Dentro de um laboratório, um circuito é montado com quatro cones que oferecem diferentes amostras de odores do corpo humano. Ônix, um pastor alemão, e Black, um pastor belga, passeiam pelo ambiente em busca de algo muito estudado pela medicina: a detecção do diagnóstico positivo de câncer através do cheiro – imperceptível para humanos, mas não para seus amigos de quatro patas. Treinados desde a ninhada, os cães oferecem 91,8% de certeza na detecção da doença.
O cenário descrito acima faz parte do projeto KDOG, que começou a ser organizado no Brasil há dois anos com o objetivo de ajudar no processo de triagem do combate ao câncer de mama em regiões mais afastadas do país, como populações indígenas e ribeirinhas. “A iniciativa não surge para substituir os protocolos tradicionais, e sim para ajudar a antecipar a constatação da doença em pessoas que não têm acesso fácil a exames como a mamografia”, explica Leandro Lopes, responsável técnico e cinotécnico do estudo no Brasil.
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Embora a pesquisa ainda esteja nas fases iniciais em solo nacional, o KDOG já existe na França há sete anos, elaborado especialmente para levar chance de diagnóstico precoce para países com baixa qualidade de vida. “Na França, a cada 15 minutos de caminhada existe um local para fazer mamografia. Lá, o sistema de saúde é muito diferente”, destaca Lopes, que teve a oportunidade de assistir o avanço da iniciativa no exterior e percebeu que já tinha passado da hora de trazê-la ao Brasil.
“Há dois anos entramos em contato com eles e, no ano passado, conseguimos a parceria”, diz o pesquisador, que atualmente trabalha em Petrópolis, Rio de Janeiro, junto com os médicos oncologistas Carla Ismael e Christian Domenge, vinculados à Sociedade Franco Brasileira de Oncologia (SFBO). “Quando eu cheguei no laboratório da França, a primeira detecção que assisti foi muito marcante. Tive a certeza daquilo que vinha estudando e no qual acreditava há anos.”
Nada mais podia impedir os planos de Lopes após essa experiência. Talvez esse seja o motivo de tanta emoção quando o pesquisador fala sobre os primeiros passos do KDOG em seu país natal. Com patrocínio oficial da marca de ração Royal Canin, o projeto ainda está na primeira e mais demorada fase: o treinamento. “O sistema olfativo de um cachorro é muito mais apurado do que nós imaginamos, e o câncer nada mais é do que uma modificação biomolecular capaz de exalar odor”, explica.
Com isso, a detecção pode ser feita sem o contato do animal com o paciente, reduzindo as chances de estresse para ambas as partes. Na realidade, Lopes conta que o sistema funciona com a entrega de um kit com sabonete neutro, duas compressas e um saquinho zip lock para a examinada. “Antes de dormir, a pessoa lava as mãos com o sabonete neutro, coloca uma compressa em cada mama, veste a roupa e vai dormir. Ao acordar, ela pega o sabonete neutro de novo, lava as mãos, tira as compressas, coloca dentro do saquinho e manda para gente.” A partir dessa amostra, a equipe monta o circuito no laboratório e oferece algumas opções de compressas para os cães, que ficarão estáticos em frente a opção que testar positivo.
“Nós ensinamos ao cachorro que, se ele encontrar aquele odor, vai ganhar um brinquedo ou um petisco. É um treinamento lúdico focado na felicidade e no bem-estar do animal”, ressalta Lopes, que demonstra naturalmente seu apego com os cães com os quais convive desde que eram filhotes. “Eu sempre friso isso: treinamos sem nunca tirar a infância deles. Sempre com alegria e respeitando o tempo de vida. Afinal, temos muito que agradecer a eles.”
Uma gratidão que vem de séculos de constante companheirismo. Esse talento para detecção de doenças, inclusive, começou a ser observado há cerca de 20 anos nas relações cotidianas das pessoas com seus animais de estimação. Em casos de diabetes, ou até tumores, os cães pareciam sentir que algo não estava normal dentro de casa, chamando a atenção de pesquisadores e médicos para o assunto. Hoje, já são mais de 13 grupos que trabalham com cães de detecção de câncer no mundo, além de 30 publicações científicas que comprovam o fenômeno ao redor do globo.
Com a odorologia canina, os animais são capazes de identificar diabetes, vírus como o da Covid-19 e mais de 40 tipos de câncer de mama em estágio inicial – que é o foco atual do projeto KDOG. “Nossa meta agora é o câncer, mas com certeza pensamos em outras análises para o futuro”, diz Lopes, destacando que, por enquanto, a meta é alcançar a quarta fase da iniciativa – a publicação do estudo científico para que o projeto seja implementado no sistema de saúde público com rapidez e qualidade. “Vamos conseguir salvar muitas vidas com nossos amigos de quatro patas”, finaliza.
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