Vanusia Nogueira traçou um plano claro para sua vida: desacelerar aos 60 anos e aproveitar o que ela considera o melhor da idade. No seu caso, viagens a lazer, dias sem compromissos e projetos compromissados apenas com o desejo de fazer, como uma consultoria ou evento escolhido a dedo. Justamente o contrário do que fará a partir do dia 2 de maio, quando, efetivamente, estará a postos na 222 Grays Inn Road, em Londres, para o seu primeiro dia de trabalho como diretora-executiva da OIC (Organização Internacional do Café). Criada em 1963, a entidade global representa 98% de todo o grão produzido no mundo, atualmente estimado em 170 milhões de sacas por ano.
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Até aqui, o caminho que a levou ao topo não foi uma linha reta, na visão da primeira mulher do mundo a comandar a OIC. Nogueira foi se moldando e adaptando seus desejos. E conta por quê. “Estou indo com o coração na mão, porque se a minha mãe dissesse não, eu teria desistido da OIC”, afirma.
As bênçãos da mãe não têm traços de submissão ou fraqueza, mas uma característica da líder que nos últimos 13 anos esteve à frente da BSCA (Associação Brasileira de Cafés Especiais): é preciso estar presente para fazer acontecer. A BSCA tem 233 associados, a maior parte produtores certificados, além de empresas , cooperativas e instituições. No caso de Nogueira, ela tem um pai enfermo e a decisão pela OIC não foi fácil. “Minha mãe falou: é um reconhecimento que ninguém tem, é o ápice de uma carreira de dedicação minha filha. Vá”. Então, lá vai ela.
Mãe tem sempre razão
Ser diretora-executiva da OIC é um cargo do mundo diplomático, indicado pelo setor e balizado pelo governo brasileiro. De sua sala em Brasília, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, não teve dúvidas sobre a indicação de Nogueira e o processo de aprovação de seu nome para ser apresentado à OIC – já corre como história no setor –, não demorou nem meia hora. A OIC reúne 42 países exportadores de café e os importadores do grão, sendo a União Europeia com seus 27 países, mais Japão, Noruega, Suíça, Tunísia, Reino Unido e Rússia. Esse bloco de países consome 67% do café cultivado no mundo.
No início do processo, em fevereiro de 2021, o nome de Nogueira foi lembrado pelo produtor de café conilon, Bento Venturim, de Nova Venécia (ES), durante uma reunião do CNC (Conselho Nacional do Café). Parte da agenda era decidir se o Brasil indicaria alguém, reunião da qual ela participava.
A lembrança de seu nome traz uma história de determinação. Anos atrás, ela foi procurada por Venturim, que também é presidente do Sicoob (Sistema de Cooperativas Financeiras do Brasil) no Espírito Santo, para uma demanda. Ele queria que o café conilon (ou canephora), o grão mais produzido por seu estado, também entrasse nas políticas da BSCA de promoção das bebidas especiais.
O conilon sempre foi uma espécie de patinho feio da cafeicultura. De espécies diferentes, arábica e conilon se diferenciam em aroma e sabor, e o arábica, com baixo nível de cafeína e mais açúcares, historicamente tem a preferência mundial como café especial ou gourmet. Mas os produtores de conilon, de grãos mais amargos e com mais cafeína, também queriam disputar o mercado dos especiais.
Nogueira comprou a “briga” e hoje o Brasil é o único país no mundo que tem, além do arábica, trabalho com grãos premium conilon. Atualmente, são vários os concursos de qualidade da espécie. Mas, voltando à reunião do CNC, alguns dias depois de Venturim se manifestar, Nogueira foi convocada pelo grupo e informada de que a indicação “seria pra valer”.
Um legado para o café
Além dos concursos do conilon, foram inúmeros os projetos tocados por Nogueira na BSCA para promover os cafés especiais do Brasil. No entanto, para ela, quando pensa em seu legado o que conta não são os feitos, mas o movimento criado ao longo dos anos para fazer do pequeno produtor um empreendedor reconhecido.
