Considerada pela Organização das Nações Unidas uma das 100 pessoas afrodescendentes com menos de 40 anos mais influentes do mundo em 2018, Nina Silva também foi eleita pela Forbes uma das 20 Mulheres Mais Poderosas do Brasil em 2019. O motivo? Ela criou com o sócio um movimento para autonomia de negros e negras em seus negócios.
Voltado para promover o afroempreendedorismo e auxiliar profissionais pretos, o Movimento Black Money fundado por Nina e Alan Soares em 2017 atua em três pilares: educação, comunicação e serviços financeiros. Uma de suas iniciativas é o marketplace do qual participam 850 lojistas negros vendendo online, sem mensalidade, além de sistemas de pagamento, um portal e redes que já atingem mais de 80 mil pessoas por mês com conteúdos de diversas áreas como marketing digital, finanças, inovação e vendas, além de cursos em tecnologia para centenas de bolsistas vindos de contextos periféricos.
Administradora com uma carreira brilhante construída no setor de tecnologia, Nina transformou todas as experiências de racismo que viveu ao longo de sua trajetória em um projeto de empoderamento da comunidade negra e de letramento racial, no qual pessoas brancas devem atuar de maneira ativa. “Em tempos de ESG (environmental, social & governance) o Movimento Black Money tem feito parcerias com grandes empresas como B3, P&G e Makro no processo de enegrecimento de suas cadeias de suprimentos, apoio a afroempreendimentos durante a pandemia e inclusão racial em seus quadros colaborativos por meio do projeto Black Vagas. Um processo que começa na elucidação das desigualdades raciais da sociedade brasileira, mas com diretrizes propositivas tanto de projetos quanto de eventos que promovam educação, comunicação, empregabilidade e empreendedorismo da comunidade negra.”
O contingente que ela pretende atingir é imenso. Os afrodescendentes são 56% da população brasileira, 53% dos micro e pequenos empreendedores, 75% dos 10% mais pobres e 67% dos desempregados. Apesar de terem o crédito três vezes mais negado nas instituições bancárias tradicionais, segundo levantamento da Small Business Administration, os negros movimentam uma renda própria de R$ 1,9 trilhão por ano. Mesmo assim, a média salarial de um empreendedor negro equivale à metade da média de remuneração de um empreendedor branco. “85% dos nano e microempreendedores negros da nossa rede declararam que não vendem pela internet e que tiveram o faturamento reduzido a menos de R$ 500 por mês durante a pandemia, sendo esses estabelecimentos a fonte principal de renda familiar”, afirma Nina.
Ela conta que “black money” é uma ressignificação do termo estrangeiro que significava dinheiro sujo – e que para os negros utilizar o termo é falar de poder, não necessariamente ligado a dinheiro, mas a autonomia e liberdade. “Quando criamos o Movimento Black Money, nosso intuito era reunir os agentes do ecossistema preto, pensando no contexto de segundo país mais preto do mundo. Se considerarmos só as pessoas autodeclaradas pretas e pardas, economicamente o Brasil continuaria dentro do G20, ou seja, somos um país dentro de outro país, com amarras que vêm de séculos. Essas amarras precisam ser desestruturadas e a nossa liberdade precisa ser reerguida. O conceito de black money é sobre poder, é sobre o capital em suas diferentes formas, capital financeiro, capital intelectual e capital social.”
Nina explica que seu movimento bebe na fonte do pan-africanismo de Marcus Garvey (1887-1940), jornalista e ativista político de origem jamaicana que defendia que os afro-americanos precisam garantir sua independência financeira em uma sociedade dominada por brancos.
“Eu sou Nina, uma brasileira com 92% de DNA africano (já fiz o teste), que morou nos Estados Unidos, que se conecta hoje com diferentes países pretos na diáspora e com países africanos e percebe que temos as mesmas dificuldades. Se as dificuldades são as mesmas, as soluções precisam ser pautadas em fortalecimento intracomunidade, valorizando a simbologia do poder, exemplos que vão desde Madame CJ Walker até o casal Beyoncé e Jay Z, pessoas que tiveram mobilidade social mas não ascenderam sozinhas, foram deslocamentos com intuito da construção de um império, construção de um legado de benefícios impactando e transformando seus iguais ao redor.”
Essa raiz identitária do pan-africanismo, do lema “um só povo, um só destino”, segundo ela, inspira a atuar no coletivo colaborativo a partir dos esforços pessoais. “O Black Money trata, portanto, de fazer circular capital por mais tempo entre mãos negras. Esse capital vem da nossa intencionalidade, enquanto indivíduos pretos e pretas, independente da classe social, de fazer essa movimentação coletiva.”
Nina avalia como estratégica a inserção do negro no cenário de transformação digital em curso no país. “Somos os detentores de tecnologia desde que o mundo é mundo – veja, por exemplo, a grandiosidade das pirâmides do Egito. Hoje estamos aportando nossos saberes às ferramentas e instrumentos disponíveis para articular trabalhos e negócios a partir do digital, nossos grupos envolvidos nas fintechs funcionam como pontes para dar oportunidade de acessibilidade a todo o resto do povo preto que não tem acesso, principalmente no Brasil. Costumo chamar isso de hackeamento do sistema.”
