“A gente estava na onda do Michael Jackson, toda a criançada queria dançar Michael Jackson. Quando eles viram a gente na rua tentando imitar o Michael Jackson, eles falaram ‘não dança isso aí, dança break, a nova onda é o break’. A gente começou a treinar com eles e foi entendendo a cultura hip-hop. Tinha um filme no cinema chamado Beat Street, que influenciou todo mundo e mostrou o que tinha dentro da cultura hip-hop: o breakdance, o grafite, o rap e o djing. A gente deu sorte de nascer no Cambuci, um dos berços do hip-hop no Brasil. Tivemos contato direto com isso. Não por moda, mas por estilo de vida mesmo, como uma maneira de brincar. A gente era moleque, queria girar de cabeça. A gente queria fazer moinho.” Moinho é um dos movimentos clássicos do break: costas no chão e pernas ao alto, o dançarino gira como um moinho humano a todo vapor.
Foi nas calçadas do bairro do Cambuci e na frente da estação de metrô São Bento que os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo deram seus primeiros rodopios. Além de dançar, inclusive em festinhas de aniversário, os gêmeos (nascidos em 29 de março de 1974) discotecavam entre versos afiados de combate, esvaziavam latas de spray em muros da cidade
e mandavam rima em festivais de rap, como o do parque da Aclimação e o da TV Gazeta, na Avenida Paulista. “Era 1986, 1987, estava todo mundo começando: o DJ Hum, o Thaíde, o MC Bronks…”
A despeito do dom nas quatro pernas do hip-hop, foi no grafite que a dupla soltou a mão. Os dois culpam Arnaldo, o irmão 11 anos mais velho. “Tivemos uma infância muito criativa. A gente se acostumou a ver o Arnaldo desenhar ouvindo Pink Floyd e Led Zeppelin de madrugada. Ele colocou a gente para desenhar desde o berço. Nosso pai [Walter Pandolfo] é químico, mas também desenhava com a gente – carrinho de bombeiros, essas coisas. Meu avô, lituano, ouvia ‘A ópera’. Minha mãe [Margarida Kanciukaitis], filha dele, bordava e chegou a expor na bienal têxtil de Kaunas, na Lituânia. A gente não precisava de brinquedo para se divertir, só de papel e caneta. Desenhar era a nossa forma preferida de brincar, de mergulhar no nosso universo. Os traços se encontravam naturalmente no papel. Porque o desenho é nosso lado espiritual. De antes do nascimento.”
Quando os dois moleques univitelinos e criados a canetinha trombaram com a cultura hip-hop, os desenhos pularam do papel para os muros. Grafite em essência: na calada da noite, ilegal e sob o olhar torto de pedestres e o cassetete da polícia. Viajaram pelos quatro cantos da cidade, deixando digitais inconfundíveis em cumes de arranha-céus, muros, paredes, trens e postes. “Muita gente passou a ver, conhecer e se interessar pelo nosso trabalho nas ruas. Mas, apesar de ser uma época com pouco intercâmbio, nossas primeiras exposições foram lá fora. Não tinha internet, nada. Como tudo era em revistas e livros, a gente começou a fazer uma revista, a ‘Fiz’. Saía na rua fotografando tudo que via, publicava e mandava lá para fora. Eles faziam a mesma coisa.”
Foi assim que grafiteiros do Hemisfério Norte descobriram o Brasil e passaram a desembarcar em São Paulo, curiosos com o estilo dos artistas que começavam a rabiscar e colorir a cidade. “Em 1993 ou 1994, o [norte-americano] Barry McGee veio fazer um intercâmbio cultural no [museu] Lasar Segall e viu um trabalho nosso na Paulista, lá embaixo, sabe? Quando ele se deu conta da grandeza do grafite brasileiro, fez uma matéria na [revista] ’12 Oz Prophet’. Começamos a ficar conhecidos lá fora, até que, anos depois, em 1998, o Loomit e o Peter [Michalski], dois artistas alemães, vieram para o Brasil pintar com a gente. Do encontro nasceu nossa primeira exposição na Europa (na Alemanha), e, a participação no Isart, um festival de grafite de Munique, onde conhecemos artistas do mundo inteiro, inclusive muitos que eram nossa fonte de inspiração, como o [francês] Mode 2, um dos maiores.”
Desde então, os gêmeos rodopiaram como moinhos pelo planeta. Sem abandonar as bombings – saídas para grafitar na rua –, renderam-se sem pudor (porque não há por que tê-lo) aos convites para colorir paredes mundo afora. Seus ilustres seres amarelos (e de outras cores) com roupas estampadas em cenários lisérgicos e oníricos tomaram conta de espaços públicos em mais de 60 países – Portugal, Alemanha, Suécia, Austrália, Cuba, Canadá, Estados Unidos…
A arte de Gustavo e Otávio virou notícia quando foi parar na mansão de Johnny Depp em Los Angeles, no porco inflável dos shows de Roger Waters, no castelo de um milionário na Escócia, nos silos agrícolas em Vancouver e em outros rincões estranhos. Os irmãos, também sem constrangimento, migraram dos muros das ruas para as paredes de museus e galerias de respeito. Na lista, Tate Modern (Londres), MoCA (Los Angeles), Mot (Tóquio), Hamburger Bahnhof (Berlim), Fortes D’Aloia & Gabriel (São Paulo) e MAM (São Paulo).
