“Você fará vinhos piores!” Essa foi a resposta de muitas pessoas respeitadas no mundo do vinho na Califórnia, quando o enólogo e diretor de viticultura da Hamel Family Wines, John Hamel, perguntou a colegas se era possível cultivar no sistema de sequeiro (sem sistema de irrigação na lavoura) no condado de Sonoma, na Califórnia. O que a maioria quis alertar é que ele faria vinhos com qualidade inferior porque os cachos da fruta desidratariam.
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Hamel já era muito atencioso e consciente com a irrigação que fazia, só regando as vinhas quando precisavam. Portanto, após entrevistar profissionais mais experientes, o consenso foi que ele estava fazendo tudo certo na produção de vinhos de alta qualidade. E sim, ele ficou feliz com os resultados dos seus vinhedos.
Mas acreditava que poderia ter uma bebida ainda melhor se compreendesse profundamente as terras onde cultivava suas vinhas. Hamel estava determinado a procurar alguém que produzisse vinhos de excelente qualidade com agricultura de sequeiro em sua região, onde a precipitação no verão muitas vezes é baixíssima.
Foi então que entrou em contato com uma vinícola de prestígio em Napa Valley, chamada Dominus, e o diretor técnico ficou feliz em compartilhar informações sobre seu grande sucesso com o plantio de sequeiro. O fato é que seria muito trabalhoso para Hamel, pois é preciso estar sempre muito “presente” e atento ao que está acontecendo nos vinhedos para tentar qualquer quantidade de área de sequeiro. Mas ele estava decidido a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para dar às suas vinhas a oportunidade de se expressarem plenamente nesse sistema.
Início dos vinhos da Família Hamel
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Em 2006, enquanto Hamel frequentava a universidade, seus pais compraram uma propriedade em Sonoma, com um pequeno vinhedo, para escapar do verão em sua casa principal, em São Francisco. Eles começaram a fazer um pouco de vinho como um hobby, enquanto o filho perseguia sua paixão no cenário lento da comida orgânica durante o curso na faculdade.
Hamel trabalhou em fazendas orgânicas que o levaram a uma pequena operação em Mount Veeder, em Napa, e que abriga impressionantes vinhedos de cabernet sauvignon. Embora ele adorasse o trabalho, precisava encontrar um emprego que pagasse as contas, já que muitas dessas pequenas propriedades rurais ofereciam apenas apenas hospedagem e alimentação como troca de mão de obra. Hamel foi procurar outro serviço e acabou contratado por uma empresa de RP (relações públicas) em São Francisco, focada em vinhos em um projeto sofisticado em Napa.
Ele aprendeu muito nessa companhia, mas ansiava por retornar à terra de alguma forma. A certa altura, seu pai decidiu que queria construir um legado familiar que pudesse transmitir, produzindo vinhos ultra-premium. Foi então que comprou outros vinhedos nas montanhas Mayacamas, em Sonoma, e contratou um consultor de vinificação.
Hamel também obteve seu certificado de vinificação na Universidade da Califórnia, em Davis, e se tornou o primeiro funcionário em tempo integral da Hamel Family Wines. Depois de muitos anos se dedicando aos estudos, em todos os assuntos relacionados à vinificação e à viticultura, assumiu oficialmente a vinificação e a gestão das vinhas em 2017. No entanto, a sua abordagem não tem sido encontrar as formas mais fáceis de fazer vinho de alta qualidade, mas sim cumprir sua missão de buscar a perfeição, mesmo sabendo que não vai alcançar durante a sua vida.
Uma paixão pela terra
Quando John se lançou num estudo aprofundado para compreender as suas vinhas, a ideia francesa da palavra terroir no vinho (expressão do lugar) deixou ele frustrado.
A família trouxe especialistas para estudar os solos e fizeram uma análise da composição das várias camadas subterrâneas, mas ninguém conseguiu explicar-lhe o que isso significava para o vinho. Um dia, em 2014, Hamel estava ouvindo um podcast de uma entrevista com Pedro Parra, um chileno especialista no conceito de terroir, foi atrás dele e concluiu um doutorado sobre esse tema pelo Centro de Agricultura de Paris. Segundo ele, foi de Parra que ouviu com “clareza” sobre terroir pela primeira vez. O especialista não somente passava muito tempo dando consultoria na França e no mundo, como também auxiliou os principais produtores de vinho de Sonoma.
