Foi só no dia 20 que uma equipe de 14 engenheiros de software e cientistas de dados da ZOE, uma startup de saúde e nutrição pouco conhecida, começou a montar o que se tornaria o aplicativo de coronavírus mais em alta na App Store da Apple na quarta-feira (25): o COVID Symptom Tracker.
Agora, alegando ter atingido 1,2 milhão de downloads apenas no Reino Unido, o app solicita às pessoas que insiram sua localização aproximada e informações sobre quaisquer incômodos que venham tendo, estejam eles relacionados ao coronavírus ou não. Mesmo que o usuário não tenha nenhum incômodo, pede-se que revele como está se sentindo. Então, todos os dados são transformados em anônimos por meio da conversão dos nomes em códigos não identificáveis, antes de serem repassados a uma equipe de epidemiologistas do King’s College London e do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês).
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Tudo isso deve fornecer pistas sobre a etiologia da Covid-19, “o segredo para as vacinas”, diz o Dr. Tim Spector, que foi um dos fundadores da ZOE, tirou-a do King’s College e levou-a a atrair US$ 27 milhões de capital de risco em sua breve existência. Anteriormente, a ZOE tinha como foco a intervenção nutricional em gêmeos: tentava entender como as variações na dieta afetam as pessoas de maneira diferente, dependendo de como elas metabolizam os alimentos. Muitos dos gêmeos envolvidos no estudo apresentaram sintomas de Covid-19. E, como já vinha analisando a reação imunológica e a condição de saúde deles, a empresa tinha um conjunto útil de dados para começar a investigar como o vírus afeta pessoas diferentes. Contudo, em vez de limitar o app às informações provenientes desses gêmeos, a ZOE decidiu, no final da semana passada, abri-lo a toda a população do Reino Unido e obteve uma resposta incrível. O que mais atrai nele é o fato de as pessoas poderem ajudar os pesquisadores a combater o coronavírus, dedicando apenas um minuto por dia para fazerem um “autorrelato”. E as informações fornecidas serão usadas somente em pesquisas sobre a Covid-19. Não serão repassadas, vendidas ou mal utilizadas de qualquer outra forma.
A ZOE não está apenas atendendo às necessidades de um dos maiores e mais antigos órgãos nacionais de saúde do mundo, o NHS. Ela também está compensando a lenta resposta das gigantes da tecnologia, que ainda não criaram ferramentas como a da ZOE, diz Sara Gordon, vice-presidente de marketing da empresa de dois anos e meio de vida. Embora empresas como Facebook e Google tenham fornecido mapas e ferramentas informativas referentes à Covid-19, não fizeram nada parecido com o que a ZOE fez, acrescenta ela, sendo que conversas que estariam em andamento entre pesos pesados do Vale do Silício e o governo Trump sobre o compartilhamento da localização dos usuários de forma agregada e anônima ainda não geraram nada substancial. “Este é um momento em que o Facebook e o Google têm todo o acesso para fazerem com que as pessoas indiquem como estão se sentindo, onde seus sintomas estão aparecendo e que tipos de sintomas elas têm, a fim de realmente atuarem em prol de um bem maior. Porém, eles não fizeram isso para apoiar o governo e o sistema de saúde”, diz Gordon à Forbes.
O aplicativo da ZOE é uma das poucas ferramentas de automonitoramento – todas disponíveis ao público em smartphones com sistema operacional do Google ou da Apple – que, juntas, fazem a pergunta: além de se isolar e manter distanciamento social, como você pode se tornar um soldado na batalha mundial contra o coronavírus? A resposta: recrute a si mesmo, monitore seus sintomas e movimentos e informe seus dados ao governo e à linha de frente da saúde que está combatendo a Covid-19. Até a pandemia acabar, pelo menos.