EXPOSIÇÃO NA PINACOTECA
Aos 46 anos, sem filhos, barbas soltas, cabelos grisalhos, avessos a qualquer droga e morando em apartamentos vizinhos em um prédio no centro da capital paulista, osgemeos – com letras minúsculas, tudo junto e sem acento, como eles assinam – estão prestes a abrir a maior mostra da carreira. Entre desenhos, pinturas e esculturas, mais de 600 obras já estão a postos nas sete salas e no pátio externo e no imponente octógono da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
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“Todas as exposições que fizemos são importantes – a da Faap, a da Fortes, todas –, mas a importância dessa é contar nossa trajetória. Tivemos a ideia com o Jochen [Volz, curador da mostra e diretor geral da Pinacoteca] de buscar nossos primeiros desenhos, de quando a gente tinha 4 anos. Queremos mostrar como tudo começou, as fases e as transformações até chegar aonde chegou. Vem daí o nome da exposição: Segredos. A gente vai mostrar para essa geração nova que a essência do nosso trabalho, das nossas conquistas, é o nosso estilo. Atingir a autenticidade é a base de tudo que a gente conseguiu.” A exposição seria de 28 de março a 3 de agosto, mas foi postergada por causa da pandemia da Covid-19 e ainda não tem nova data.
Para não restarem dúvidas, os irmãos esclarecem: “A exposição na Pinacoteca não tem nada a ver com grafite ou street art. A gente ama grafite. O grafite é especial, só tem essa força e essa energia a partir do momento que está na rua, de forma ilegal. Quase 90% do que a gente pintou na rua não existe mais. É isso que dá a atmosfera mágica do grafite, só quem faz entende. Mas são dois mundos separados: o universo da rua é um, o universo de exposição é outro.”
Além dos desenhos supracitados – feitos na infância sob a tutela de Arnaldo – e dos preciosos caderninhos de anotações que os irmãos levam pra lá e pra cá, outros trabalhos inéditos expostos na Pinacoteca são as criações da época em que os gêmeos preferiram estudar em casa a fazer faculdade. “Na adolescência, as coisas aconteciam sem muita perspectiva. A gente queria desenhar e precisava trabalhar para ajudar em casa. Em uma funilaria, onde a gente conseguia tinta, em lanchonete, em locadora, como boy em banco… A gente fez um colegial técnico de desenho e comunicação na Carlos de Campos, no Brás. Ali conhecemos o Speto [grafiteiro da primeira leva], que trabalhava como ilustrador para revistas. Ele incentivou, e a gente viu uma possibilidade de viver de desenhar. Não sei como veio o primeiro dinheiro, se com ilustração ou se pintando a porta de uma loja para poder comprar tinta e pintar na rua.”
Mas e a história da faculdade? “Depois do Carlos de Campos, a gente teria que entrar na faculdade. Não passou na nossa cabeça ser engenheiro, médico, nada. A gente queria desenhar e decidiu fazer a nossa própria faculdade, em casa, aqui no Cambuci. Nossos pais sempre entenderam que esse era nosso universo. Chegamos para eles e falamos: ‘A gente vai fazer nossa faculdade em casa, vai estudar e viver disso. Vai desenhar e levar a vida como artista, como ilustrador, como pintor. É nisso que a gente acredita’. Então a gente transformou o quarto em um estúdio de desenho e se fechou por quatro anos para estudar. Experimentamos todo tipo de pintura e de escultura, todos os estilos, todas as técnicas. Óleo, aquarela, aerografia, pastel, guache, spray…”
O autodidatismo levado a sério e colocado em prática, além do convívio precoce com o grafite, ensinou cedo à dupla uma das regras morais entre os artistas de rua: não copiar o estilo do outro, ter personalidade. “Essa foi uma preocupação nossa, ter uma característica. Na cultura hip-hop você tem que ter seu estilo, sua originalidade para se diferenciar. O estudo das letras, dos personagens, de não poder copiar o outro. Se copiasse tinha que dar crédito, dizer que o cara te influenciou. Caso contrário, você era chamado de toy [gíria para quem grafita apenas por moda].”
