Em 2019, a Alemanha atingiu a marca de 11 milhões de habitantes estrangeiros, número que a coloca entre os cinco países com o maior número de imigrantes no planeta – a maioria do Leste Europeu e do Oriente Médio. Apesar do pluralismo cultural evidente, o país mantém orgulhosamente duas tradições centenárias essencialmente germânicas, ambas realizadas no mês de setembro.
Criada no século 17 como celebração do casamento do rei bávaro Ludwig I, a Oktoberfest se tornou a maior festa popular da Alemanha. Apesar de significar literalmente “festa de outubro”, o evento começa nos últimos dias de setembro em Munique e se estende até o início do mês seguinte, justificando seu nome.
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A cerca de 400 quilômetros dali, na cidade de Frankfurt am Main, os alemães realizam sua outra celebração setembrina: a Internationale Automobil-Ausstellung. Diferentemente da Oktoberfest, o nome desse evento o descreve com precisão – Exibição Internacional de Automóveis. Mas, sendo o alemão uma língua pouco amistosa para estrangeiros, a exibição acabou conhecida simplesmente como “Salão de Frankfurt” (ou pela sigla IAA). Apesar de seu atual nome popular, o IAA nasceu em 1897 em Berlim e passou por diversas cidades até chegar a Frankfurt, em 1951. O Salão ainda voltaria à capital alemã, mas acabou retornando a Frankfurt em 1953, onde finalmente se estabeleceu e se tornou o grande palco dos maiores lançamentos de automóveis e tecnologias de mobilidade do planeta.
Tal status foi alcançado por dois fatores principais: sua frequência e o desenvolvimento industrial alemão. Naquele ano de 1951, o IAA estava em sua 34ª edição e já era uma das mais tradicionais exibições de automóveis do planeta, ao lado do Salão de Paris e do Salão de Genebra. O que diferenciou o Salão de Frankfurt dos outros dois nas décadas seguintes é que a indústria automobilística da França jamais conseguiu se estabilizar por muito tempo, e a Suíça nunca se desenvolveu no segmento. No mesmo período, a Alemanha se transformou na segunda maior produtora de automóveis do mundo.
A virada econômica da Alemanha começou ainda no final dos anos 1940, com um empréstimo de aproximadamente US$ 1,45 bilhão dos EUA, investimentos estrangeiros dez vezes maiores e a política econômica do chanceler Konrad Adenauer e seu ministro Ludwig Erhard, que instituiu o novo deutsche mark, manteve a inflação controlada e estimulou a indústria. Com a alta produtividade dos trabalhadores locais e dos Gastarbeiter – imigrantes que chegaram ao país em busca de trabalho nos anos 1960 e 1970 –, a Alemanha construiu seu milagre econômico para se tornar a principal potência europeia.
Foi natural, portanto, que seu Salão do Automóvel se tornasse o mais importante da Europa e, a seguir, do mundo, uma vez que os americanos só internacionalizaram o Salão de Detroit em 1987, quando a Motor Town já estava em decadência. Foi em Frankfurt que o público viu o Fusca pela primeira vez, em 1939. Também foi lá que a Ferrari lançou a primeira Spider com motor V8 na traseira, a 308 GTB, iniciando sua linhagem mais famosa e bem-sucedida. O Chevrolet Monza, versão brasileira do Opel Ascona, foi um dos destaques da edição de 1981, assim como o Chevrolet/Opel Vectra em 1995, o Honda Fit em 2001, o Jeep Compass em 2004, o Volkswagen up! em 2013 e seis das sete gerações do Volkswagen Golf.
Além dos carros, o Salão também é, tradicionalmente, a vitrine tecnológica do segmento. Em 1967, a Bosch apresentou a primeira geração de seu sistema de injeção eletrônica de combustível, o Jetronic. Em 1977, foi a vez do seu sistema de freios antitravamento, o ABS. Em 1981, a Mercedes apresentou o airbag e os cintos de segurança com tensionamento, que juntos formam o sistema de restrição suplementar, mais conhecido pela sigla SRS estampada nos volantes e painéis dos carros modernos. Em 1983, um desajeitado protótipo chamado EVA, que colocava um computador analógico no porta-malas do carro, antecipava um futuro no qual o motorista seria orientado por um sistema eletrônico de navegação. Em 1987, Audi, BMW e Mercedes apresentaram seus carros equipados com o programa eletrônico de estabilidade da Bosch.
Nos anos 1990, vieram os conceitos elétricos, híbridos e movidos por célula de combustível: em 1997, a Mercedes apresentou o New Electric Car 3, um Classe A equipado com um motor elétrico alimentado pela energia resultante da quebra das moléculas de hidrogênio. Em 1999, a Toyota lançou aquele que se tornaria o primeiro veículo híbrido bem-sucedido comercialmente, o Prius. Era o futuro sendo escrito.
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Logo no início daquela década, o Salão de Frankfurt passara por sua primeira grande reformulação: os veículos comerciais foram separados dos carros de passeio. Cada segmento ganhou um evento próprio e eles foram realizados alternadamente entre si: nos anos pares, o IAA seria dedicado aos comerciais; nos anos ímpares, aos carros de passeio. Além disso, a exposição dos veículos comerciais foi transferida para Hannover, a 350 quilômetros de Frankfurt, onde permanece até hoje.
