De um solavanco, a pandemia redistribuiu as peças no tabuleiro da vida – e do mercado. Empresas mais ágeis e capazes de enxergar adiante, tal qual um bom enxadrista, vislumbraram a oportunidade de fortalecer suas posições com movimentos certeiros. No varejo, isso se traduz na nova onda de aquisições por parte de grandes jogadoras do setor. Notícias sobre movimentações de grupos como Magalu e Via (antiga Via Varejo) evidenciam a busca pela ampliação de suas frentes de atuação e pelo fortalecimento de suas estratégias de ataque por meio da digitalização. Para crescer com agilidade, esses players têm ido às compras atrás daquilo que lhes falta nas áreas de tecnologia, logística, finanças e conteúdo.
“Essas empresas querem se tornar ecossistemas no seu ramo”, diz Fernando Gambôa, sócio-líder de Consumo e Varejo da KPMG no Brasil e América do Sul. “Todo mundo quer ser Alibaba ou Amazon.” Segundo ele, a pandemia criou a tempestade perfeita para que a digitalização, que já vinha caminhando, ocorresse de vez. Até porque não havia saída. Se, por um lado, as lojas físicas sofreram perdas com as restrições pela Covid-19, as compras online foram impulsionadas durante a crise sanitária. Nesse cenário, além de alavancar as próprias vendas, as plataformas das grandes empresas se tornam atrativas para vendedores sem a mesma estrutura para e-commerce. “Quem conseguiu fazer um planejamento estratégico está coletando agora”, diz Gambôa.
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Uma pesquisa da KPMG com 18 mil consumidores de 16 países mostrou que, no Brasil, 81% dos entrevistados estão atualmente comprando mais online; ao mesmo tempo, as visitas às lojas de varejo tradicionais caíram 70%. Além disso, 56% dos participantes estão usando mais e-commerce de varejistas tradicionais e 53% acessam plataformas ou mercados online. São novos hábitos que devem continuar mesmo depois da pandemia: 94% dizem que pretendem mantê-los. Acompanhar esse movimento não é mais uma questão de investir no online, mas sim de transformar o negócio. “Até hoje, o digital era mais um canal”, diz Gambôa. “O que está havendo é uma inversão de modelo. O digital vai se tornar o canal principal, tendo o físico como suporte.”
“O que está havendo é uma inversão de modelo. O digital vai se tornar o canal principal, tendo o físico como suporte.” - Fernando Gambôa, sócio-líder de Consumo e Varejo da KPMG no Brasil e América do Sul
Uma grande rede de lojas pode se tornar uma grande estrutura de minicentros de distribuição para o e-commerce. Como no caso da Via, que tem 1.050 lojas das marcas Casas Bahia e Ponto (ex-Pontofrio) espalhadas pelo país, somando mais 1 milhão de metros quadrados de área de estocagem — fora outro milhão de metros quadrados de 27 centros de distribuição. Hoje mais de 60% das entregas do online são feitas a partir das lojas. E foi para ajudar a levar os produtos desses muitos pontos até a casa do cliente que, em junho de 2020, a empresa adquiriu a startup curitibana Asap Log. “Ela vem nos ajudar a fazer essa gestão de logística de última milha, o que é muito mais barato e rápido para o consumidor”, diz Hélisson Lemos, CDO da Via. Em menos de um ano, a Asap Log passou a atender mais de 50% das entregas feitas pelas Via, com 300 mil entregadores cadastrados.
“O objetivo das aquisições é gerar impacto rápido”, afirma Lemos. Segundo ele, a prioridade da companhia hoje é acelerar o marketplace. E outra aquisição, a da desenvolvedora de softwares I9XP, vem ao encontro desse foco. Os 150 profissionais de tecnologia da empresa adquirida em novembro de 2020 logo se envolveram no desenvolvimento de uma nova plataforma para lojistas. Entregue em fevereiro de 2021, ela viu subir o número de vendedores cadastrados em um mês de 16 mil para 26 mil.
Em outra frente, a Via adquiriu o banQi, fintech americana que, conectada à base de 97 milhões de clientes da companhia, em menos de um ano chegou a 2 milhões de contas ativas. “O próximo passo é ter soluções financeiras, incluindo crédito direto.” Em abril, foi a vez de comprar a Celer, que provê soluções de meios de pagamento.
Outra movimentação foi a entrada, como sócio minoritário, no hub de inovação aberta Distrito. “A gente investe em projetos de aceleração e incubação de startups e em abril lançou um fundo de venture capture com orçamento de R$ 200 milhões em cinco anos.” Esses investimentos abrem oportunidades de novos negócios, até fora do varejo. “Uma das razões de ter renomeado a companhia de Via Varejo para Via passou por isso”, diz Lemos. “A gente sonha grande. Abre-se a possibilidade de atuar cada vez mais em logitech, fintech e martech, além de retail tech, que é o core business da companhia. Uma aspiração é ter um haras de unicórnios no ecossistema da Via.”
No Magalu, as aquisições também miram a formação de um ecossistema. “Muitas das soluções são feitas em casa, mas, quando vemos no mercado uma oportunidade de acelerar um processo com uma aquisição, aproveitamos”, diz Eduardo Galanternick, vice-presidente de negócios da empresa. “O Magalu quer ser o sistema operacional do varejo brasileiro, digitalizando, por exemplo, os pequenos varejistas do país. Para isso, precisa de uma infraestrutura logística, de distribuição, financeira e tecnológica.”