Em comparação com a rigorosa vigilância à qual são submetidos os cidadãos na China, há um consenso crescente de que essa forma de automonitoramento por adesão é uma maneira mais responsável de acompanhar a propagação da Covid-19, sem invadir totalmente a privacidade das pessoas. Diferentemente de uma vigilância em massa na qual a localização dos smartphones das pessoas é rastreada sem o consentimento delas, esse modelo por adesão depende de a população estar disposta a participar de um projeto inédito de automonitoramento em massa. Até agora, milhões de pessoas demonstraram que aceitam de bom grado abrir mão de um pouco de privacidade em prol de benefícios imediatos à saúde pública. E, como se fossem necessárias mais provas de que essa ideia entrou na consciência do público, as celebridades a vêm endossando; na quarta-feira (25), Stephen Fry incentivou seus 12,7 milhões de seguidores no Twitter a baixar o aplicativo da ZOE.
“Estamos vendo um ataque sem precedentes à liberdade das pessoas em todo o mundo através de leis de emergência, rastreamento obrigatório e ambições de vigilância onipresente. Nesse contexto, aplicativos bem-projetados e baseados no consentimento são relativamente inofensivos e podem ser uma maneira eficaz de reagir à crise”, comenta Edin Omanovic, porta-voz da Privacy International.
O surgimento repentino de um exército de cobaias que informam seu paradeiro e sua saúde às autoridades nacionais de saúde também foi observado em Israel. Em Tel Aviv, Omri Moyal, que já esteve na lista Under 30, supervisiona a segurança e a privacidade do aplicativo do Ministério da Saúde, o Hamagen (ou Protetor), que promete informar aos usuários se estão perto de cidadãos infectados. Ele diz acreditar que o app já superou 1 milhão de downloads – dos quais pelo menos 500 mil foram registrados só no Google Play –, o que significaria que um nono da população israelense baixou a ferramenta desde seu lançamento, no fim da semana passada.
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A abordagem do Hamagen é diferente da do aplicativo britânico. As equipes de epidemiologia do Ministério da Saúde vêm coletando informações sobre as vítimas e sua localização; algumas pessoas oferecem informações a partir de seus smartphones, outras simplesmente relatam, em entrevistas, onde estiveram. Depois, essas informações são carregadas em um servidor. A cada hora, esses dados são enviados do servidor ao aplicativo Hamagen, que monitora a localização das pessoas. Então, elas recebem um alerta caso tenham estado no mesmo espaço que um portador de coronavírus. Um aspecto crucial, porém, é que os dados de localização do usuário ficam no smartphone e não são revelados ao governo.
Moyal vê isso como uma alternativa melhor ao monitoramento não opcional, em Israel, da localização dos smartphones do país por meio de dados fornecidos pelas operadoras de telecomunicações, conforme estabelecido por lei e executado pelo órgão de inteligência israelense Shin Bet. Em primeiro lugar, os avisos são mais precisos no aplicativo de uso voluntário. O Shin Bet simplesmente diz ao usuário que ele deve se dirigir a um centro de quarentena, caso tenha sido exposto; o Hamagen diz onde e como o usuário foi exposto.
“Digamos que um ônibus com um paciente tenha se aproximado de um edifício. O rastreamento do celular vai informar que todos os que estão no edifício precisam entrar em quarentena, e isso será obrigatório. Este aplicativo vai informar se você já esteve naquele ônibus”, diz Moyal, acrescentando que cabe ao usuário decidir se vai ou não para a quarentena ou para um centro de exames. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse que as medidas de rastreamento de celulares e quarentena forçada são necessárias “para reduzir o número de mortes na epidemia”.
“Nós acreditamos e o Ministério da Saúde acredita que usar o método voluntário público será muito mais eficaz”, acrescenta Moyal. “O aplicativo basicamente faz o trabalho por você, em vez de serviços de segurança obrigatórios fazerem coisas assim. Eles ainda estão fazendo, mas espero que isso acabe.”
Sobre as medidas do governo no sentido de rastrear a localização dos celulares do país, Moyal diz que “foi uma tremenda violação de privacidade, mesmo nestas circunstâncias. Foi por isso que nos envolvemos para ajudar nesse projeto”. O objetivo da equipe por trás do Hamagen é alcançar todos os 9 milhões de habitantes de Israel, completa ele, o que significa que não haveria motivo para um rastreamento não voluntário. E, como se trata de uma ferramenta de código aberto, outros países podem adotá-la rapidamente.
