No abafado calor do fim de agosto em Ohio, James Watt, cofundador da BrewDog, estava em um palco diante de 4 mil de seus acionistas para dar algumas notícias.
A cerveja mais vendida da empresa nos EUA, uma india pale ale (IPA) chamada Elvis Juice, estava sob ameaça judicial. Advogados que representam o espólio de Elvis Presley haviam enviado uma carta a Watt e seu cofundador, Martin Dickie, dizendo que, se continuassem a usar o nome “Elvis” na cerveja, teriam de pagar uma taxa de licença por cada lata, caixa, garrafa e barril que vendessem. Então, Watt e Dickie – apresentados aos investidores como os “Mestres do Caos” por um mestre de cerimônias – fizeram o quê? Mudaram legalmente de nome para Elvis, chegando a trocar seus endereços de e-mail, carteiras de motorista, etc. Mas não ficou só nisso. Depois, enviaram de volta uma carta, que Watt leu em voz alta.
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“Prezado chefão, lamentamos que você tenha a Mente Desconfiada [no original em inglês, Suspicious Minds, sucesso de Elvis] e esteja Todo Abalado [All Shook Up] com a nossa nova cerveja. Não somos do tipo que Vem Fácil e Vai Fácil [Easy Come, Easy Go] e achamos que agora é hora de Um Pouco Menos Conversa [A Little Less Conversation].
Estamos meio que presos em uma armadilha [‘caught in a trap’, trecho da letra de Suspicious Minds], então, na tentativa de consertar isso [Patch It Up] e ressaltar nosso Amor Ardente [Burning Love], nós dois mudamos de nome para Elvis. Você poderia agora, por favor, nos pagar uma taxa de licença para usar nosso nome em todas as suas músicas? Com amor, Elvis”, leu Watt com seu sotaque escocês, sob aplausos estrondosos.
São façanhas como essa – e uma propensão a violar as regras – que transformaram a BrewDog, sediada na cidade escocesa de Aberdeenshire, em uma marca cult. Um sinal da devoção de seus seguidores: em torno de 22% da empresa de capital fechado pertence a 120 mil investidores bebedores de cerveja que compraram ações no site da BrewDog por meio de um programa chamado “Equity for Punks” (algo como “Ações para Punks”). Com as receitas de 2019 tendendo a
chegar a US$ 300 milhões (contra US$ 211 milhões em 2018), a BrewDog está avaliada em cerca de US$ 2 bilhões; os 24% de participação de Watt na empresa valem por volta de US$ 480 milhões; os 20% de Dickie, em torno de US$ 400 milhões.
Contudo, por trás desses números impressionantes há um desafio: a BrewDog é muito maior que grande parte das 7,5 mil cervejarias artesanais dos Estados Unidos, a maioria das quais produz menos de mil barris de cerveja por ano. Mas ela é peixe pequeno em comparação com megacervejarias como a Anheuser-Busch InBev, que faturou US$ 55 bilhões em 2018 e controla mais de 26% do mercado mundial dessa bebida, segundo a firma de pesquisa Euromonitor. Ela também
empalidece perante a Heineken, que vendeu US$ 25 bilhões em cerveja em 2018. Ser mediano em um mercado bifurcado é desconfortável: é impossível competir com as grandes em preço, marketing ou distribuição – mas você precisa vender muito mais cerveja do que uma microcervejaria. Além disso, você é um alvo interessante para aquisição.
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As gigantes mundiais da cerveja passaram a última década fazendo consolidações e aquisições de forma estratégica. Excluída a fusão de US$ 52 bilhões que a criou, a Anheuser-Busch InBev gastou mais de US$ 128 bilhões em aquisições desde 2008, o que inclui a enorme aquisição da SABMiller por US$ 107 bilhões em 2016. No entanto, ela também vêm comprando muitas cervejarias de porte pequeno a médio, como a 10 Barrel (2014), a Elysian (2015) e a Goose Island (2011). Desde 2011, a Heineken gastou cerca de US$ 9 bilhões em aquisições, como a compra da californiana Lagunitas em 2017 por valor não revelado.
A BrewDog, que Watt e Dickie (ambos com 37 anos) fundaram no nordeste da Escócia em 2007, cresceu para quatro cervejarias e 100 bares em todo o mundo. Mas a empresa sabe que não pode sobreviver de bebidas, apenas. Enquanto assistem à aquisição de mais e mais concorrentes, Watt e Dickie, na esperança de permanecerem independentes até poderem abrir o capital, estão se voltando a negócios com margens mais altas. Nos últimos dois anos, a dupla lançou um hotel, uma companhia aérea de fretamento, uma destilaria e um serviço de streaming semelhante ao Netflix, no qual os espectadores podem assistir a mais de 100 horas de conteúdo sobre bebidas e estilo de vida.
