Em 24 de fevereiro, nas primeiras horas dos ataques da Rússia à Ucrânia, um projétil russo atingiu um navio no Mar Negro, chamado Yasa Jupiter. O navio era fretado pela Cargill, uma das maiores tradings de grãos do mundo. Desde então, canhões russos têm atingido a cidade portuária de Yuzhny, a leste de Odessa. Com o apoio do governo ucraniano, uma joint venture da Cargill opera o porto – a companhia afirma que trabalha para levar trigo, milho e outras culturas alimentares a partir da área sitiada até as mãos de pessoas famintas.
Apesar dos ataques, a Cargill diz não ter planos de abandonar as zonas de conflito da Ucrânia. Tampouco sairá da Rússia. Alimentos e remédios não estão incluídos nas sanções, de acordo com o Departamento do Tesouro dos EUA. “A comida é um direito humano básico e nunca deve ser usada como arma”, afirma o site da companhia. “Esta região desempenha um papel significativo em nosso sistema alimentar global e é uma fonte crítica de ingredientes-chave para produtos básicos como pão, fórmula infantil e cereais”.
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Centenas de empresas de todo o mundo deixaram a Rússia, esperando que o isolamento econômico levasse o presidente Vladimir Putin a reconsiderar o ataque contra a Ucrânia. Não foi o caso da Cargill. A empresa de 157 anos sediada em Minnesota é a maior dos Estados Unidos com capital fechado e registrou receita de US$ 134 bilhões (R$ 624,4 bilhões na cotação atual) em 2021. A Cargill tem um longo relacionamento com a Rússia – fazia negócios na antiga União Soviética desde 1964.
A Cargill é controlada por um grupo de herdeiros bilionários, cuja fortuna conjunta é estimada em US$ 42 bilhões (R$ 195,7 bilhões). Eles não precisam responder a acionistas, que poderiam criticar a companhia argumentando que as colheitas da Cargill alimentam a máquina de guerra russa.
A Cargill disse que está reduzindo as operações na Rússia, um mercado que representa menos de 5% dos negócios internacionais da companhia. Especialistas em comércio dizem que a decisão da Cargill, de permanecer no país, também é uma tentativa de preservar sua participação de mercado em relação aos concorrentes domésticos.
O maior risco para a Cargill e para suas rivais americanas ADM e Bunge é que uma saída da Rússia abra o mercado para nacionalização, segundo o analista da S&P Chris Johnson. Isso poderia deixar as empresas sediadas no exterior totalmente de fora de um mercado de 144 milhões de pessoas.
Na Rússia, a Cargill continua produzindo trigo, ração animal, xaropes, amidos e óleos vegetais, enquanto esmaga oleaginosas e comercializa grãos e outras commodities. A Cargill também fabrica ingredientes alimentícios chamados “texturizadores” na Rússia.
A Cargill está muito mais exposta a perdas potenciais com o conflito na Ucrânia. A empresa, que anunciou no início deste mês que doaria US$ 25 milhões – uma fração da receita anual – para o esforço de socorro ucraniano, parece querer desempenhar o papel de um diplomata corporativo dançando entre os dois países em guerra, diz Paul M. Vaaler, professor nas faculdades de administração e direito da Universidade de Minnesota.
“A Cargill está com investimentos fixos e irrecuperáveis substanciais em ambos os países”, disse Vaaler. “Quais empresas têm ativos substanciais nos dois países? Não muitas. Eles estão tentando administrar sua posição diplomática com os dois governos.”
Juntos, a Rússia e a Ucrânia produzem quase um terço do trigo exportado do mundo. Milhões de pessoas, especialmente no Oriente Médio e Norte da África, correm o risco de passar fome este ano devido à escassez de exportações causada pela guerra.
“Há grãos em Odessa que normalmente teriam sido enviados, mas não foram exportados”, diz David Laborde Debucquet, pesquisador sênior do International Food Policy Research Institute. Cerca de 20 milhões de toneladas de trigo “da Ucrânia, que normalmente deveriam chegar ao mercado, podem não chegar. Isso criará um vácuo [e teremos] opções muito limitadas sobre como vamos preenchê-lo.”
Está na lembrança dos ucranianos sua própria fome, chamada Holodomor, que matou milhões em entre 1932 e 1933. Eles dizem que os soviéticos orquestraram as mortes generalizadas, racionando a quantidade de alimentos que permaneceram na Ucrânia – enquanto, ao mesmo tempo, exportavam a produção para outros países.
A Cargill relata que nenhum de seus funcionários foi prejudicado pelos ataques russos, e que o Yasa Jupiter permaneceu em condições de navegar após os ataques de 24 de fevereiro (sua tripulação permaneceu segura). Anualmente, cerca de 5 milhões de toneladas de grãos e outras commodities passam por Yuzhny e, embora a Cargill sempre tenha sido o maior cliente do porto, outras empresas também embarcam. Atualmente, existem quatro navios atracados no porto, de acordo com o Vessel Tracker.
A região desempenha um papel significativo na produção de ingredientes-chave para produtos básicos como pão, fórmula infantil e cereais para famílias em todo o mundo. A Cargill disse que está focada não em um país, mas no sistema alimentar mundial.