A pontinha de um rabo colorido se movendo como uma cobra no ar, no meio do mato, me faz lembrar a clássica fala do Piu-Piu sempre que se deparava com o Frajola: “Eu acho que vi um gatinho”. Nesse caso, a surpresa é ainda maior. Manobrando o Land Rover com extrema destreza no meio de altos arbustos como se estivesse sobre o asfalto, o guia Odumetse Modikwa (o popular OD) nos posiciona muito próximos, não de um, mas de dois leopardos! Um casal – e no momento mais íntimo, logo após o nascer do Sol. A cena dura quase três minutos.
Começa com o macho e a fêmea deitados lado a lado, como se posassem para um pintor. Eles são maravilhosos – a padronagem dos pelos reluz. Em seguida, ele parte para cima e acontece a cópula – ele dando umas mordidinhas na orelha dela. Até que se põe em pé, quer dizer, de quatro, satisfeito. A fêmea, no entanto, demonstra que quer continuar. Faz um charme danado, se joga para cima do gatão, bate a parte traseira do corpo na cara do parceiro, que decide retomar o romance. Quando os dois se mostram felizes, a fêmea fica estirada na relva e o macho sai andando, passa rente de onde estou sentado na Land e some no mato, sem dar a mínima bola para o 4×4 com seis pessoas em êxtase.
Leia também
O flagra acontece a poucas centenas de metros da suíte onde me hospedo no lodge Chitabe (oito acomodações), localizado no Delta do Okawango, o melhor palco para admirar o incomparável espetáculo da vida animal na África (16 mil quilômetros quadrados; cerca de 122 espécies de mamíferos e 400 de pássaros). Estamos em Botsuana, no centro-sul do continente, país pouco maior do que a França, cercado por Namíbia, Zâmbia, Zimbábue e África do Sul. Chitabe é uma das 60 propriedades que a empresa Wilderness possui em oito países do continente.
Sinônimo de exclusividade e de conservação, a marca protege mais de 2,3 milhões de hectares de áreas selvagens – e traçou a meta ousada de dobrar tal área até 2030. Com uma população de 2,5 milhões de habitantes e a liderança mundial na produção de diamantes, Botsuana tem um papel importante na evolução dos trabalhos da Wilderness – foi aqui que o grupo inaugurou sua primeira operação, em 1983. Para celebrar os 40 anos de história e mostrar outras frentes de atuação – que vão muito além de safáris incríveis sem carros de outras empresas por perto –, a Wilderness convidou cinco jornalistas do mundo para uma semana épica em três lodges: Chitabe, DumaTau e Vumbura Plains. A Forbes representou o Brasil.
Sem cercas, nem porteiras
O melhor caminho para chegar a esse paraíso da vida selvagem é voar direto para Joanesburgo (África do Sul) e de lá pegar outro voo para Maun, em Botsuana (a capital é Gaborone, mas Maun é o principal hub para as regiões do Delta do Okavango e de Linyanti). A partir daí, a experiência tem o selo de qualidade do grupo, uma vez que o deslocamento entre os lodges acontece em pequenas aeronaves da Wilderness Air. Pousos e decolagens cinematográficos em pistas no meio do nada.
Não há cercas ou porteiras ao redor dos lodges – os animais estão em casa, por todos os lados. A varanda funciona como ponto de observação do trânsito de dezenas de espécies. Quer dizer, na verdade, não precisa nem chegar à varanda – deitado na cama, ou circulando pelo quarto, o documentário ao vivo da National Geographic segue 24 horas por dia do lado de fora.
-
Teagan Cunniffe Elefante, búfalos e zebras: espécies frequentes nos safáris no Delta do Okavango
-
Teagan Cunniffe Elefante, búfalos e zebras: espécies frequentes nos safáris no Delta do Okavango
-
Teagan Cunniffe Elefante, búfalos e zebras: espécies frequentes nos safáris no Delta do Okavango
Elefante, búfalos e zebras: espécies frequentes nos safáris no Delta do Okavango
A rotina na savana é pontuada por dois safáris diários em carro aberto: um no Sol nascente e outro no poente – o meio do dia serve para uma soneca pós-almoço e para o desfrute das acomodações, da piscina e do spa. Nunca acordei tão feliz às 4h30 da manhã. Após o jantar, um guia te acompanha até o quarto. Rugidos, barulho de bichos circulando, e se alimentando, ruídos indecifráveis. Os sons noturnos do Delta do Okavango são um show à parte – no dia seguinte, difícil distinguir o que aconteceu e o que foi sonho.