A arma secreta deles? Os mesmos punks da cerveja que compraram ações da BrewDog online. Não apenas os recursos angariados – aproximadamente US$ 95 milhões, até o momento – têm ajudado a financiar a expansão da empresa, como esses fãs desvairados também estão fazendo divulgação e gerando negócios.
“É um modelo de negócios incrível porque não os vemos como investidores”, diz Watt. “Eles são defensores, são embaixadores, estão nessa jornada conosco. São o coração e a alma do nosso negócio.”
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Watt e Dickie cresceram em uma pequena vila de pescadores no nordeste da Escócia chamada Fraserburgh e são inseparáveis desde a infância. Watt estudou direito na Universidade de Edimburgo, mas era rebelde demais para uma carreira jurídica. Após a formatura, aguentou ficar engravatado apenas duas semanas, antes de sair do emprego e trocar seus ternos novos por botas de pescador. Passou os seis anos seguintes pescando hadoques e lagostas em um barco de pesca do Atlântico Norte – e produzindo cervejas caseiras quando estava em terra.
Dickie teve uma conduta mais ponderada. Aos 12 anos, encontrou um kit de produção de cerveja no sótão dos pais e, junto com o pai, começou a fazer experimentos com diversos lúpulos frescos. Juntou-se a Watt na Universidade de Edimburgo, onde estudou destilação e, depois de se formar, em 2004, passou a trabalhar como cervejeiro na Thornbridge Brewery, na Inglaterra. Quando Watt o visitava periodicamente, os dois preparavam suas próprias cervejas,
principalmente imperial stouts de alto teor alcoólico e IPAs ao estilo norte-americano.
Em 2006, os dois tiveram a oportunidade de se encontrar com o saudoso Michael Jackson, escritor britânico especializado em cerveja e santo padroeiro do renascimento dessa bebida nos anos 1980. Depois de provar as cervejas caseiras deles, Jackson lhes disse para largar os empregos e começar a produzir em período integral.
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Watts conta que eles juntaram US$ 39 mil de suas economias e tomaram um empréstimo bancário de US$ 26 mil. “Alugamos um galpão abandonado, distópico, caindo aos pedaços, do conselho local. A gente pedia, tomava emprestado, trocava e produzia”, diz ele. A dupla não tinha dinheiro para os tanques tradicionais de aço inoxidável e, no lugar deles, usava tanques plásticos de água comprados nas lojas de jardinagem locais.
Mas eles perseveraram e, em abril de 2007, a BrewDog finalizou seu primeiro lote de cerveja. O momento não podia ser pior. Um ano depois, veio a Grande Recessão. Ninguém queria comprar uma bebida desconhecida, amarga e lupulada.
“Tivemos que voltar a morar com os pais porque não conseguíamos nos bancar, o que era divertido aos 24 anos. E nós dois fazíamos de tudo, desde encher garrafas manualmente até dormir sobre sacos de malte no chão”, relata Watt.
Um sinal positivo: em 2008, a BrewDog venceu um concurso de cervejas patrocinado pela Tesco, gigante britânica dos supermercados. A varejista os abordou com um plano de colocar quatro cervejas deles em mais de 400 lojas em todo o Reino Unido e vender cerca de 2 mil caixas por semana. “Eu fiquei lá, sentado, com a minha melhor expressão indiferente, sem mencionar nada sobre o fato de sermos dois caras e um cachorro enchendo garrafas à mão”, diz Watt.
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Com mais empréstimos bancários e alguma renda que Watt obtinha ao pescar em meio período, a BrewDog decolou. Em 2011, a empresa parecia estável o suficiente para Watt parar de trabalhar como pescador. Meses depois, a Forbes incluiu Watt e Dickie em sua primeira lista 30 Under 30.
Logo, a demanda da cerveja deles estava alta demais para ser atendida e, tendo esgotado todas as outras opções de custeio, a dupla criou seu modelo de financiamento Equity for Punks em 2009. Tendo passado pelos mesmos processos regulamentares e aprobatórios que são exigidos das empresas de capital aberto, a BrewDog conseguiu financiar legalmente sua cervejaria por crowdfunding – apesar de essa ter sido uma jogada que cinco escritórios de advocacia e bancos disseram a eles que os faria fechar as portas. Além de passarem a ser donos de parte da empresa, esses acionistas receberiam benefícios como um desconto vitalício de 10% nos bares BrewDog e associação ao clube mensal de cerveja da BrewDog.
Em sua primeira rodada do Equity for Punks, a BrewDog levantou US$ 975 mil de cerca de 1.330 investidores. O programa, atualmente na sexta rodada, teve seu maior sucesso quando arrecadou US$ 34 milhões de 70 mil investidores no início de 2018.
