Este mês, o Brasil se tornou o palco de um experimento sobre os desdobramentos da jornada de trabalho semanal de quatro dias. O projeto piloto é resultado de uma parceria entre a Reconnect Happiness at Work, empresa brasileira cujo objetivo é regatar a felicidade no trabalho, e a organização sem fins lucrativos 4 Day Week Global, que apoia empresas em países em todo o mundo que queiram testar o modelo.
No Brasil, empresas do ecossistema de startups, como a Zee Dog – hoje parte do grupo Petz – e a martech Winnin estão entre os nomes que implantaram a abordagem antes do piloto conduzido pela 4 Week Global. A organização nasceu da condução bem-sucedida do modelo por seu co-fundador Andrew Barnes enquanto era CEO da seguradora neozelandesa Perpetual Guardian, e hoje guia companhias no mundo todo para aplicar o modelo.
Em maio deste ano, a 4 Day Week e a Reconnect Happiness anunciaram que abririam as inscrições para o programa, que não colocou pré-requisitos, como número mínimo de funcionários, para comprar a mentoria. A diferença entre implantar o modelo sozinho e participar do piloto é o apoio das organizações líderes, além da possibilidade de interação qualificada entre as participantes, e entrar para as estatísticas globais dos estudos sobre o modelo.
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Mais de 20 empresas brasileiras estão participando do projeto, incluindo nomes como a Editora MOL, Hospital Indianópolis, a consultoria de inovação Haze Shift e a startup Thanks for Sharing, que produz vídeos de motion design para empresas e foi fundada por Simone Cyrineu em 2017.
Durante o piloto, a Thanks for Sharing, que emprega sete pessoas, é uma das empresas que está passando pela experiência coordenada de seis meses com a semana de trabalho de quatro dias, sem perda de salário para os funcionários e 100% de produtividade. Na fase inicial de planejamento, as companhias são auxiliadas na definição de um cronograma, critérios de sucesso e estratégias de comunicação. Os achados e percepções do programa também alimentarão um programa global de pesquisa, em que participantes podem comparar seu desempenho com outras empresas.
Na fase de testes, há um apoio na redefinição do dia de trabalho, otimização do uso de tecnologia e melhoria da cultura de trabalho. Neste estágio, entram cursos, oficinas, sessões individuais de suporte e outros recursos para apoiar os mentorados, em um programa que se adapta às realidades e demandas de cada organização.
A Rumo Futuro falou com a CEO da Thanks for Sharing sobre suas expectativas para o programa, além de sua visão sobre o futuro do expediente.
Veja, a seguir, alguns dos melhores momentos da conversa:
Rumo Futuro: O que despertou seu interesse para inscrever sua empresa no teste de semana de quatro dias de trabalho?
Simone Cyrineu: Tenho falado sobre ser mais produtivo e ter um equilíbrio [entre vida pessoal e profissional] com o time já há um bom tempo. Além disso, tem essa pegada de tentar fazer uma gestão humanizada, reinventar o modelo de trabalho. Por outro lado, tenho consciência que o nosso caminho é um pouquinho mais lento, justamente pelo fato de tentarmos ir na contramão do modus operandi atual. Eu já acompanhava as discussões sobre o tema, mas não sabia como seria na prática.
Quando a 4 Day Week Global veio com essa proposta do piloto no Brasil, pensei: “a gente tem que participar”. Mas antes, eu trouxe isso para o time e quem tomou a decisão foram eles. Isso porque, de modo geral, [o expediente reduzido] iria impactar mais a vida de todo mundo do que a minha, como founder, em termos de agenda. Desde o momento em que compartilhei essa ideia com o time, trocamos muito sobre o assunto. Analisamos os pontos positivos e negativos, como seria, como não seria. E aí, decidimos participar, coletivamente.
RF: Quais foram os aspectos levados em conta por vocês, na análise para participar do piloto?
SC: Poderíamos tentar fazer isso sozinhos e sei de empresas no Brasil que fizeram isso por conta própria. Mas em primeiro lugar, pensamos no fato de que isso é muito maior do que só o aspecto da saúde mental, que para onde a maioria das conversas estão indo: é algo sobre uma nova forma de gestão de pessoas.
Há também o aspecto de que, ao participar oficialmente, reforçamos o caldo dessas estatísticas sobre a abordagem. Se a gente quer gerar mudanças, fazer advocacy, mostrar o que funcionou ou não em diferentes setores, é importante ter essa análise. Fazer isso em grupo, e ter acesso a uma troca muito rica, tanto do ponto de vista nacional quanto global, foi outro fator. Podemos acionar diversas empresas do nosso setor, ou de áreas diferentes, mas que estão com esse mesmo olhar sobre uma nova forma de trabalho. Às vezes, ter a perspectiva de um mercado que não tem nada a ver com o meu pode gerar insights que serão relevantes para nós.