Mesmo sabendo da fama da riquíssima fauna do Delta do Okavango, as primeiras horas de um safári vespertino a partir de Chitabe são de uma quantidade e de uma qualidade de avistamentos impressionantes. O primeiro protagonista é um leopardo macho, de 6 anos. Ficamos com ele até um pôr-do-sol com direito a arco-íris, Lua e os primeiros brindes de muitos que estariam por vir, sempre acompanhados por boas risadas e olhos marejados por emoções inéditas, densas.
Os safáris posteriores em Chitabe seguem um padrão altíssimo de surpresas, com inúmeros “uau!” e “come on!” costurando olhares incrédulos, ora sem acreditar o quão próximo o animal está passando; ora, pasmos com panoramas mais abertos. Grupos com dezenas de babuínos atravessando a paisagem, ou sentados em pequenos montes de terra, com trejeitos que lembram uma pessoa no ponto de ônibus; zebras correndo em grupos para confundir o olhar dos leões, ou dividindo a vegetação rasteira com os gnus; javalis-africanos chamando a atenção por não serem dotados, digamos, de grande beleza; macacos-vervet também em bandos, com algumas fêmeas levando o bebê pendurado na barriga; pássaros de todas as cores e tamanhos, cantos nunca ouvidos; riboques e impalas a rodo; um grupo de filhotes de leão aguardando os pais voltarem da feira; cudos desfilando enormes e contorcidos chifres (às vezes, no embate, os dois morrem por não conseguirem desatar os cornos); topis mais tímidos, desenhados por manchas arroxeadas; um casal de avestruzes, correndo em alta velocidade em um zigue-zague maluco. Enfim, uma festa de cores, formatos e sons que transforma o passar das horas em puro êxtase.
Caçada de guepardo
A primeira alvorada em Chitabe começa com uma Lua laranja poente querendo (e conseguindo) chamar a atenção durante um Sol nascente. A protagonista do dia é uma família de guepardos: a mãe com três filhotes. O primeiro avistamento acontece por volta das 10h30, pouco depois de nos depararmos com um casal de leões. No entardecer, cruzamos com os guepardos de novo, agora a fêmea mais agitada pela necessidade de conseguir algum sustento aos filhos. “Eles têm que comer antes do anoitecer”, crava OD.
Sentada sobre as patas traseiras, com as dianteiras esticadas, a mãe parece uma estátua farejando a brisa que sopra quente. Então, passa a caminhar. OD liga a Land. “Ela vai caçar.” Traçando uma volta na savana, camuflada por algumas árvores, ela cerca zebras e impalas. Começa a correr e a perdemos de vista. Em poucos minutos, OD recebe um rádio do guia de outro carro da Wilderness – encontraram a impala abatida e os filhotes de guepardo jantando com ferocidade.
Com a boca suja de sangue, a mãe fica sentada ao lado do banquete. Ela será a última a comer – por ora, está em alerta máximo, esperta na possível aproximação de hienas. Não dá para piscar no Delta do Okavango. Quando o Sol decide encostar no horizonte como uma gema, duas girafas cruzam a bola laranja no contraluz com aquele gingado irresistível.
No intervalo de safáris espetaculares, visita aos bastidores do lodge: como é feito o controle da qualidade da água nos filtros; como a água quente é produzida por tubos expostos ao Sol; como a água é reutilizada no plantio de árvores; como o lixo é reciclado e como é empacotado o que vai embora de caminhão; os 190 painéis de energia solar e a sala das baterias; a vila dos 70 funcionários. Ao final do reconhecimento, surge uma gazela-pintada enorme. Ficamos nos vendo um pouco, eu encantado com a presença de um bicho daquele tamanho. Até que ela virou as costas e se foi. Se a viagem terminasse aqui, já teria valido muito a pena atravessar o Atlântico – bastou esse período para a proximidade com os animais elevar a alma a outro patamar. A conexão com a natureza é imediata – e muito transformadora.
O deslocamento para a pista de decolagem, claro, é mais um safári carregado de cenas com uma profusão de bichos – destaque para o mau humor de duas hienas, a pressa de alguns chacais e grupos de hipopótamos fazendo bolhinha no rio raso, enquanto outros caminham pela margem, quase em câmera lenta – um quadro pré-histórico.
Tromba na cauda
Outro voo lindo, de 35 minutos (cruzando a Moremi Game Reserve, logo ao norte de Chitabe), nos conduz à região de Linyanti, colada à fronteira com a Namíbia. A chegada ao segundo logde, DumaTau, empoleirado sobre a lagoa Osprey, com uma fila enorme de elefantes do outro lado da margem, é arrebatadora.