“No Brasil, construímos um mercado em que a BSCA é vista como uma entidade identificada com qualidade e sustentabilidade, não importa o tamanho da propriedade”, afirma Nogueira. “Fora do país, além da qualidade, somos vistos como o caminho para a sustentabilidade de muitos pequenos produtores. Isso conta muito, porque são inúmeras as histórias de superação”.
A identificação com a agricultura familiar foi uma virada de rumo na carreira. Até os 40 anos, a vida de Nogueira era completamente diferente do que viria a ser hoje. Especialista em tecnologias da informação, estatística, administração e marketing, ela passou a primeira etapa da vida profissional como sócia da divisão de consultoria da norte-americana Pricewaterhouse Coopers, vendida em 2002 para a IBM. Era uma típica executiva de grandes questões cosmopolitas.
Por 15 anos ela viveu entre Brasil, EUA, Colômbia, Chile, Argentina, além de passar longas temporadas em países como Alemanha e Espanha. A saída da PWC, com a venda à IBM, foi o pontapé para investir primeiro em um período sabático e, em seguida, em um sonho de criança: produzir flores no interior de Minas Gerais, em Três Pontas, onde está a fazenda herdada dos avós, um local de férias de seu tempo de criança.
Junto com a mãe, ela chegou a montar um negócio na propriedade, que hoje tem café e eucalipto tocados pelo tio. “Na minha cabeça eu já exportava minhas rosas, mesmo antes de produzir, e fui procurar um empresário que era amigo do meu pai”, diz ela. Com um plano de negócios embaixo do braço, Nogueira queria vender para o mundo as flores cultivadas em Minas.
A ideia era exportar rosas utilizando os serviços do Porto Seco de Varginha, município no sul mineiro. Ao procurar pelo empresário Cléber Marques de Paiva, presidente do porto, escutou o seguinte veredicto: “Não tenho nada a te oferecer. Não tenho caminhão refrigerado, não tenho avião, mas o café precisa de você”. E mais, disse Paiva: “Café na região todo mundo conhece e sabe produzir, o que precisamos é da sua experiência de mundo.”
Foi assim que Nogueira deixou as flores e mergulhou no café, primeiro como consultora e depois como diretora-executiva da BSCA. Mas ela também provou que o sonho das flores poderia ter ido em frente. Com a parceria da mãe durante anos, ela chegou a exportar rosas brancas para o Japão.
A passagem definitiva para o café, aos poucos trouxe de volta uma visão costurada desde a infância e que foi transformadora. Nogueira é neta e filha de produtores do grão, e deixou a vida na roça para estudar no Rio de Janeiro. “Nessa época, café era um negócio muito chato. Não tinha preço, chovia e a estrada parava, e eu pensava: não quero isso na vida”, relembra. “Depois, quando fiquei de frente com o café, minha percepção do mundo do grão era de que aquilo deveria ser um nicho de mercado.”
Foi essa aposta que transformou a BSCA em referência para os trabalhos comunitários com os produtores de cafés especiais, torrefadoras, cafeterias e outros atores, como armazéns, corretoras, fabricantes de equipamentos e de implementos agrícolas. A educação da cadeia – um trabalho sem fim –, por meio de cursos, publicações e eventos técnicos, é o que deu e continua a dar relevância para as políticas traçadas pela entidade.
Mas foi o Selo BSCA, uma certificação do monitoramento da qualidade dos cafés especiais, que colocou esse movimento brasileiro no foco do mundo. Não à toa, produtores do país constantemente levam prêmios globais nas feiras da Specialty Coffee Association, nos Estados Unidos e Europa; na Specialty Coffee Association of Japan, na Café Show da Coréia do Sul, e vários outros eventos.
Sobre o futuro da BSCA, Nogueira diz que vai continuar observando de longe, já que não poderá mais ter ligações com quaisquer organismos enquanto ocupar a cadeira da OIC. Ela estará à frente da entidade pelos próximos cinco anos, com direito a se reeleger para mais cinco. Sobre o futuro ela é taxativa: “Não quero fazer planos, mas talvez, depois da OIC, acho que vou pensar nessa minha ideia de desacelerar um pouco na vida.”