É cada vez mais frequente a quantidade de estudos publicados nas principais revistas científicas do mundo que apontam que as usinas nucleares são, de longe, a maneira mais segura de produzir eletricidade. Durante as duas primeiras décadas de produção, as pessoas apresentaram certa euforia com a novidade. Porém, o que veio na sequência foi o receio generalizado – para muitos, o medo está relacionado à associação histórica das usinas nucleares com armas nucleares.
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Em seu novo livro, “Energy: A Human History” (sem versão para o português), o historiador vencedor do Pulitzer Richard Rhodes cita o inventor da primeira usina nuclear pacífica, o almirante da marinha norte-americana Hyman Rickover, tentando conter o excesso de entusiasmo do público e dos formuladores de políticas públicas. “Eu acho que nós criamos expectativas em muitas pessoas no país por muito tempo com o glamour da energia atômica”, disse ele a um congressista em 1957. Mas como o comportamento frente à tecnologia passou da glamourização na década de 1950 para o medo atual?
A resposta mais comum para essa mudança de comportamento está relacionada aos acidentes nucleares de Three Mile Island, Chernobyl e Fukushima. Mas, ainda assim, esses acontecimentos provaram a segurança relativa e não o perigo relativo da energia nuclear. Nenhuma pessoa morreu por conta da radiação em Three Mile Island e Fukushima. Menos de 50 morreram em Chernobyl nos 30 anos após o acidente.
O motivo pelo qual as pessoas passaram a ver esses acidentes nucleares de forma tão catastrófica foi a maneira como as gestões políticas responderam a eles. Em vez de encorajar a população a ter calma e prosseguir com a rotina, os governantes instauraram o pânico e provocaram a evacuação de centenas de milhares de pessoas dos locais. “Muita gente foi removida da área de Chernobyl por volta de cinco a dez vezes entre 1986 e 1990”, escreveu uma equipe de cientistas de primeira linha na publicação “Process Safety and Environmental Protection”.
Sobre o acidente nuclear de 2011 no Japão, os cientistas disseram ser “difícil justificar a remoção de qualquer um de Fukushima por motivos de proteção radiológica”. Em outras palavras, foi a reação ao acidente – e não ele – que resultou no popular medo da tecnologia.
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A declaração de estudiosos da radiação levanta a possibilidade de, mesmo que não seja possível superar totalmente o medo público, poder mudar a forma como os governos respondem aos acidentes nucleares. A pergunta que fica é: por que os governantes continuam exagerando em relação a este tipo de acidente?
Para responder à questão, é preciso voltar para o tempo do surgimento da energia nuclear – e aos 50 anos de guerra contra ela.
A guerra da prosperidade universal
Em seu discurso “Átomos para a Paz”, de 1953, o então presidente dos Estados Unidos, Dwight D. Eisenhower, propôs o uso da energia nuclear como forma de redimir a humanidade por ter criado uma tecnologia tão terrível. A redução de armas não seria suficiente. “Especialistas seriam mobilizados para aplicar a energia atômica às necessidades da agricultura, medicina e outras atividades pacíficas”, disse Eisenhower durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em Manhattan, Nova York. O chefe de estado completou: “Um propósito especial seria fornecer energia abundante em áreas carentes de eletricidade no mundo.”
A visão de Eisenhower foi, ao mesmo tempo, nacionalista e internacionalista, altruísta e egoísta. “Os Estados Unidos se comprometem a dedicar todo o seu coração e mente”, disse ele, “para encontrar o caminho pelo qual a inventividade milagrosa do homem não deve ser dedicada à sua morte, mas consagrada à sua vida.” Depois que Eisenhower terminou, houve um breve silêncio e, então, algo extraordinário aconteceu: representantes de todas as nações se levantaram e aplaudiram por 10 minutos. Mas nem todos ficaram encantados com a ideia de eliminar a pobreza.
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Três anos antes do discurso de Eisenhower, um veterano do Manhattan Project – esforço do governo dos EUA para criar a bomba atômica – publicou um livro no qual argumentava que os seres humanos estavam superpovoando a Terra. A humanidade “não descansaria satisfeita até que a Terra estivesse completamente coberta e com uma profundidade considerável de massa de seres humanos contorcida, assim como uma vaca morta é coberta com uma massa pulsante de vermes”, escreveu o cientista Harrison Brown em “The Challenge of Man’s Future”, em 1950.
Segundo Richard Rhodes, o historiador, Brown foi extremamente influente entre os ambientalistas. Um de seus protegidos foi John Holdren, conselheiro científico do presidente Barack Obama, que descreveria o cientista como “caloroso, espirituoso e surpreendentemente modesto”. Brown também propôs a criação e a esterilização de humanos para evitar “a degeneração do estoque humano a longo prazo”.
A proposta de Brown, explica Rhodes, foi uma extensão das ideias do economista do século 19 Thomas Malthus, que desejava o extermínio de seus semelhantes, particularmente os pobres e irlandeses. “Em vez de recomendar limpeza aos pobres”, argumentava Malthus, “devemos encorajar hábitos contrários e cortejar o retorno da praga”.
Em 1966, conservacionistas misantropos do Sierra Club abraçaram o malthusianismo. “O mundo pequeno, o crescimento populacional zero e a construção do desenvolvimento energético tênue proveniente do movimento ambiental que surgiu nos anos 1960 e 1970 incorporaram, consciente ou inconscientemente, a ideologia anti-humanista dos neo-malthusianos em seus argumentos”, escreveu Rhodes. “Mais poder às fábricas criam mais indústrias”, reclamou o diretor-executivo do Sierra Club, “que, por sua vez, convida a uma maior densidade populacional”, completa.