A beleza que se esparrama por todos os lados de DumaTau é fruto da sintonia entre a artista Gina Waldman, que criou obras principalmente com a temática de elefantes e cães selvagens (as vedetes das redondezas); a designer de interiores Caline Williams-Wynn (Artichoke); e a arquitetura assinada pelo escritório sul-africano Luxury Frontiers. São sete suítes de 142 metros quadrados (com piscina privativa), uma oitava para família, academia, piscina e áreas comuns que ficam entre dois pontos em que os elefantes cruzam a lagoa todos os dias. Os bichões que enfrentam alguma dificuldade na água recebem como ajuda empurrõezinhos de colegas que vão logo atrás. Bebês usam a tromba para se amarrarem à cauda esticada da mãe. Fofura extrema.
O trânsito desses gigantes traduz na prática a informação de que estamos na maior concentração de elefantes do continente – no norte de Botsuana, estima-se que sejam quase 130 mil deles. Linyanti está no cruzamento de três rios e funciona como o coração da Área de Conservação Transfronteiriça Kavango-Zambeze, um lugar maior do que Alemanha e Áustria juntas, que engloba cinco países (Angola, Botsuana, Namíbia, Zâmbia e Zimbábue). “Temos que dar chance de as manadas de elefantes e outros animais continuarem circulando em paz neste enorme corredor de proteção”, conta o sul-africano Vincent Shacks, gerente do grupo de impacto da Wilderness e nosso anfitrião em Botsuana. “O objetivo é reduzir os conflitos entre animais e pessoas, e incentivar projetos que lutem para a coexistência de elefantes e humanos, como faz a EcoExist”, cita Vince sobre a iniciativa (ecoexistproject.org) que tem 10 anos e atrela a conservação da vida selvagem ao apoio às comunidades assentadas nas rotas dos brutamontes.
-
Teagan Cunniffe As dependências de Wilderness DumaTau, sempre recebendo a visita de manadas de elefantes
-
Teagan Cunniffe As dependências de Wilderness DumaTau, sempre recebendo a visita de manadas de elefantes
-
Teagan Cunniffe As dependências de Wilderness DumaTau, sempre recebendo a visita de manadas de elefantes
As dependências de Wilderness DumaTau, sempre recebendo a visita de manadas de elefantes
A engrenagem de impacto na melhoria de vida das comunidades no entorno dos lodges é movida pelo dual hospitalidade e conservação, braços da operação da Wilderness sustentada pela estratégia de “high-value, low-volume conservation tourism” (tarifas caras para poucas pessoas; 40 mil hóspedes por ano). O tripé de atuação da marca nos vilarejos considera a capacitação local, a educação infantil e a coexistência de seres humanos e animais. “Temos que ir além de contratar pessoas da região para trabalhar conosco – temos de melhorar a vida de quem não trabalha com turismo”, sublinha Vince, especializado em crocodilos.
Destaque entre os safáris em Linyanti – agora feitos em uma região de árvores mais altas –, um longo avistamento de Topaz, um leão dominante em uma enorme área disputada por dois grupos. Ficamos cerca de uma hora acompanhando muito de perto o deslocamento de Topaz, ao mesmo tempo que uma tempestade se armava no horizonte.
Em uma pausa da caminhada, Topaz senta e experimenta rajadas mais fortes de vento, com a juba penteada para trás, como em uma propaganda de xampu para leões que têm a vida corrida. “A direção do vento mudou”, traduz Boikubo Chinyepi, o BK, guia de 40 anos, que nos conduz pelos arredores fascinantes de DumaTau. “Ele está farejando alguma coisa diferente. Vamos segui-lo”, e, como se estivesse com um controle remoto na mão, Topaz se levanta e passa a andar obcecado em um ponto do matagal à frente. Ao alcançar tal ponto, aparece com algo na boca. “É um bebê impala, que deve ter sido abandonado aí”, explica BK. Topaz mastiga a presa com desenvoltura – o som dos ossos sendo triturados se mescla aos trovões incessantes.
A caminho do voo para o terceiro lodge, outro momento especial na companhia de uma fêmea de leopardo, que parece posar para as fotos, inicialmente enquadrada nos galhos altos de uma árvore; depois, sentada no topo de um monte de terra, peito erguido, olhar distante. O radar da fêmea está ligado para encontrar uma presa que alimente seus filhotes. De um instante para outro, porém, o jogo vira: ela flagra a aproximação de um babuíno, o que pode ser um péssimo sinal. Um babuíno sozinho não faz frente a um leopardo, mas um grupo deles, sim. A fêmea passa para a defensiva, sai na miúda e vai se virar em outras plagas.