O movimento deve continuar com a incorporação de mais vendedores, mais categorias, mais produtos e mais serviços. “Nossa inspiração vem da China, onde plataformas progressivamente digitalizam a economia do empreendedorismo e integram uma miríade de produtos e serviços em superapps presentes nos smartphones de muitos milhões de consumidores.”
Entre as novas categorias em que o Magalu investe no momento, a prioridade são os produtos de mercado, que têm alta recorrência de compra e já representam 40% de todos os itens vendidos. “Com a aquisição da VIP Commerce, passaremos a combinar os estoques de produtos de mercado do Magalu com o sortimento de supermercados locais.” Outro destaque é o food delivery. “Sete meses após a aquisição da AiQFome, o Magalu já é uma das maiores plataformas do setor no país”, diz Galanternick. Adquiridas em abril, a Tonolucro e a GrandChef vêm reforçar esse segmento.
Outra frente de aquisições está ligada à publicidade digital, com a compra, em abril, das plataformas Steal the Look e o Jovem Nerd. “Em breve, todo esse conteúdo será integrado ao superapp, contribuindo para aumentar a frequência, o tempo de uso do aplicativo e a parcela de tráfego orgânico.” Também em abril, o site de tecnologia Canaltech, comprado em agosto do ano passado, superou 25 milhões de usuários únicos, contribuindo para o desempenho do Magalu Ads.
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Para chegar aos resultados pretendidos – e rápido –, a integração das novas empresas à companhia é uma preocupação que já começa na prospecção. “Vemos se elas têm uma cultura parecida com a nossa, se os funcionários se encaixam na maneira de trabalhar do Magalu”, diz Galanternick. “Negociamos com os antigos donos para que eles continuem na operação — uma regra em todas as aquisições. Queremos que eles tragam sua expertise.” Uma vez concluída a aquisição, o Magalu assume a parte administrativa para que a empresa comprada foque no produto.” Segundo o VP de negócios, o processo já está afinado. “Temos cases importantes de integração. Um deles é a LogBee, que fazia entregas apenas na cidade de São Paulo e agora está em mais de 500 municípios. Outra é a Netshoes, que se tornou o maior varejista esportivo do país.”
Na comparação com 2020, as vendas nos canais digitais do Magalu dobraram em janeiro e fevereiro e aceleraram ainda mais em março, fechando o trimestre com aumento de 114%. As mais de 1.300 lojas físicas, apesar de terem ficado temporariamente fechadas, com perdas estimadas em R$ 750 milhões nos três primeiros meses do ano, tiveram alta de 4% em vendas em relação ao mesmo trimestre do ano passado. “Em mais um período desafiador, a empresa superou o mercado e atingiu o maior market share da história”, diz Galanternick. “Nada disso ocorreu por acaso. É tudo consequência de um modelo no qual digital e físico se integram, se complementam e se potencializam a cada operação.”
Para Alberto Serrentino, consultor e fundador da Varese Retail, as aquisições atuais estão mais cirúrgicas. “As empresas têm dificuldade de dominar tudo sozinhas, aprender tudo sozinhas, escalar tudo sozinhas”, diz. “Muitas vezes é estrategicamente interessante identificar ativos – podem ser startups ou empresas estabelecidas – que já tenham a capacidade comprovada.” O gargalo com frequência está na tecnologia. “Hoje é muito difícil formar e desenvolver times para trabalhar nessa área. O mercado está disputado e inflacionado.”
Além da demanda por transformação digital, outros fatores impulsionam as movimentações. Como na compra da Hering pelo grupo Soma, dono de marcas como Animale e Farm. “É uma aquisição dentro do setor que amplia mercado, entrando em uma faixa mais massificada. Muda o posicionamento do grupo, que até então só operava com marcas premium”, diz Alberto. Segundo o consultor, nesse caso a aceleração da digitalização deve acontecer na empresa comprada. “A maturidade digital do Soma é maior.” Ao mesmo tempo, o comprador recebe uma empresa com alto grau de capilaridade e distribuição no interior do Brasil.
Outro caso de diversificação de portfólio dentro do próprio varejo foi a compra, pelas Lojas Americanas, do grupo Uni.co. Dono das marcas de “fun design” Puket, Imaginarium, MinD e Lovebrands, o Uni.co conta com uma rede de mais de 440 franquias pelo Brasil, além de 2.800 clientes multimarcas e canais digitais.
Em comunicado divulgado em abril deste ano, as Americanas afirmaram que a operação “é mais um movimento do Universo Americanas na expansão de sua plataforma de varejo especializado em franquias e marcas próprias”. “Ela entra em categorias em que não atua, e com lojas especializadas, de franquia”, explica Serrentino. “É uma expansão que vai trazer novas competências, novas bases de clientes e um modelo operacional que pode ser replicado para outros negócios.”
Também em abril, houve o anúncio ao mercado de que as Lojas Americanas e a B2W (que opera a Americanas.com, o Submarino e o Shoptime) iriam combinar suas operações para acelerar a evolução para uma plataforma única e mais robusta. A nova companhia, somando mais de 1.700 lojas físicas e comércio digital – e toda a gigantesca estrutura por trás disso –, deve manter o nome de americanas (com o “a” minúsculo).
Jogadas de grandes mestres no agitado tabuleiro do varejo nacional.
Reportagem publicada na edição 87, lançada em maio de 2021.
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