A história é que naquele dia do podcast, Hamel pensou que não tinha nada a perder e ligou para Parra. O consultor ficou intrigado com a conversa com Hamel e foi conhecer as vinhas, que disse serem definidas maioritariamente por solos vulcânicos, que leva o nome de basalto.
Então, os dois sentaram para conversar. “Acho que vamos fazer um projeto juntos e vou ouvir os seus conselhos, mesmo que algumas dicas eu vou seguir e outras não”, conta Hamel sobre o início de sua relação com Parra. “Acho que ele viu em Sonoma alguém que estava crescendo e querendo entender as coisas de uma forma mais profunda. Então ele apostou em mim.”
À medida que Parra fazia vários testes nas vinhas, ele também elaborava mapas que dividiam cada talhão de videiras em várias pequenas parcelas, de acordo com múltiplos fatores. No final, cada talhão é diferente do outro, portanto, a gestão e o momento da colheita podem variar entre uma área e outra.
Este conhecimento mais profundo das suas vinhas permitiu a Hamel gerir adequadamente as nuances de cada área e isso ajudou no seu sucesso na agricultura de sequeiro. Em 2017, começou a cultivar no seco 20% dos seus vinhedos; em 2018, até 75% dos vinhedos eram cultivados em sequeiro. Hoje, dependendo da safra, oscilam em torno de 70% ou até mais.
Uma das razões pelas quais Hamel teve tanto sucesso é que esse manejo fez com que as vinhas desenvolvessem raízes extremamente profundas, limitando a água, já que as plantas com raízes superficiais sofrem estresse hídrico sem irrigação em área como Sonoma, que tem praticamente zero chuvas na maioria dos verões.
“As pessoas sempre falam que vinhas mais velhas produzem vinhos melhores porque elas têm um sistema radicular muito desenvolvido e prolífico”, afirma Hamel. Ele elaborou ainda mais, observando que sente um sabor mais acentuado em seus vinhos, que acredita ter sido criado pelas raízes mais profundas.
Um benefício da agricultura de sequeiro tem sido a capacidade de colher uvas muito mais equilibradas. Hamel diz que é uma luta na Califórnia, em geral, alcançar, ao mesmo tempo, a maturação do açúcar e da fenólica em níveis ideais. O açúcar é o que se transforma em álcool e também contribui para o desenvolvimento do sabor. No entanto, em contrapartida, o ponto fenólico, que é o desenvolvimento das cascas e sementes, impactam na estrutura geral da bebida.
Se for subdesenvolvido, os vinhos podem ser muito tânicos e com textura áspera. Isso porque, quando se tenta obter aqueles taninos redondos e sedosos com uvas cabernet sauvignon na ensolarada Califórnia, deixando as uvas por muito mais tempo nas vinhas, o açúcar geralmente aumenta muito, enquanto a acidez diminui.
Sendo assim, é uma prática comum adicionar água ao suco pré-fermentado, para diminuir níveis potenciais de álcool muito altos ou mesmo o risco de uma fermentação paralisada. Outra prática é acidificar antes da fermentação primária, ou mesmo depois.
Contudo, desde que Hamel começou a agricultura de sequeiro, essas uvas estão prontas para serem colhidas mais cedo, pois a maturação fenólica é mais rápida, para que os níveis de açúcar nunca fiquem muito altos e a acidez nunca fique muito baixa, permitindo-lhe evitar a água ou adicionar acidez, pois já estão em equilíbrio. No entanto, o produtor observou que um certo déficit hídrico nas suas vinhas deslocou a energia da planta do crescimento vegetativo (crescimento das folhas) para a maturidade dos frutos.
E considerando que ele ainda conseguiu cultivar a seco na safra de 2021, que registrou uma mínima de chuva histórica com 300 milímetros, enquanto a média é de 700 milímetros, os vinhedos tiveram um desempenho excepcionalmente bom, tanto que essa safra ficou entre as duas melhores colheitas da propriedade. Hamel realmente se diz muito confiante de que a agricultura de sequeiro é a melhor prática para as suas vinhas.