Leia também
Hipopótamo na madrugada
E quando você pensa que a experiência da estadia nos espaços comuns e na acomodação de DumaTau dificilmente seria batida, aparece Vumbura Plains na sua vida. Preciso ser sincero e esticar uma pausa para enfatizar que a suíte 7 desse lodge, localizado ao norte do Delta do Okavango, pode ser a acomodação mais espetacular de que já desfrutei. Com uma ínfima tela vazada fazendo as vezes de parede, a imersão na natureza é absoluta: um tronco enorme logo à frente, pastagens inundadas, o céu e a terra de Botsuana dentro do quarto. Projetado pelos arquitetos Silvio Rech e Lesley Carstens (de Joanesburgo), o Vumbura teve seu design de interior remodelado em 2022 por Cate Simpson (Reflecting Africa, outro escritório sul-africano).
-
Teagan Cunniffe Área comum de Wilderness Vumbura Plains
-
Teagan Cunniffe Suíte de Wilderness Vumbura Plains
Área comum de Wilderness Vumbura Plains
No meio da noite, ouço um barulho de água muito alto e decido dar uma olhada pelo deck, com uma lanterna. O tamanho do hipopótamo iluminado me faz lembrar uma Kombi – que bicho enorme, que cena. Ele segue seu caminho em paz. Na água, um rastro prateado de luar.
Vumbura Plains serve como ponto de partida para passeios de helicóptero até as comunidades rurais que são atendidas por projetos sociais como o Claws (Conservancy-Communities Living Among Wildlife), que existe desde 2014. Estivemos com Kelebogile Motshoi, de 32 anos, uma das lideranças que atua junto aos fazendeiros para pacificar a convivência da agropecuária com o mundo animal. Havia a prática de envenenar leões sempre que o gado era atacado. “Mapeamos a região com circos concêntricos e monitoramos os leões conforme eles se aproximam do vilarejo”, explica Kelebogile. “Os fazendeiros são avisados se o gado correr risco.” À noite, o gado fica cercado por uma lona que os esconde; pela manhã, há uma checagem das redondezas antes de soltá-los para pastar até o fim da tarde. “Reduzimos bastante o número de bois atacados por leões.” A boa repercussão na economia local incentivou outros fazendeiros a se interessarem pelo projeto. “No começo, eles não acreditaram muito, mas, com o passar do tempo, viram o resultado.” Em um segundo vilarejo, acompanhamos uma apresentação teatral, mostrando como era tensa a relação de quem plantava com os elefantes – agora, os tempos são outros.
-
Siga o canal da Forbes e de Forbes Money no WhatsApp e receba as principais notícias sobre negócios, carreira, tecnologia e estilo de vida
O tour final não poderia ser mais emblemático: de voadeira, cortando o espelho d’água no pôr-do-sol do canal principal do Okavango. Em uma das muitas curvas do percurso, demos de cara com o antílope mais tímido que existe, o sitatunga – o guia Willy se sobressalta com o encontro e o bichão some na mata. Wesley Hartmann, ecologista da Wilderness, conseguiu tirar uma foto. Eu nem cheguei a ver o bicho, e tudo bem.
Conversamos sobre a quantidade de avistamentos na semana e relembramos as cenas mais marcantes. O jornalista canadense Tim Johnson, com a experiência de quem já ficou em cerca de 40 lodges na África (viaja 10 meses por ano há décadas), aponta, sem pestanejar, esta viagem como a melhor que já fez no segmento (analisando hospedagem, equipe, gastronomia e passeios). Não tenho tamanha vivência na região – minha experiência com safári se resumia a três (excelentes) lodges da Wilderness na Namíbia (Desert Rhino, Serra Cafema e Ongava); e a visita ao Parque Nacional de Tarangire, na Tanzânia, após alcançar o cume do Monte Kilimanjaro (5.895 metros), nas férias de verão de 2022. Mesmo assim, faço eco às palavras de Tim e reconheço o impacto (em todos os sentidos) da vivência que acabamos de ter. Vamos levar essa semana para o resto de nossas vidas. Após 40 anos como referência de conservação na África, a Wilderness já sabe que impactar os hóspedes é apenas a ponta do iceberg.
Entrevista publicada na edição 115 da revista, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.