Basta provar a bisque em que estão embebidos os suculentos mexilhões do clássico Moules et frites – prato ícone de bistrô em que o fruto do mar é servido acompanhado de batatas fritas – para perceber que a cozinha impressa pela chef Vanessa Silva no Bistrot Parigi, do grupo Fasano, tem personalidade. E técnica, muita técnica.
Aos 41 anos, é a primeira vez que a ex-estudante de odontologia lidera as panelas de um restaurante. Ela comanda o Bistrot Parigi desde 2018 e, como resultado da excelência que estampa nas receitas, já tem recebido prêmios. Os louros, porém, parecem importar menos do que os elogios de mestres da cozinha francesa no Brasil, como Érick Jacquin, de quem foi aprendiz e com quem trabalhou por 13 anos, e Laurent Suaudeau.
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“Chef Laurent me disse que minha cozinha é uma poesia perfeita, pois eu sei o verbo”, conta, orgulhosa. Por verbo, entenda-se os molhos, parte fundamental da base da gastronomia da França, esquematizada por Auguste Escoffier no início do século 20. Há de se concordar com o mestre francês. A bisque – molho aromático de cor alaranjada à base de frutos do mar – que abre este texto tem o poder de levar o comensal à beira do Mediterrâneo em uma tarde de sol.
Vanessa é uma obstinada das bases e das técnicas, as quais aplica com rigor para alcançar os surpreendentes sabores dos repastos que chegam à mesa no restaurante abrigado no topo do shopping Cidade Jardim, em São Paulo. “No meu primeiro trabalho, já peguei as bases francesas mais pesadas. Era começo da faculdade, e eu já fazia molhos e limpava foie gras”, lembra sobre a primeira ocupação, ao lado do estrelado Jean Pierre Laubach.
Não demorou muito para ingressar na cozinha de Jacquin, a quem chama simplesmente de “chef”. “Foi meu mestre. Com quem aprendi a valorizar a profissão de cozinheiro, saber aproveitar da melhor maneira o alimento, ter respeito pelo ingrediente e liderar, além de como ser comensal e conquistar as pessoas pelo paladar”, derrete-se. Sobre a “fama de mau” do apresentador do “MasterChef”, ela diz ter aprendido a lidar. “As pessoas me perguntam muito sobre trabalhar com o Jacquin, mas ele nunca me tratou como mulher dentro da cozinha, sempre como um funcionário, independentemente de gênero. Outra coisa: quando tudo estava perfeito, ele fazia tudo ficar mais difícil. Sempre desafiador”, conta. “Pra mim ficou fácil depois. Hoje, eu trabalho para qualquer um. Faz só dois anos que eu sou chef. E fiquei todos esses anos com ele para aprender o correto.”
Mãe de duas mulheres (Fernanda, de 21, e Bruna, de 20 – nenhuma delas estudante de gastronomia), Vanessa entende a força e o talento que tem, mas é humilde quando fala sobre o futuro. “Acho que isso é o começo ainda. Se eu mantiver o padrão, é mais um degrau para subir. Não sei o que pode ser amanhã, mas quero que o clássico seja muito fortalecido dentro de mim. Amanhã isso pode mudar, mas sempre tendo o clássico como base. É isso que estou fazendo.”
Os temas “clássico”, “técnica” e “base” aparecem mesmo quando se pergunta a Vanessa seu prato preferido. “Canja. Bem feita, com caldo mesmo”, diz. Não poderia mudar ao responder sobre o que mais gosta de preparar: cozidos tradicionais, como bourguignon, prato francês feito à base de carne, vinho e legumes. “Gosto de sentir o sabor e o perfume. Acelera na panela, puxa a carne, o vinho da marinada. Você sente os sabores e aromas evoluindo”, poetiza.
A chef também acredita que a cozinha clássica não comporta grande inventividade, por isso, procura se esmerar na técnica e servir clássicos perfeitos. “Minha cozinha é clássica e, às vezes, eu tento trazer alguma leveza, mas as bases estão ali. Não é nada que eu tenha inventado”, explica. “Eu coloco coisas no prato, mas, se procurar na história, vai ver que já existe. Tenho um prato chamado A Couve-Flor e a Vieira, em que a hortaliça aparece em texturas diferentes, em creme e tostada, acompanhada de vieiras e óleo noisette. Aí, pensei: ‘Será que inventei?’ Mas não, já está em outros lugares”, diverte-se.
Os tempos não são fáceis para a gastronomia, com as restrições impostas pela pandemia de Covid-19 fechando restaurantes pelo mundo todo. E, apesar de Vanessa entender que o tema vai deixar marcas, sabe que é passageiro. Mais importante é entender sua opinião sobre para onde vai a gastronomia no Brasil. A respeito disso, ela é taxativa. “Ainda não caiu a ficha da valorização da cozinha clássica. Essa coisa de inventar muito, sem muita base, vai acabar. A conta não fecha. Não dá pra inventar sem contexto. Estamos em um momento de muita criação, mas ainda precisamos separar o joio do trigo”, afirma. “A valorização da comida brasileira é recente. Tem muita gente fazendo coisas ótimas, mas também tem muita gente sem base, que acaba virando cantor de um sucesso só.”
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Orgulhosa do trabalho da sua equipe (hoje inspirada e animada para buscar para o Bistrot Parigi uma estrela Michelin), Vanessa diz que seu sonho é perpetuar o rigor e o trabalho da gastronomia francesa para além da sua cozinha e perpetuar a consciência sobre o alimento. “Quero que isso chegue até a família dos meus funcionários, que os meninos que entram aqui consigam entender que podem crescer e ter um futuro. Não sei como isso vai acontecer, mas faz parte de como as pessoas comem. Meu sonho é tentar construir uma sociedade mais consciente em cima do laço da memória afetiva, tanto para quem está trabalhando como para quem vem consumir”, filosofa.
Para finalizar nossa conversa, pergunto a Vanessa o que ela cozinharia e serviria a Jacquin, que tanto lhe ensinou durante anos e a quem ela atribui parte essencial de seu conhecimento. A chef pensa. À mente da jornalista que entrevista, passam receitas como os camarões com champanhe ou o foie gras com fruta da estação, ambos presentes no cardápio do Bistrot Parigi. Ela se decide, porém por ravióli de muçarela. Vendo a expressão de dúvida da interlocutora, emenda: “Para evitar críticas”, e ri.
Reportagem publicada na edição 84, lançada em fevereiro de 2021
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