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Tais ideias anti-humanistas floresceram no panfleto de 1967 do Sierra Club do biólogo de Stanford, Paul Ehrlich, “The Population Bomb”, que mostrava pessoas pobres na Índia como animais “gritando, implorando, defecando e urinando”.
Em contraste, os criadores da energia nuclear permaneceram otimistas e humanistas. Eles viam a nova fonte de energia como a chave para evitar os problemas criados por uma crescente população humana e para permitir que os mais pobres saíssem da pobreza. Para o diretor do Laboratório de Oak Ridge, Alvin Weinberg, com a energia nuclear os seres humanos poderiam criar fertilizantes, água doce e, assim, alimentos em abundância para sempre.
Porém, defensores nucleares de mentalidade literal, como Weinberg, erraram o alvo. Energia barata e abundante não era – para os malthusianos – uma característica, mas sim um erro. O Sierra Club e os outros ambientalistas odiavam a energia nuclear porque ela mantinha a promessa de prosperidade universal.
Foi nesse momento que grupos ambientalistas e seus apoiadores filantrópicos iniciaram uma campanha de meio século para assustar o público. “Nossa campanha enfatizando os riscos da energia nuclear”, escreveu o presidente do Sierra Club em um memorando de 1974 ao conselho de diretores, “fornecerá uma justificativa para aumentar a regulamentação e o custo do setor”.
A fraude científica
Uma das passagens mais chocantes do livro “Energy: A Human History”, de Rhodes, é sobre como um cientista norte-americano ganhador do Prêmio Nobel cometeu fraudes científicas para exagerar quanto aos riscos da radiação nuclear para a saúde humana.
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Com base na pesquisa de arquivos de Edward Calabrese, da Universidade de Massachusetts, professor de toxicologia em Amherts, Rhodes descreve o trabalho de Hermann Muller, um geneticista da Universidade do Texas que ganhou o Prêmio Nobel de Medicina em 1946.
A pesquisa sobre as moscas da fruta levou Muller a concluir que não há dose segura de radiação porque cada dose, ele acreditava, levou a mutações que, segundo Rhodes, “eram prejudiciais ou letais, além de irreversíveis e permanentes”. Mas pouco antes de Muller voar para Estocolmo para aceitar seu Prêmio Nobel, ele recebeu uma nova pesquisa que contradizia suas conclusões.
O trabalho de Muller e o de outros ao longo dos anos exploraram os efeitos de altas e médias doses de radiação. O especialista em insetos Ernst Caspari ampliou a pesquisa para um intervalo de doses baixas, perguntando-se se o efeito seria o mesmo quando a dose fosse distribuída por um período crônico de tempo em vez de ser administrada de uma só vez. O surpreendente novo achado de Caspari foi que as moscas da fruta expostas a uma baixa dose diária de radiação não mostraram aumento em sua taxa de mutação.
Muller enfrentou, então, um dilema. O que ele deveria ter feito era qualificar seu discurso para o Nobel. Mas não foi o que aconteceu. “Em Estocolmo”, escreve Rhodes, “Muller aceitou seu Prêmio Nobel e ignorou deliberadamente as descobertas de Caspari em sua palestra”.
Mas isso nem foi o pior. Em seu retorno aos EUA, o cientista revisou a pesquisa de Caspari e disse a um colega que ele tinha “pouco a sugerir em relação ao manuscrito”, além de recomendar que o estudo fosse reproduzido. No entanto, como principal revisor do artigo, Muller passou a supervisionar sua publicação com duas mudanças. “Seu nome aparecia agora entre os agradecimentos”, observa Rhodes, “e uma sentença crucial foi apagada”. A sentença deletada foi justamente a que questionou a teoria de Muller.
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O status de Muller como um cientista poderoso e ganhador do Prêmio Nobel permitiu que ele estabelecesse sua falsa teoria como base científica para a regulamentação de usinas nucleares nas próximas décadas. Tendo suprimido um desafio baseado em evidências para seu modelo de efeitos de radiação “linear sem limiar” (LNT), o vencedor do Prêmio Nobel continuou a promover e defender a teoria sempre e onde quer que a questão surgisse.
As motivações profissionais de Muller se sobrepuseram às agendas dos cientistas e ativistas antinucleares. “Um movimento antinuclear que se originou da hostilidade ao crescimento populacional em um mundo supostamente malthusiano, promoveu, por sua vez o modelo LNT, exagerando seus efeitos”, escreveu Rhodes.
A boa notícia é que um número cada vez maior de cientistas especializados em radiação, clima e saúde pública apontam as usinas nucleares como essenciais para salvar vidas. Em 2013, Rhodes observou a descoberta dos cientistas climáticos Pushker Kharecha e James Hansen de que “a energia nuclear evitou uma média de 1,84 milhão de mortes relacionadas à poluição do ar”. E isso antes de levar em conta as possíveis conseqüências da mudança climática.
Nos últimos dois anos e meio, cientistas climáticos como Hansen e acadêmicos como Rhodes uniram forças para proteger e expandir usinas nucleares, de Illinois e Nova York à Coreia do Sul e França.
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Agora, cientistas de radiação com o apoio dos governos britânico e indiano estão pedindo aos governantes que fiquem calmos e sigam em frente durante acidentes nucleares.
Estes esforços mantêm a esperança de que, independentemente do medo da poluição do ar e do aquecimento global poder ou não superar os temores de acidentes nucleares, é possível pelo menos impedir reações grosseiras quanto ao assunto.