Uma longa briga jurídica pode ter um desfecho nesta semana: o STF decide qual o índice de correção monetária é aplicável aos créditos trabalhistas. O julgamento pode significar a majoração abrupta do passivo trabalhista de todos os empregadores já acionados judicialmente (o aumento chega a 30% em vários casos). Por isso, ele tem atraído a atenção de todos os que de algum modo lidam com condenações na Justiça do Trabalho. Poucos sabem, contudo, que por trás da discussão aparente estabeleceu-se um embate oculto entre dois argumentos nada jurídicos: de um lado, a crise econômica causada pela Covid-19 e, de outro, a resistência ideológica à reforma trabalhista.
Desde 1991, a lei prevê que os créditos trabalhistas devem ser corrigidos pela Taxa Referencial (TR), índice criado no âmbito Plano Collor II, quando a desindexação era um sonho e a hiperinflação, o bicho-papão. Apesar de sua congênita fragilidade, e a despeito de não refletir propriamente a variação do poder aquisitivo da moeda, o indicador sempre foi utilizado sem maiores questionamentos pela Justiça do Trabalho.
Em 2015, contudo, o STF julgou inconstitucional a aplicação da TR em relação a débitos públicos, por entendê-la violadora da isonomia na compensação de precatórios (créditos recebidos da Fazenda Pública) com dívida tributária. O argumento era que o índice não recompunha as perdas inflacionárias para os credores do Estado, enquanto os devedores desse mesmo Estado pagavam-lhe tributos que eram adequadamente corrigidos. O Tribunal determinou, então, que fosse aplicável aos precatórios o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), calculado pelo IBGE.
Embora o julgamento não tivesse nenhuma relação com débitos trabalhistas, o Tribunal Superior do Trabalho rapidamente aproveitou-lhe para pinçar o argumento de que a TR não era índice eficaz de atualização e determinar a aplicação do IPCA-E também aos débitos judiciais da Justiça do Trabalho. A decisão do TST foi imediatamente cassada pelo STF, com o expresso puxão de orelha de que o tribunal trabalhista extrapolara ao tratar do tema. A confusão, todavia, estava criada, e desde então reviravoltas geram decisões desencontradas quanto ao tema nos diversos tribunais do trabalho.
A aplicação da referida decisão do Supremo aos créditos trabalhistas é, de fato, inadequada porque, em relação a eles, não há violação a isonomia. Além disso, a mesma lei de 1991 prevê para os créditos do trabalho a aplicação de juros de 12% (doze por cento) ao ano, o que os torna mais bem remunerados que todos os demais — cíveis, tributários, previdenciários e administrativos (todos estes são atualizados pela Selic, que não chega a 6% a.a.).
Foi por esses motivos, e também para buscar a pacificação do tema, que o legislador da reforma trabalhista optou por reafirmar a TR, fazendo inserir, agora na própria CLT, a determinação de que a atualização dos créditos decorrentes de condenação judicial na Justiça do Trabalho continuaria a ser feita pela referida taxa. Segundo a visão do legislador, naquela altura era desaconselhável alterar os juros moratórios das verbas trabalhistas e, por outro lado, imperioso considerá-los para estabelecer um índice de atualização monetária justo. Em se tratando de se preservar o valor do crédito, o importante era olhar para o conjunto remuneratório como um todo, juros mais correção monetária. Sendo a hipótese de juros vantajosos, razoável era a manutenção do índice de correção já legalizado há trinta anos ainda que ele, isoladamente, fosse desfavorável.
Ocorre que o fato de a reforma trabalhista ter tratado do tema incitou a — previsível e já enfadonha — resistência a ela, que veio, então, somar forças à tese de inaplicabilidade da TR. Foram ajuizadas duas ADI´s (ações diretas de inconstitucionalidade), cujas teses apontam uma abstrata violação ao direito de propriedade. Todavia, não há como se vislumbrar perda de propriedade em relação a um crédito que já é bem recompensado com juros de 12% ao ano. O argumento, portanto, é frágil.
Muito diferente, porque forte e concreta, é a tese que está agora do outro lado dessa balança oculta: a crise econômica causada pela Covid-19. Transformada em mote extra-autos, ela tem sido invocada em favor da manutenção da TR. O argumento, aqui, é que ao caos financeiro vivenciado pelos empregadores em razão da pandemia não se pode somar a multiplicação do passivo trabalhista advinda da substituição repentina do índice de correção monetária de débitos.
Entre o abstrato direito violado e o concreto caos financeiro, não se sabe para que lado vai pender a justiça. Vale lembrar, todavia, em um registro esperançoso, que os últimos precedentes trabalhistas do Supremo têm se dado, na maioria das vezes, em prol do bom senso.
Ana Fischer é juíza do Trabalho da 3ª Região. Integrou a comissão de redação da Reforma Trabalhista e de outras normas legais. É uma das coordenadoras do GAET – Grupo de Altos Estudos do Trabalho do Ministério da Economia.
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