Apesar da divisão, a primeira edição do IAA Passenger Cars foi um sucesso: 1.271 expositores de 43 países apresentaram seus produtos para 935 mil visitantes. No ano seguinte, o IAA Commercial Vehicles teve quase 1.200 expositores de 29 países, que receberam 287 mil visitantes.
Mesmo com a desaceleração da economia alemã nos últimos anos, a edição de 2019, que será realizada de 12 a 22 de setembro, terá mais de 2.100 expositores de 48 países e espera um público superior a 1 milhão de visitantes, um número impressionante neste momento de transição pelo qual passa a indústria automobilística e a tecnologia em geral – especialmente se considerarmos que o Salão de Detroit e o Salão de Paris tiveram queda no número de expositores e de visitantes em suas últimas edições. Isso porque, apesar do cenário transitório, o IAA também mudou para manter seu status de vitrine tecnológica. Neste ano, por exemplo, serão lançados modelos convencionais, como o Mercedes-Benz GLA de segunda geração e a quarta geração do Audi A3, mas as grandes estrelas serão os modelos híbridos e elétricos.
Já confirmado pela fabricante, o Porsche Taycan é o lançamento mais aguardado do evento. O sedã – primeiro Porsche 100% elétrico – terá 680 cv produzidos por seus quatro motores elétricos (um em cada roda), que o levarão de 0 a 100 km/h em 3,5 segundos e aos 200 km/h em 12 segundos. A alimentação será feita pelas baterias instaladas no assoalho, que fornecerão eletricidade suficiente para até 600 quilômetros de autonomia. A Porsche considera o Taycan “o início de uma nova era” para a marca. É uma aposta alta, porém plausível: a Porsche atualmente é a marca mais lucrativa do segmento automobilístico.
Embora seja o mais aguardado, o Taycan não é o lançamento mais importante deste ano. Tal posto cabe ao Volkswagen ID3, um hatchback com o porte do Golf que marca o início de uma família de veículos elétricos que promete colocar 22 milhões de unidades nas ruas do mundo nos próximos dez anos. A marca pretende vendê-lo por menos de € 40 mil, posicionando-o como o principal rival do Tesla 3.
Menos badalado, mas igualmente revolucionário, ao menos para sua fabricante, será o supercarro que a Lamborghini deve levar ao Salão. Ainda sem nome, ele é conhecido pelo código LB48H e usará algum tipo de motor elétrico combinado ao seu V12 para ser o primeiro modelo híbrido da história da Lamborghini. Os clientes mais especiais da montadora já conheceram o carro em 2018, mas sua apresentação ao público foi prometida para Frankfurt.
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Outro modelo revolucionário para sua fabricante é o Land Rover Defender. Lançado como um veículo rural nos anos 1940, ele foi baseado em seu projeto original até 2015, quando finalmente as leis de emissões e os padrões de consumo e eficiência forçaram sua aposentadoria. Agora, depois de quase cinco anos, ele finalmente terá uma nova geração já adequada aos novos tempos. Terá plataforma de alumínio, gerenciamento eletrônico do seu sistema de tração 4×4 e conjunto mecânico híbrido, que irá combinar motores turbo a gasolina e diesel a um motor elétrico auxiliar.
Mini e Honda também entraram na onda dos elétricos e vão apresentar seus compactos urbanos Mini Electric e Honda E. O primeiro mantém o visual tradicional da Mini, porém, substitui o motor 1.5 turbo de três cilindros pelo conjunto elétrico de 181 cv usado pela BMW no i3 S — a marca alemã é a proprietária da Mini. As baterias permitem uma autonomia de até 240 km.
Já o Honda E tem um visual retrô inspirado na primeira geração do Civic e usa um motor elétrico de 150 cv, alimentado por um conjunto de baterias de 35 kWh que lhe fornecem energia suficiente para até 200 km. É a grande aposta da Honda para o mercado europeu, que a cada ano impõe mais limites para controle de emissões e deverá ter nos elétricos um novo padrão para os carros urbanos compactos.
A transição materializada nos três principais lançamentos da edição de 2019 é justamente o slogan do evento, que anuncia a “mobilidade do futuro acontecendo agora”. Com as antevisões de carros conectados entre si, tecnologias de condução autônoma, sistemas de transporte integrados e compartilhamento de automóveis, depois de escrever parte da história do automóvel, o Salão de Frankfurt começa também a escrever seu futuro com o IAA Conference, um evento lançado nos últimos anos como parte da programação do Salão e que traz convidados de setores diversos, como Virginia Rometty, CEO da IBM, Scott Guthrie, VP de Inteligência Artificial da Microsoft, e Ola Kälenius, futuro CEO da DaimlerBenz, para discutir as direções que serão seguidas pelos automóveis, o transporte e a mobilidade nos próximos anos.
Essa adaptação do Salão de Frankfurt para permanecer como vitrine global da tecnologia da mobilidade e o histórico de inovações tecnológicas apresentadas no evento ao longo dos últimos 50 anos mostram que a mudança também é uma tradição alemã.
Reportagem publicada na edição 71, lançada em setembro de 2019
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