O D’Black Bank, fundado por ela, foi criado para estruturar serviços financeiros para comunidades negras. “Não se pode simplesmente oferecer um serviço concorrente com outros existentes no mercado, tem de ter comprometimento social. Uma coisa é nascer na necessidade, na escassez, e outra coisa é nascer na oportunidade. Ainda somos os empreendimentos e empresas que são gerados a partir de um déficit, a partir de um não lugar”, define Nina. “Por isso as fintechs e outros negócios negros que têm a tecnologia como meio devem carregar valores e propósitos que tragam um benefício maior, fazer parte do ecossistema preto e fazer girar a prosperidade entre os nossos. Nosso lema é ‘compre de preto, venda para todos’.” A intenção, diz ela, é contratar serviços de pessoas pretas, de contratar pessoas pretas para seus times e investir em negócios de pessoas pretas. “Se hoje eu sou uma investidora anjo, eu tenho a obrigação de pegar esse meu capital financeiro e praticar o black money, mantendo esse dinheiro por mais tempo dentro da minha comunidade. As empresas que conseguem ter um ferramental tecnológico têm a obrigação de trabalhar a comunicação do nosso povo de maneira digna, trabalhar a inserção digital do nosso povo. Sabemos que temos 30% do país fora da internet, eles estão na sua maioria concentrados nas periferias e no norte do país, e nós sabemos quem habita essas regiões: em sua maioria, são pessoas pretas. Dessa forma, o D’Black Bank destina parte da receita para projetos sociais do Movimento Black Money, de inserção por educação de pessoas pretas. Eu tenho que fazer esse processo retroalimentar para poder trazer realmente o meu povo para liberdade. Não basta ser uma pessoa preta em posição de poder. É preciso construir espaços de poder compartilhados com os meus pares.”
Foi assim que os japoneses conquistaram e reconquistaram o lugar no mundo, analisa Nina, mesmo depois de duas bombas; foi assim que a comunidade judaica reconquistou o lugar no mundo mesmo depois do holocausto. “O povo preto foi o que mais sofreu genocídio na história do mundo, e mesmo assim não houve movimentos de reparação. Pelo contrário.”
“Eu tenho uma tatuagem da minha avó nas costas, fiz quando ela morreu para não esquecer de onde eu vim. Costumo dizer que nos alimentamos de nossas origens – como o adinkra sankofa, ideograma presente na simbologia dos povos acã, grupo linguístico da África Ocidental, representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda; Segundo Abdias do Nascimento (1914-2011), representa o retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro.”
Em outras palavras, não existe afrofuturo sem passado. “Não um passado saudosista, mas um passado que vive em mim, do qual sou a continuidade de quem veio antes de mim. O afrofuturo fala das nossas questões, das nossas possibilidades e, principalmente, das nossas realezas. O resgate ancestral dessa realeza, dessa prosperidade, está em utilizar todos os meios necessários, a tecnologia, os canais digitais, o poder de comunicação entre nossos microinfluenciadores e essa sabedoria geracional que temos agora para construir o futuro realmente humanitário. Um futuro digno para quem está aqui e os que virão depois. Um futuro bom para pessoas negras e não negras. Um futuro bom para todos.”
O FUTURO DO DINHEIRO
O empreendedorismo negro está em plena expansão. São mais de 14 milhões de homens e mulheres negras responsáveis por movimentar uma cifra que se aproxima de R$ 2 trilhões por ano no Brasil. Um volume que busca representatividade no sistema bancário e aproveita o processo de transformação digital em curso no país para reivindicar mais espaço, seja desenvolvendo fintechs para fortalecer o black money, seja promovendo arrojados programas de educação financeira para negros e negras, seja provocando a discussão da diversidade racial nos grandes bancos de varejo.
O empoderamento financeiro é a nova fronteira em um cenário ainda marcado por números negativos. Segundo levantamento da Small Business Administration, o empreendedor negro possui o crédito reprovado três vezes mais que o branco; o censo do IBGE mostra que, dos 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% são negros (na ponta oposta, se considerarmos os 10% mais ricos, apenas 24,8% são negros).
O desafio é vencer o racismo estrutural que impacta o sistema bancário e o viés inconsciente da relação entre dinheiro e opressão.
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“A gente foi ensinado desde pequeno a ter culpa em relação ao dinheiro, aprendeu que ele não presta, que é ruim ser rico e que é melhor aceitar a condição de pobre para entrar no céu. A educação financeira faz com que você vire a chave dessa programação”, diz o rapper KL Jay, dos Racionais MC’s, em depoimento para a plataforma NoFront.