Vinhos biodinâmicos na produção
Hamel cultiva seus vinhedos biodinamicamente há vários anos, com certificação a partir de 2015. Mesmo assim, admitiu que achava estar seguindo as regras sem “compreender totalmente” o que cada etapa significava e temia não estar trabalhando de forma correta. Foi então que procurou por uma mulher conhecida no mundo do vinho biodinâmico, que ficava em Bordeaux, na França, chamada Corinne Comme. Ela explicou porque cada etapa era essencial e trouxe diferentes técnicas mais adaptáveis aos seus vinhedos.
Com o tempo, Hamel percebeu que desde que as práticas biodinâmicas foram estabelecidas no norte da Europa por Rudolf Steiner, eram necessários ajustes de acordo com cada região vinícola na Califórnia, em vez de apenas seguir o que um viticultor faria na Alemanha. Novamente, tudo é sobre encontrar equilíbrio na natureza.
Consequentemente, certos sprays biodinâmicos e naturais são mais apropriados para seus vinhedos em Sonoma e a época de tratamento das plantas também é diferente. Agora, ele começa a investigar o uso de plantas nativas usadas pelos povos indígenas na Califórnia para possíveis tratamentos futuros das vinhas, embora perceba que muitas dessas plantas nativas foram usadas para fins homeopáticos em humanos e nem tanto para o manejo de vinhas. Portanto, pode não resultar em nada. Mas ele está pronto para o desafio de compreender melhor estas plantas nos próximos 10 anos e isso pode se tornar uma camada adicional da sua expressão de terroir, também conhecida como sentido de lugar.
A história da descoberta das vinhas de sequeiro
Em 2015, Hamel passou a lua de mel com sua esposa na França e eles acabaram fazendo um tour muito cobiçado com Anselme Selosse, da casa Champagne, produtor de Jacques Selosse, um lugar que tem seguidores sofisticados e entusiastas de Champagne. Hamel estava orgulhoso do empenho com suas vinhas, que partilhou com Anselme, mas, quando o francês descobriu que ele irrigava, disse: “Poderia muito bem ter um monte de vasos de plantas no campo porque isso é a conexão mais forte que você jamais terá com o terroir de lá”, conta ele.
A princípio, Hamel riu do comentário, pois parecia impossível não irrigar na Califórnia, mas a afirmação o incomodou porque sentiu que Anselme poderia não estar errado. Foi assim que ele começou sua jornada para a agricultura de sequeiro.
Na época, já não havia dúvida de que a vinícola Hamel Family Wines tinha tudo para criar bons vinhos: boa plantação, investimento na criação de um centro de hospedagem e uma instalação de vinificação de última geração com vários tamanhos de tanques de aço inoxidável, barris e círculo de concreto, dando a Hamel todas as oportunidades de encontrar o recipiente ideal para expressar cada parcela de uva colhida. E não faltam vinícolas incríveis em Napa e Sonoma que possuem todos os recursos que permitem a produção de vinhos de alta qualidade. Porém, muitas delas não têm alguém como John Hamel, que em alguns aspectos é como um daqueles excêntricos viticultores franceses que não medem esforços, até o último suspiro, tentando alcançar a perfeição na hora de expressar o terroir.
Mas ele não segue cegamente nenhuma filosofia. Em vez disso, Hamel quer entender como funciona qualquer teoria e, o mais importante, ver os resultados. E está longe de se sentir satisfeito com o que já conquistou e parece que está apenas começando.
E quem sabe, a longo prazo, ele poderá encontrar uma nova maneira de tentar práticas biodinâmicas na Califórnia que sejam ainda mais aplicáveis a esse clima, mas só o tempo poderá dizer. Mas uma coisa é certa: o futuro da Família Hamel Wines é promissor. Os rótulos da vinícola foram recentemente atualizados para refletir o trabalho de Hamel e sua equipe em seus vinhedos “para produzir vinhos que sejam verdadeiramente expressivos do lugar”.
*Catherine Todd é colaboradora da Forbes EUA e escreve sobre vinhos e viagens. É fundadora do blog Dame Wine, e reconhecida entre os 15 blogueiros de vinho mais influentes pela USA Wine Ratings e uma das 10 maiores influenciadoras de vinho no X (ex-Twitter) pela Global Data.