Os primeiros investidores se saíram bem. Daniel Fetter, um enfermeiro de Nashville, Tennessee, investiu inicialmente US$ 10 mil na primeira rodada do Equity for Punks, em 2010. Hoje, ele diz que o investimento vale cerca de US$ 100 mil – retorno superior a 900% (no mesmo período, o S&P 500 retornou cerca de 185%). Todavia, esses retornos descomunais provavelmente são coisa do passado. Jonny Forsyth, analista da firma de pesquisa de mercado londrina Mintel, diz que agora há muitos punks acionistas, e essa diluição faz com que seja difícil os novos investidores obterem um lucro enorme.
Em abril de 2017, a BrewDog recebeu seu primeiro aporte de capital de risco. A TSG Consumer Partners, sediada em São Francisco, investiu US$ 264 milhões na empresa, adquirindo uma participação de 22,7%. Apesar de os investidores do crowdfunding da BrewDog terem recebido a oportunidade de vender suas ações nessa transação, apenas 2% o fizeram, diz Watts.
Nathan Greene, consultor da firma de dados Beverage Marketing Corporation, diz que o crescimento da BrewDog nos EUA foi “meteórico”. Ela passou da produção de 10 mil barris em 2017 para o triplo disso em 2018 e está a caminho de dobrar novamente em 2019, afirma ele. Isso faria dela uma das 50 maiores cervejarias artesanais em termos de volume, segundo ele. (Watt diz que os negócios nos EUA geraram um faturamento de US$ 28 milhões em 2019). “Eles passaram de minúsculos para uma potência rapidamente”, comenta Greene. “Eu arriscaria dizer que isso tem muito a ver com o modelo de crowdfunding.”
Ainda assim, como um todo, o mercado norte-americano de cerveja, de US$ 115 bilhões, está crescendo a uma taxa de apenas 2% das vendas ao ano, aproximadamente, e pode ser difícil a BrewDog manter o ritmo. “Existem tantas marcas boas nos EUA que são mais consagradas do que eles, que fica difícil imaginá-los fazendo uma diferença no mercado”, diz Forsyth, da firma de pesquisa Mintel.
Para ajudar a combater isso, Watt e Dickie vêm se permitindo façanhas de marketing às vezes excessivas. Em 2012, os dois projetaram, nas Casas do Parlamento de Londres, uma imagem de si mesmos nus, a não ser por uma caixa de cerveja como cobertura. Em 2018, a fim de chamarem atenção para seu segundo programa Equity for Punks nos EUA, eles fretaram um helicóptero para sobrevoarem Wall Street. Em um ato de gosto duvidoso, jogaram lá de cima, de paraquedas, gatos empalhados para zombar do estereotipado “banqueiro ‘gato gordo’ de Wall Street” e de seus modelos de financiamento batidos, institucionais. Eles também criam burburinho fabricando pequenos lotes de cerveja em lugares não convencionais: um voo da British Airways a 40 mil pés de altitude, uma caminhonete Ford F-350 rodando a 150 quilômetros por hora no circuito Dover International Speedway de Delaware e um veleiro no Porto de Boston com o bilionário Jim Koch, da cerveja Samuel Adams.
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Greene diz que o caráter acrobático da empresa faz com que ela corra o risco de ser “mais uma moda passageira do que um sucesso arraigado”. Algo mais firme: os primeiros resultados das atividades alternativas da BrewDog são animadores. O hotel de cerveja em Ohio, com comodidades como geladeiras de cerveja no banheiro e bicas de cerveja
nos quartos, tem mantido frequentemente uma taxa de ocupação de 82% (em comparação com 68% de um hotel típico da região de Columbus), segundo Watt, e entrou na lista dos 100 “melhores lugares” de 2019 publicada pela revista Time. Quanto ao serviço de streaming, Watt e Dickie tentaram inicialmente estabelecer o preço em cerca de US$ 3 por mês. Depois de uma fraca recepção, tornaram o serviço gratuito em dezembro e, de lá para cá, conquistaram mais de 5 milhões de espectadores.
Embora Forsyth veja a diversificação como algo bom, ele alerta para as dores do crescimento. “O perigo é o fato de eles estarem tentando se expandir para tantas áreas diferentes, a ponto de desviarem os olhos do negócio principal, que é a cerveja”, diz ele. “Eles entendem mesmo de cerveja, mas, se entendem dos outros [modelos de negócios], não tenho tanta certeza.”
Watt não dá atenção aos céticos. Ao contrário dos gigantes da cerveja, ele não tem receio de fazer jogadas ousadas.
“Não dou a mínima para o que pensam. Nós éramos dois garotos do nordeste da Escócia que começaram isto do nada, então somos muito espontâneos”, diz ele. “Mantemos nossos princípios, defendemos as coisas nas quais acreditamos. Algumas pessoas nos adoram, outras não gostam de nós, e estamos totalmente tranquilos com isso.”
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