Criado em 2018 com a proposta inovadora de ensinar economia para a população negra e periférica usando letras de rap, a NoFront já capacitou 5 mil pessoas. “O que a gente faz é instrumentalizar as pessoas em relação às finanças de uma forma não demagógica, considerando o contexto atual em que boa parte da população precisa vender o almoço para pagar a janta”, diz a economista Gabriela Mendes Chaves, fundadora e CEO da NoFront. “Com conhecimento, as pessoas adquirem ferramentas para, por exemplo, fugir da escravidão moderna, que é o endividamento.”
Autora do livro “Orçamento sem Falhas”, a influencer Nathalia Rodrigues, a Nath Finanças, tem 230 mil inscritos em seu canal no Youtube, no qual aborda educação financeira para baixa renda, um fenômeno que demonstra o quanto o assunto é necessário. “Precisamos normalizar a conversa sobre dinheiro em casa e na escola”, afirma.
Nath comenta que a qualidade do ensino contribui para o endividamento, pois pessoas que não aprendem matemática ou interpretação de textos ficam mais vulneráveis às armadilhas do sistema bancário, como os juros compostos, o limite alto do cartão, o cheque especial, os pacotes de serviços e os consignados.
Um banco pra chamar de meu
Antes da pandemia, havia no Brasil 45 milhões de pessoas desbancarizadas, que movimentavam, segundo informações do Instituto Locomotiva, R$ 800 bilhões. Com a necessidade de acesso ao auxílio emergencial e a demanda por serviços online em decorrência do isolamento social, o número de desbancarizados caiu 73%. Essa inclusão financeira acompanha e é estimulada pela inclusão digital.
Fintechs direcionadas para o público negro estão em alta. O cliente que procura um cartão identificado com a causa racial encontrará pelo menos cinco opções no Brasil. “Meu sócio, o Sérgio All, é um empreendedor negro, publicitário que atendia grandes contas e que, em determinado momento, precisou ampliar o parque tecnológico de sua empresa. Mas o crédito foi negado, apesar de ele ter nome limpo, longo relacionamento com o banco e de comprar os produtos e serviços que o gerente oferecia. A partir daí, ele passou a estudar o assunto. Nós nos conhecemos pela rede Afrobusiness, juntamos nossas expertises e fundamos o Conta Black”, relata Fernanda Ribeiro, cofundadora e CCO da fintech.
Hoje a Conta Black tem mais de 13 mil clientes, com movimentações trimestrais na casa de R$ 1 milhão. “A identidade é uma ferramenta de atração de clientes, muitos já foram marginalizados pelo sistema financeiro. Somos um negócio social e, para além da questão financeira, nosso objetivo é transformar a sociedade.”
Fernanda adianta que seu próximo passo será lançar uma plataforma de educação financeira e produtos desenvolvidos para as necessidades específicas do público negro. A inspiração vem da experiência norte-americana. Impedidos de acessar as mesmas agências que os brancos no período pós-abolição, os afro-americanos criaram suas próprias instituições. Atualmente existem 92 bancos liderados por pessoas negras naquele país.
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Onde estão os líderes?
Sem negros na liderança, grandes bancos brasileiros lançam ações para aumentar a diversidade racial e se aproximar do público que tem identificação com as afro-fintechs. As iniciativas vão desde incluir nas métricas de remuneração dos executivos uma meta para aumento na contratação de funcionários negros até mudar a cultura interna para quebrar os tetos de vidro que impedem a promoção de profissionais negros dentro do sistema bancário.
Uma das mudanças mais visíveis ocorreu no Itaú Unibanco. Após sofrer críticas por ter selecionado jovens brancos, na maioria homens, para o programa de trainees de 2020, o banco – que tem a diversidade entre os seus valores – fez uma reflexão e, para a edição de 2021, montou um grupo de trainees com 50% de negros e 63% de mulheres. Na estratégica área de tecnologia, a contratação de profissionais negros representou cerca de 34% do total. De maneira geral, observou-se crescimento na representatividade de profissionais negros na maioria dos cargos de um ano para outro.
“Diversidade e inclusão é isso. É aprendizado constante”, afirma o CDO do Itaú Unibanco, Moisés Nascimento. “Naquele momento, percebemos que os processos estruturais da organização precisavam ser olhados do ponto de vista da diversidade e, com a participação do grupo de afinidade, o banco se provocou – e o processo de transformação se deu.”
Natural de Belo Horizonte, vindo de uma família vulnerável, Nascimento passou por dificuldades até se tornar arquiteto e engenheiro de sistemas e seguir carreira em empresas de alta tecnologia no Vale do Silício. O retorno ao Brasil, há dois anos, dentro do movimento de inovação do Itaú, foi movido por três objetivos: ajudar o banco em sua transformação digital, desenvolver-se como executivo e aumentar a representatividade racial dentro do banco, tanto em hierarquia quanto em funções.
Ele considera que equipes mais plurais são valorosas na competição com as fintechs. “Estamos lidando com um competidor mais ágil, mais rápido e que faz um direcionamento muito mais inteligente, dado o momento em que ele nasce, e essa competição nos provoca a nos mexer, a mudar e perceber se estou dando a esse cliente o atendimento que ele merece.”
Reportagem publicada na edição 85, lançada em março de 2021
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