileiro a ser condecorado com a medalha Daniel Guggenheim, um dos reconhecimentos mais notáveis na engenharia aeronáutica internacional. Criada em 1929, a premiação é realizada por um conselho de especialistas do American Institute of Aeronautics and Astronautics (AIAA), American Society of Mechanical Engineers (ASME), SAE International e Vertical Flight Society, dos Estados Unidos. Entre as personalidades já premiadas, ícones do pioneirismo da aviação como William Edward Boeing, Lawrence Dale Bell, Igor Sikorsky, Charles Lindbergh e Marcel Dassault.
A comenda faz parte agora da coleção de mais de 50 condecorações nacionais e internacionais recebidas por Ozires. Também, pudera: esse paulista de Bauru protagoniza páginas da história do Brasil que o elevam ao patamar de herói, de criar algo inédito, de realizar algo concebido em sonhos infantis e compartilhado com o amigão da época, Benedito César, o Zico: construir um avião. Ele entrou como cadete na Escola de Aeronáutica, em 1948, no Rio de Janeiro (RJ). Formado, serviu na Amazônia, trabalhou no Correio Aéreo Nacional, no Rio, e na Base Aérea de São Paulo. Já em 1959, fez as malas para São José dos Campos (SP) para ingressar no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). “Foi um processo vigoroso de transformação. Eu me transformei em oficial da FAB e construtor de aviões”, resume.
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Mal se formou como engenheiro aeronáutico, foi convidado a liderar o Departamento de Aeronaves do então CTA (Centro Técnico de Aeronáutica). Não precisou de muito tempo para constatar que o Brasil precisava de aeronaves menores, para conectar pequenas cidades. Germinava ali a semente para o desenvolvimento do projeto IPD-6504, que entraria para os anais da aviação como Bandeirante. A empresa que colocou esse sonho no céu se tornaria a Embraer, fundada em 1969. O primeiro voo do protótipo aconteceu em 22 de outubro de 1968, inaugurando a aviação regional no Brasil. Ozires liderou a Embraer entre 1970 e 1986, voltando em 1992 para presidir a companhia no processo de reestruturação até sua privatização em 1994. Atualmente morador do Itaim Bibi, na capital paulista, Ozires também presidiu a Petrobras e Varig, foi ministro de Infraestrutura e criou a Pele Nova Biotecnologia, empresa focada em saúde humana, e foi reitor de universidade. Abaixo, os melhores momentos da entrevista com o engenheiro que tem quatro netas e oito bisnetos.
Forbes: O que seus pais faziam em Bauru quando o senhor nasceu?
Ozires Silva: Meu pai [Arnaldo Silva] era eletricista-montador, mantendo também uma pequena loja de eletricidade. Minha mãe [Helena] era costureira de roupas femininas, trabalhando em casa, por vezes usando outras costureiras. Tive duas irmãs. Uma delas morreu antes do meu nascimento, em 1930. A outra, Ordaisis, morreu em 2015.
F: Quais eram as principais brincadeiras na infância?
OS:Naquela época não existia TV ou qualquer eletrônico, salvo o rádio. Assim, as brincadeiras ocorriam na rua com os vizinhos, em geral no início da noite, após a escola ou o trabalho diário em casa, ajudando minha mãe ou meu pai.
F: Como nasceu o interesse por aviação?
OS: Minha mãe matriculou-me num cursinho para me preparar para o concurso de admissão ao Ginásio. Foi lá que conheci Benedicto Cesar, o Zico, criando uma amizade que durou até sua morte, em 1955. Zico foi responsável pela minha vocação pela aviação. Ele já frequentava o Aero-clube de Bauru e se tornou o mais jovem piloto de planador do Brasil, recebendo o brevê das mãos do então primeiro ministro da Aeronáutica, Joaquim Pedro Salgado Filho, que visitava Bauru. Mais e mais procurava me aproximar do Zico, a quem eu admirava. Pelas mãos do Zico, o Aero-clube passou a me interessar, pois trabalhava lá um técnico suíço, Hendrich Kurt, que fabricava aviões na Alemanha, foragido da 2ª Guerra Mundial. Ele gostava de se cercar dos meninos. Foi ele que começou a nos interessar na construção aeronáutica, na medida em que construía um protótipo de um planador, o Flamingo, projetado pelo seu cunhado.
F: Por que ingressou na Escola de Aeronáutica em 1948?