Dessa busca por autenticidade, pariram Tritrez, como eles batizaram o universo retratado em suas obras – um blend de Nordeste brasileiro com hip-hop norte-americano, de urbano com indígena, de melancolia com felicidade, de calma com ativismo; um mundo fantástico com bicicletas, estrelas, música, bichos, barcos, balões e bugigangas coloridas. “É tudo muito lúdico. A gente deixa aberto para as pessoas interpretarem, mas esse universo é muito importante, muito pessoal, muito sério. É como se a gente desenhasse nosso sonho todo dia.”
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Para Danilo Oliveira, artista plástico e professor de história da arte, o trabalho da dupla parte de um universo muito particular. “É possível observar elementos que remetem à cultura popular brasileira, ao artesanato, o balão de São João, as brincadeiras infantis brasileiras, a colcha de retalhos, a roupa remendada. Alguns personagens denotam certa precariedade, certa melancolia, solidão, e muitos têm uma potência de acontecimentos relacionada com essa memória coletiva.” Há quem veja os seres vestidos com roupas de estampas coloridas criados pelos irmãos como parte da iconografia da arte brasileira, tal como as bandeirinhas de Volpi e as mulatas de Di Cavalcanti. Ou até, sob um olhar estrangeiro, os girassóis de Van Gogh e os corpos volumosos de Botero. Exagero?
“A gente não questiona. A gente pensa para a frente, o que vem a seguir, o próximo desenho, a próxima instalação, o próximo mural. Não criamos nosso estilo para ser comparado a ninguém ou para vender mais. Tudo o que a gente desenha, sem exceção, a gente gosta, tem muito carinho, muito apego, até ciúmes. Quem mais gosta da nossa obra somos nós. Então o que mais importa é o valor espiritual e não por quanto a obra foi vendida. O mercado de arte nunca foi uma preocupação para a gente.”
Seja como for, querendo ou não, os gêmeos circulam pelo mercado de arte contemporânea há quase duas décadas. Talvez o lance inicial tenha sido na exposição na Deitch Projects, do marchand Jeffrey Deitch, em Nova York, em março de 2005. Deitch representa ou representou, entre outros gigantes, Jean-Michel Basquiat, Jeff Koons, Keith Haring e o já citado Barry McGee. Foi o catálogo dessa exposição que fez crescer os olhos da Fortes D’Aloia & Gabriel, galeria de São Paulo, que, ao lado da Lehman Maupin, de Nova York, representa os irmãos.
Alexandre Gabriel, sócio da Fortes, conta que ficou impressionado ao ver o trabalho da dupla no catálogo. “Era uma expressão fora da arte contemporânea tradicional, de muita qualidade, e que já estava sendo absorvida fora do Brasil. Nosso interesse inicial foi absorver esse universo mais pop e atrair uma visitação de outra natureza, um público que não é apenas de arte. Quando fizemos a exposição de 2006 [considerada a primeira grande mostra individual no Brasil de um artista vindo das ruas], o retorno foi muito maior do que o imaginado. Lotou todos os dias. Tivemos que adiar o término por duas semanas, e no último dia, um sábado, precisei fechar às nove da noite, distribuindo senha com gente na fila brigando para entrar.”
Também querendo ou não, os irmãos estão com o pé de meia feito. Segundo Gabriel, as obras da dupla custam a partir de R$ 250 mil e podem ultrapassar R$ 1,2 milhão. Há quem fale que o valor esteja muito acima desse patamar. “Nosso valor em dinheiro não importa, não se compara com o lado espiritual dos nossos desenhos. É muito bom fazer e viver daquilo que você gosta. Todo mundo tem esse sonho, de ter prazer e ser remunerado por isso. Mas o mais importante é saber controlar isso dentro de você. O valor do seu trabalho não é apenas o mercado da arte que coloca, mas é como esse valor foi construído. Existe uma trajetória, uma construção. Nós fizemos da nossa maneira, e foi 100% com o coração. Independentemente de viajar o mundo inteiro, de fazer exposição, de ganhar dinheiro, de ser conhecido e de ser famoso, desenhar é uma necessidade, um prazer, uma paixão que começou, a gente não esquece, aqui no Cambuci. A gente veio do cenário underground e conseguiu chegar onde chegou. Esse é o maior valor que a gente tem.”
Veja, na galeria de fotos abaixo, obras dos gêmeos Gustavo e Otávio Pandolfo pelo mundo:
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Divulgação Mural na 14th Street, em Nova York (2017)
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Divulgação Spray sobre foto da norte-americana Martha Cooper (2016)
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Divulgação A dupla em ação na fachada da Hangar Bicocca, em Milão (2016)
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Divulgação O Beijo (2016), obra com equipamentos mecânicos e instrumentos musicais que estará na exposição da Pinacoteca
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Divulgação Um dos trabalhos preferidas da dupla: bonecos pintados em silos de 20 metros na Vancouver Biennale (2014)
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Ka-man Tse As obras dos gêmeos em vídeos exibidos na Times Square, em Nova York (2015)
Mural na 14th Street, em Nova York (2017)
Reportagem publicada na edição 77, lançada em maio de 2020
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