
Muito antes de se tornar a uva emblemática da Argentina, o malbec era um pilar da vinicultura francesa. No século 19, era amplamente cultivado em Bordeaux, superando até o cabernet sauvignon em regiões como o Médoc. Hoje, no entanto, sua reputação está mais associada aos Andes do que ao rio Gironda.
Mas a sobrevivência do malbec nunca foi garantida. Seu percurso de favorita europeia a símbolo argentino foi moldado pelo acaso, por desastres e pelas forças seletivas do clima e do solo.
A virada começou com a epidemia de filoxera, uma praga que devastou os vinhedos europeus no final dos anos 1800. Àquela altura, o malbec já havia chegado à Argentina, introduzido em 1852 pelo agrônomo francês Michel Aimé Pouget. O momento foi crucial.
“Sim, é verdade que quando o malbec veio para a Argentina foi antes da filoxera, em 1852, e naquela época o malbec era mais amplamente plantado no Médoc do que, por exemplo, o cabernet sauvignon”, diz a doutora Laura Catena, diretora-gerente e enóloga de quarta geração da Catena Zapata, via Zoom. “Depois da filoxera, há diferentes teorias sobre por que o malbec não foi amplamente replantado na França.”
Essas teorias variam. Alguns acreditam que a uva era muito sensível à variação climática. Outros dizem que era difícil de enxertar. Mas Catena argumenta que o motivo real pode ter sido prático: “O merlot amadurecia várias semanas antes do malbec, e os produtores queriam ter uma uva precoce e uma tardia porque isso facilita muito o trabalho na vinícola.”
A perda da França se tornou a oportunidade da Argentina. “O malbec meio que quase desaparece, e durante todo esse tempo ele é amplamente plantado na Argentina e simplesmente se adapta bem”, afirma Catena. A resiliência da uva era notável. “Ela tem sistemas radiculares profundos. Temos solos muito pobres. Temos um clima muito seco. O malbec, na verdade, consegue se sair bem em muitas partes da Argentina, mesmo em climas mais quentes ou mais frios.”
A Argentina produz aproximadamente 75% de todo o malbec do mundo, sendo a maior parte cultivada em Mendoza. A uva continua sendo a variedade tinta mais plantada no país, representando 38,6% dos 224.707 hectares (555.263 acres) de vinhedos. Somente em 2023, a Argentina colheu mais de 323 mil toneladas de malbec, reforçando sua liderança tanto no mercado doméstico quanto no internacional.
O sucesso do malbec na Argentina se deve não apenas às condições favoráveis de cultivo, mas também à forma como foi propagado. Diferentemente dos produtores europeus, que passaram a adotar a seleção clonal—usando mudas geneticamente idênticas—, os viticultores argentinos continuaram utilizando a seleção massal tradicional, preservando uma gama mais ampla de material genético.
“Nós nunca realmente aderimos à revolução clonal”, diz Catena. “Em parte por causa do isolamento econômico e político da Argentina. Em parte porque era muito caro comprar esses clones, e em parte porque não precisávamos enxertar.”
O resultado é que 90% dos vinhedos argentinos são geneticamente diversos e não enxertados. “Acho que eles são mais resilientes porque, quando ocorre um fenômeno climático, algumas uvas estão em uma fase, outras em outra, e você acaba sendo menos afetado”, afirma ela.
A indústria vinícola da Argentina enfrentou uma queda significativa em 2023, com a produção atingindo o menor nível em 60 anos—8,8 milhões de hectolitros—, uma redução de 23% em relação ao ano anterior, causada por geadas na primavera e tempestades de granizo. As previsões iniciais da Catena Zapata para a safra de 2024 indicam uma recuperação, com expectativa de colheita ao menos 25% maior que a de 2023.
As temperaturas mais baixas atrasaram a colheita entre 10 e 14 dias, favorecendo uma maturação mais lenta e um melhor equilíbrio. Apesar da volatilidade, as exportações continuam fortes. O Reino Unido e os Estados Unidos seguem como os principais mercados internacionais, respondendo por 26% e 20%, respectivamente, das exportações de vinhos tranquilos da Argentina.
As implicações vão além da Argentina. “Acho que isso é algo que precisa ser feito na Europa, na América do Norte”, diz Catena. “Ainda existem alguns vinhedos que mantêm diversidade genética e, se não fizermos isso, vamos perdê-la.”
A diversidade genética, ela argumenta, pode ser uma das ferramentas mais importantes da viticultura diante das mudanças climáticas. “Existem genes que, uma vez perdidos, estão perdidos—e podem conter algum segredo para o futuro.”
Essa diversidade também se reflete na taça. “Um tem um pouco mais de acidez, o outro um pouco mais de açúcar. Um tem mais de um aroma, outro de outro”, diz Catena. “Faz sentido que um vinho feito com esse tipo de diversidade seja mais interessante.”
A história do malbec, contada no rótulo de uma garrafa específica, ilustra sua sobrevivência. O malbec argentino da Catena Zapata apresenta quatro mulheres simbólicas: Leonor da Aquitânia, a Imigrante, a Filoxera e o Renascimento do malbec.
“Foi minha irmã [Adrianna Catena] quem teve a ideia de contar a história por meio dessas quatro mulheres”, diz Catena. “Ela se inspirou em uma forma de arte, as Alegorias dos Continentes, em que cada continente era retratado por uma mulher.”
A narrativa visual destaca como o malbec já foi protagonista na França, quase desapareceu após a filoxera e ressurgiu em um novo hemisfério. “É a uva com a história mais interessante no mundo das variedades porque quase foi extinta várias vezes”, afirma Catena.
O ressurgimento da uva na Argentina foi gradual. “Quando começamos a exportar malbec no início dos anos 1990, as pessoas nunca tinham ouvido falar de malbec. Talvez tivessem estudado. Mas não tinham provado”, diz Catena. “Tive compradores que me disseram: ‘Olha, isso é delicioso’, mas não posso vender porque ninguém sabe o que é.”
O reconhecimento veio aos poucos, impulsionado pelo próprio vinho. “Para mim, a razão pela qual o malbec se saiu bem foi principalmente porque tem um bom sabor. Ele conquistou as pessoas pelo paladar”, diz ela.
Catena acredita que o futuro do malbec está em compreender melhor seu potencial de envelhecimento e sua amplitude. “Acho que o próximo capítulo é as pessoas entenderem como um malbec bem feito, de terroirs específicos, pode envelhecer lindamente”, afirma. “A capacidade de envelhecimento é algo muito importante para o futuro do malbec.”
* Rachel King é colaboradora da Forbes EUA, cobrindo luxo, vinhos, destilados, viagens e tecnologia. Ela também escreveu para o Observer, Robb Report, Fortune, Fast Company, Insider, CNET e CBS News.