Cada vez mais, os temas saúde mental e trabalho se entrelaçam e a discussão ganha força no Brasil. O aumento nos casos de síndrome de burnout, ligada ao estresse laboral, é notório entre as pessoas que tem um trabalho no país. O Brasil está em segundo lugar mundialmente, após o Japão, em indivíduos afetados por exaustão mental profissional, segundo a International Stress Management Association. O país também ocupa a quinta posição em incidência de depressão e lidera em taxas de ansiedade, conforme aponta a Organização Mundial de Saúde (OMS), que desde o ano passado define o burnout como doença ocupacional crônica. O sofrimento das pessoas no trabalho é crescente, e um horizonte se desenha com riscos de prejuízos futuros, seja em termos de produtividade reduzida, ou de processos movidos por funcionários que trabalham até a exaustão.
Uma pesquisa sobre saúde mental no trabalho conduzida pela plataforma de conhecimento sobre gestão de pessoas Think Work com apoio da Pipo Saúde, ilustra a situação atual. Enquanto 21% dos 640 participantes afirmaram se sentir bem na maioria dos dias (na pesquisa de 2022, o percentual era 36%), 42% disseram se sentir mal em alguma medida: às vezes, na maioria dos dias, ou todos os dias. Crises emocionais foram vividas por 44% das pessoas nos últimos três meses, e os respondentes relataram ter mais dores, mais estresse, mais irritação e ansiedade no último ano.
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Diante deste cenário, os dados sugerem que a ação das organizações ainda é incipiente. Enquanto 36% dos respondentes disseram ter acesso a programas de apoio para a saúde mental/emocional, 46% disseram não ter acesso a um programa do tipo, e 18% não sabe se tem direito a apoio. Entre as companhias que oferecem este tipo de serviço, há também um problema de adesão: a vasta maioria (76%) diz que nunca participou de programas de saúde mental, o que sugere que há um tabu entre as pessoas sobre a questão.
Para pensar sobre o tema e o que pode reverter o atual cenário de adoecimento mental no trabalho, a Rumo Futuro falou com Tatiana Sendin, CEO e fundadora da Think Work, sobre os achados da pesquisa e possíveis mudanças no horizonte. Confirma alguns dos melhores momentos da conversa:
Rumo Futuro: O que podemos inferir sobre o sofrimento das pessoas no trabalho com base nos dados da pesquisa?
Tatiana Sendin: Notamos que houve uma melhora em certos fatores de saúde física e psicológica em relação ao ano anterior: por exemplo, 51% disseram que os relacionamentos amorosos, familiares e de amizade melhoraram, e o consumo de álcool, cigarro e drogas também diminuiu. Por outro lado, o nível de estresse, cansaço e irritação piorou para 39% das pessoas.
Seria correto afirmar que as pessoas estão sofrendo mais no trabalho, mas não dá para culparmos somente o trabalho como principal causa, apesar de ele ter uma contribuição importante para este sofrimento. Existem vários problemas pessoais no meio de tudo isso. A tecnologia também aumenta nosso desgaste físico e mental, e está muito atrelada ao trabalho. Além disso, aumentamos nosso tempo de tela em atividades que não tem a ver com o trabalho, como ler no Kindle. A tecnologia é parte significativa da nossa vida e de certa forma, isso também contribui para essa piora da saúde mental.
Se entrarmos mais na questão da tecnologia, chegamos nas redes sociais. Principalmente entre os jovens, há a necessidade de estar sempre bem na vida, sempre feliz. Se você não compartilha alguma coisa, bate um certo desespero de que você vai ser esquecido. Se seu post tem poucas curtidas, você fica com uma sensação de que ninguém gosta de você, ou que você não está chamando a atenção o suficiente. No LinkedIn, por exemplo, acabamos unindo rede social e trabalho e isso toma proporções ainda maiores: há uma pressão de estar sempre postando, sempre em destaque. É quase como se hoje o número de seguidores valesse mais do que o seu currículo, a sua experiência. Podemos dizer que o estresse é só culpa do trabalho? Sim e não. Talvez também tenha a ver com a forma que enxergamos o trabalho.
RF: O que você enxerga como as principais tendências em termos de benefícios ou políticas que garantam a saúde mental das pessoas no futuro, e quais serão os principais desafios para as empresas chegarem lá?
TS: Hoje o mercado de RH ainda funciona muito com benchmarks, mas deveriam investir mais [em saúde mental] com base no que os funcionários pedem. Em vez de focar na doença, também deveriam focar no bem-estar das pessoas: um vale cultural, atividade física, um dia de folga, seja para o aniversário do filho, da própria pessoa, ou mesmo uma folga no mês. Em Portugal, depois que as pessoas completam seis meses em um trabalho, elas têm direito a dois dias de folga a cada mês – imagina como isso influencia o bem-estar de um colaborador. Iniciativas assim ajudam a quebrar esse ritmo de exaustão em que as pessoas estão, e que tem pautado o trabalho hoje em dia.
A melhor forma de garantir a saúde mental das pessoas no trabalho será através de benefícios que ajudem as pessoas a descansarem, se desconectarem [do expediente]. Mas isso requer uma mudança cultural. Para que essa mudança aconteça, precisamos falar mais sobre saúde mental, bem-estar, equilíbrio emocional e acho que isso está começando a acontecer. A pandemia deu início a esta discussão, mas o debate vinha muito ligado ao “fator pandemia” – agora, a gente se aproxima mais de um ambiente de realidade em que a saúde mental não está mais ligada à Covid. Quanto mais esse tema for discutido, mais as empresas também vão entender o que os funcionários querem, e que poderia ajudar. O papel do líder, como essa pessoa age e se posiciona sobre o tema, também é muito importante.
Quando discutimos saúde mental, também é essencial falar de autoconhecimento, porque algo que é estressor para mim, pode não ser para o outro. Então, se a empresa também parte da mesma ideia de que um único fator é estressor para todo mundo, [as estratégias de saúde mental] não vão funcionar. É preciso que as pessoas se conheçam, e as empresas precisam promover mais essa discussão. Não é de hoje que as organizações oferecem auxílio psicológico. Se as pessoas não usam, empresas precisam entender mais sobre o que funciona. A partir deste lugar de conversa sobre as práticas e do autoconhecimento, talvez a gente chegue nessa revisão cultural e de mentalidade que, no fim, deve apontar a solução de tudo.