OS: O Zico e eu falávamos muito em viver a vida da aviação e fomos aconselhados por um sargento do Exército a tentar um exame de admissão na Força Aérea Brasileira. Ele nos ajudou a nos inscrevermos e tentamos em 1947, ambos sem sucesso, mas, em 1948, fomos aprovados numa segunda tentativa. Fomos matriculados em 28 de abril de 1948 na Escola de Aeronáutica no Rio de Janeiro. Fomos declarados aspirante-oficial aviador em 1951. O Zico preferiu uma classificação na Aviação de Caça. Eu preferi a Aviação de Transporte. Zico ficou no Rio e eu fui destacado para Belém do Pará, entusiasmado com a possibilidade de voar aviões Catalina, que operavam na água e no solo, dando-me oportunidade de conhecer mais o Brasil distante.
F: O senhor se encantava ao sobrevoar a floresta?
OS: Sem dúvida. Era um Brasil diferente que me deu grande experiência humana numa terra a se desenvolver, e meu treinamento como piloto melhorou bastante pela habilidade de ter de operar num ambiente difícil.
F: De que ano a que ano trabalhou no Correio Aéreo Nacional?
OS: Cheguei em Belém em 1951 e, em 1955, fui transferido para o Rio de Janeiro, para a base aérea sede do Correio Aéreo Nacional. Em 15 de março de 1955 tive um choque. O Zico morreu num acidente, coincidindo com minha chegada ao Rio. Foi-me difícil aceitar a perda de um amigo de tantos anos. Todavia, a vida tinha de continuar e me dediquei muito ao Correio Aéreo. Ainda em 1958, fui escalado para um voo de aprovação de um velho colega, major Coelho de Souza, então aluno do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica]. O Coelho de Souza reacendeu o sonho do Zico e meu, para me tornar engenheiro da aeronáutica. Depois de três anos no Correio, tive a oportunidade sonhada desde a juventude.
F: Qual a principal lição dos anos no ITA?
OS: Eu queria ser engenheiro da aeronáutica, e o ITA deu-me uma lição e a possibilidade de uma materialização de algo que vinha de longe.
F: Como nasceu a inspiração para o desenho do Bandeirante?
OS: Graduado pelo ITA, fui convidado a ocupar o espaço de Chefe do Departamento de Aeronaves do IPD – órgão do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento do CTA [Centro Técnico de Aeronáutica]. Estava onde deveria estar para projetar um novo avião, ação que dependia de autorização do ministro da Aeronáutica. Inicialmente ele negou, mas, casualmente, chegou da França um famoso projetista e criador de aviões, Max Holste, que decidiu se instalar no Brasil. Oferecemos uma parceria para o Holste, o que nos deu a credibilidade que nos faltava. Finalmente, em 1963, o ministro autorizou o projeto do Bandeirante.
F: Qual lembrança o senhor tem do dia 22 de outubro de 1968, no primeiro voo do protótipo?
OS: Foi um dia especial na minha vida. Muito tinha ocorrido na minha vida para sair do Aeroclube de Bauru para chegar a um dia, o 22 de outubro de 1968. Uma vitória minha e do Zico, pois sentia que ele, de algum modo, me ajudava.
F: Qual foi o grande desafio para a criação da Embraer em 1969?
OS: A Embraer era uma fábrica e precisava de capitais privados. Enfrentei inúmeras entrevistas com especialistas e capitalistas brasileiros, os quais também duvidavam de nossa capacidade de fabricar aviões competitivos com os aviões produzidos por famosos fabricantes internacionais. Depois de muitas tentativas, em 1970, o presidente da República, Arthur da Costa e Silva, resolveu criar a Embraer como empresa estatal.
F: Quais são as principais recordações dos tempos que assumiu a presidência da Petrobras e da Varig ?
OS: A minha ida para a Petrobras decorreu de um convite do presidente da República, José Sarney, onde mais aprendi do que realizei. Procurei apenas aumentar a eficiência produtiva da empresa graças à sua importância para o Brasil. Quanto à Varig, a empresa estava praticamente falida, devido à disputa entre os acionistas e com uma enorme dívida construída contraída durante o governo Sarney, que pensou em controlar a crescente inflação congelando as tarifas das empresas.
F: O senhor recorda de outro momento em que o Brasil tenha sofrido tanto como na pandemia? Qual deve ser a grande lição da pandemia para a humanidade?
OS: Nestes 90 anos vi uma pandemia criada pela gripe que vitimou minha irmã no começo dos anos de 1930, e a paralisia infantil. Ambas controladas por vacinas criadas por sábios estrangeiros. Hoje, temos a pandemia da Covid-19 e estamos engajados na sua eliminação via vacinas. Não sou especialista, mas acredito que haja uma origem no tratamento cruel que a raça humana está impondo ao meio ambiente. Acredito nisso. E você, caro leitor?
F: Como tem sido a rotina do senhor?
OS: Minha rotina está sendo a da reclusão, esperando que uma próxima vacina possa me defender até que o final da minha vida chegue!
Reportagem publicada na edição 85, lançada em março de 2021
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