A tecnologia de autorrelato de Israel já está ganhando força em outras regiões do mundo. A Forbes noticiou anteriormente sobre a Carbyne, uma fornecedora de tecnologia de última geração para chamadas de emergência financiada por Peter Thiel e pelo ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak. Levando o automonitoramento a níveis mais extremos do que a ZOE ou o Hamagen, a Carbyne possui uma ferramenta que pede a quem telefona para o número de emergência 911 que revele sua localização precisa e dê acesso à câmera de seu smartphone. Isso permite uma triagem remota e ajuda as equipes de emergência a navegar por áreas onde moram pessoas infectadas, seja para atendê-las, seja para as próprias equipes evitarem contrair o vírus.
Embora não tenha fechado negócios semelhantes em outras partes dos EUA, a Carbyne fechou um no México. O cofundador Amir Elichai disse à Forbes que também assinou um contrato no Brasil, onde o presidente Bolsonaro vem menosprezando a propagação da doença e acusando a mídia de dar uma cobertura exagerada à ameaça.
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Nos EUA – país que pode se tornar o próximo epicentro da pandemia depois da Europa –, a adesão ao autorrelato tem sido, até agora, menos entusiasmada. Uma criação do MIT Media Lab e de Harvard – o aplicativo Private Kit Safe Paths – foi anunciada no início deste mês e contou com a ajuda voluntária de desenvolvedores de empresas como Facebook e Uber. Ele rastreia os usuários e compartilha a localização entre eles, com o objetivo de informar se estiveram perto de pessoas infectadas. E tudo isso é feito usando o que os desenvolvedores afirmam ser um canal privado e seguro. Todavia, a resposta tem sido comparativamente apática, com menos de 50 mil downloads na loja de aplicativos Android, centenas de milhares a menos do que o registrado pelos aplicativos israelense e britânico. Relatos anteriores davam conta de que o app estava para receber a aprovação da Casa Branca como aplicativo de rastreamento oficial da Covid-19, mas Ramesh Raskar, do MIT Media Lab, diz que ele ainda está em desenvolvimento. Raskar diz à Forbes que a equipe está “envolvida” com o governo Trump e está em negociações contratuais com a Organização Mundial da Saúde.
Em uma iniciativa distinta patrocinada por Harvard e pelo Boston Children’s Hospital, o aplicativo covidnearyou.org, criado por uma comunidade de programadores de gigantes da tecnologia como Amazon, Apple e Google, teve repercussão positiva na rede “CNBC” por seu rápido desenvolvimento. Ele promete fazer praticamente o mesmo que a ferramenta da ZOE, pedindo aos norte-americanos que informem seus sintomas e sua localização. Entretanto, uma rápida visita ao site revela uma adesão mínima, sem dados disponíveis no momento da publicação.
A equipe da ZOE está esperançosa de que, quando o aplicativo for lançado nos EUA, na quinta-feira (2), haverá um aumento semelhante da popularidade, como ocorreu no Reino Unido. O Dr. Spector diz que a ferramenta poderá ser ainda mais útil nos EUA, onde é mais difícil obter dados nacionais devido às diferentes conjunturas regulamentares e reações ao coronavírus nos diversos estados. “Estamos trabalhando com uma série de hospitais e universidades, analisando cortes existentes que têm sido objeto de pesquisa, e vamos olhar para todo o país quando os aplicativos estiverem ativos. Vamos visualizar os sintomas e colaborar com as autoridades, começando pelo nível estadual e depois passando ao nacional.”
Se os norte-americanos puderem ser convencidos em massa a participar do teste mundial decisivo sobre atingir o equilíbrio entre a liberdade pessoal e o bem comum, isso poderá ajudar os cientistas a compreender as origens do coronavírus com muito mais celeridade. E, então, o mundo poderá combater a pandemia com muito mais rapidez.
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