Também tivemos algumas decisões, inclusive na questão de investimento, que eu trouxe para o time, considerando que existem outras prioridades, e estamos direcionando para o piloto global [a Thanks for Sharing está pagando R$ 7mil para ter acesso à mentoria]. Estar de acordo sobre isso com o time também foi importante para gerar um senso de responsabilidade em relação às ações que vamos fazer em conjunto.
RF: Quais são desafios que você antecipa enfrentar com a semana mais curta de trabalho?
SC: Somos treinados no modelo de trabalho [de cinco dias por semana], nessa forma de pensar há mais de 100 anos. Por isso, é complexo antecipar e chegar nessas respostas.
Porém, como ainda não temos um modelo fechado, pode ser que façamos meio período em um dia, e novamente no outro. Pode ser que seja um revezamento. Pode ser que para uma pessoa [o dia de folga] seja na terça e para outra, seja na sexta. Nós vamos, ao longo dessa preparação, entender esses impactos. Mas existem possibilidades de modelos que possibilitam que, para o meu cliente, eu continue operacional cinco dias por semana. É preciso dialogar com estes temas relacionados ao piloto, pois afinal, os clientes não estão participando disso.
RF: E qual é a sua expectativa em relação aos benefícios do piloto?
SC: Tenho a expectativa de seguir na rota de construir uma empresa que faça sentido para a carreira do nosso time e para os nossos clientes. Quero provar para o mercado que é possível crescer e ser rentável sem um modelo de gestão obscuro, fora de moda e que não leva em conta o diálogo e o posicionamento da força de trabalho – que é quem, no fim, faz as empresas acontecerem.
Espero também que [a semana de quatro dias] gere mais produtividade. Juntar as distrações de 20 minutos aqui, 40 minutos ali e ganhar um dia inteiro, muito mais produtivo, de folga. Já somos bem produtivos porque temos uma metodologia, somos muito processuais, usamos muito a tecnologia a nosso favor, fazemos muito com pouco. Acho que aplicar esse processo de forma conjunta, com uma mentalidade que ninguém sabe o que é, porque ninguém nunca fez, é algo muito legal.
Pensando em cultura, não é sobre um processo top down, e sim algo em que todos vão atuar e que vai também gerar dúvidas para todos. Estamos entrando num túnel desconhecido, e a única certeza é que a gente vai sair lá do outro lado de um jeito diferente.
RF: Uma semana de quatro dias vai funcionar para uma pessoa fundadora de startup?
SC: Para mim já funciona, pois tenho minhas terças-feiras livres, e o piloto vai replicar isso para todo mundo.
Acho que as pessoas se confundem um pouco quando falamos desse modelo, pois entendem [a semana abreviada de trabalho] como um fim de semana prolongado, a percepção vem de um lugar muito da diversão. Parece que não há engajamento nesse processo, mas a realidade é que, para fazer [o expediente] funcionar em quatro dias, preciso estar muito mais focada nos outros dias.
Por exemplo, como eu vou passar a bola para alguém, se as informações que eu preciso passar não estão documentadas? A coisa fica muito mais organizada, porque você precisa se certificar de que não será acionado na sua folga. Neste ponto, entram a comunicação assíncrona, os links, os materiais todos disponíveis para que quem não está de folga possa cumprir seu trabalho. É uma questão de eficiência, mas no imaginário das pessoas isso vai para o lugar da irresponsabilidade, e é muito pelo contrário.
RF: Como essa visão de semana mais curta de trabalho se conecta com o futuro do expediente?
SC: Penso que no futuro, vamos caminhar para um lugar de empresas mais humanizadas. Com uma força de trabalho, tendo trabalhos justos, com equidade, sem um expediente exploratório e sem assédio. Isso está acontecendo, ainda que devagar.
Experimentos como este servem para que a gente reflita sobre porque estamos fazendo esse modelo de cinco dias desde os tempos de Henry Ford. É sério que ninguém vai testar um modelo novo, mesmo com um monte de tecnologias que temos à nossa disposição, inteligência artificial, trabalho remoto?
Temos todos os recursos para fazer um novo tipo de expediente acontecer. A diferença é que é preciso se organizar, ter um fluxo mental operacional e digital que é diferente do modo de trabalho atual, com cinco dias de expediente. Nesse movimento, vamos expor algumas feridas não-tratadas, porque afinal, fizemos sempre assim – mas não deveríamos.