Se tudo correr conforme o planejado, os astronautas veteranos da Nasa Bob Behnken e Doug Hurley vão decolar do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, na manhã de hoje (27). Menos de um dia depois, eles chegarão à Estação Espacial Internacional. Será o primeiro voo orbital tripulado saindo de solo norte-americano desde 2011.
Ainda mais significativo: é a primeira vez que os astronautas viajam para orbitar uma espaçonave de propriedade privada (as acrobacias anteriores do turismo espacial foram decididamente sub-orbitais ou fornecidas pelo governo russo). Behnken e Hurley vão pegar uma carona na cápsula Dragon, lançada por um foguete Falcon 9, projetado e fabricado pela SpaceX, fundada por Elon Musk. A dupla será transportada até a plataforma de lançamento em carros elétricos fabricados pela Tesla.
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É um momento triunfante para Musk e sua empresa com sede em Hawthrone, na Califórnia. Mas isso não é apenas uma vitória para um bilionário e uma empresa. É o ápice de um esforço de décadas para transformar o espaço em uma nova fronteira do empreendedorismo.
“Essa é a mesma emoção que senti quando criança durante o pouso da espaçonave Apollo na Lua”, diz Tom Zelibor, almirante aposentado e CEO da Space Foundation, uma organização sem fins lucrativos que defende a exploração espacial. “São oportunidades inspiradoras para pessoas que podem não ter pensado nisso antes.”
Durante o programa Apollo, colocar Neil Armstrong na Lua não era apenas uma questão de tecnologia ou ciência. Era também o triunfo do capitalismo sobre o comunismo. Ou assim foi a retórica. A realidade era diferente. Sim, o programa Apollo foi construído por centenas de empresas privadas. Mas seu desenvolvimento e direção foram centralizados pelo governo federal, que gastou cerca de US$ 152 bilhões nos valores atuais para colocar um homem na Lua. O espaço seria o domínio exclusivo do grande governo através do programa de ônibus espaciais na década de 1980.
Isso foi irritante para muitos entusiastas do espaço, cuja paixão foi nutrida em histórias de ficção científica por Robert Heinlein, que retratou um futuro no espaço dirigido por capitalistas. Quando a Guerra Fria finalmente terminou em 1991, as oportunidades empresariais na fronteira final começaram a se abrir. Ironicamente, dentro da antiga União Soviética.
“Foram os russos que deram os primeiros passos nos serviços comerciais no espaço”, diz Jeffrey Manber, empresário de longa data no espaço e CEO da Nanoracks. “Por causa do colapso econômico, eles tomaram a decisão de que seus mercados de classe mundial (os aviões da Aeroflot, o Ballet Bolshoi ou o espaço) precisariam andar com as próprias pernas.”
Manber atuou no governo Reagan na década de 1980, onde ajudou a estabelecer o “Office of Space Commerce” (Escritório de comércio espacial). Nesse papel, ele ajudou a garantir o primeiro contrato comercial entre a agência espacial soviética e uma empresa dos EUA. Seu trabalho na Rússia continuou depois que a União Soviética caiu, primeiro trabalhando com a empresa espacial russa Energia, a partir de 1992.
O surgimento de empresas espaciais russas, que estavam construindo foguetes duráveis a preços razoáveis, ajudou a energizar o mercado. Companhias europeias e americanas, mimadas pelo complexo industrial militar, atacaram através de seus governos, que limitaram o número de lançamentos russos. Um artigo de 1993 da Forbes, que descreve a resposta à indústria russa de foguetes, comenta ironicamente: “A livre concorrência não é boa? Não, para os membros do cartel não é.”
Em 2000, Manber se tornou o primeiro CEO da MirCorp, uma empresa com sede na Holanda que assumiu as operações da estação espacial russa Mir. Embora seu mandato tenha sido curto (a estação espacial foi tirada de órbita pelo governo russo em março de 2001), alcançou vários feitos inéditos: o primeiro reabastecimento de carga com financiamento privado, a primeira missão tripulada com financiamento privado e o primeiro contrato de turismo espacial.
Enquanto isso, os EUA viram uma pequena explosão de empreendedores espaciais fundando empresas de foguetes. Esses esforços, no entanto, frequentemente encontraram resistência dos formuladores de políticas e da indústria tradicional. A maioria terminou em fracasso. “Havia muitas barreiras políticas e culturais” na aceitação do empreendedorismo espacial nos Estados Unidos na época, diz Manber.
Um exemplo notável desses esforços veio do banqueiro e bilionário Andrew Beal, que fundou uma empresa aeroespacial em 1996 com o objetivo de produzir foguetes reutilizáveis e de baixo custo. “É um grande tiro no escuro”, disse ele à Forbes em abril de 2000. Ele estava certo. A sorte acabou seis meses depois, quando Beal fechou a empresa, citando a impossibilidade de competir com a indústria aeroespacial subsidiada pelo governo.
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Foi nesse ambiente que Elon Musk fundou a SpaceX em 2003, com a ajuda de dinheiro com a venda de Zip2, que custou US$ 307 milhões, a primeira empresa que ele cofundou, e com a venda de US$ 1,5 bilhão do PayPal. “Ficou claro que havia necessidade de um método confiável e de baixo custo para chegar ao espaço”, disse Musk à Forbes na época.
Uma parte essencial da estratégia inicial de Musk era colocar o governo do seu lado, diz Chad Anderson, cuja empresa de capital de risco, a Space Angels, de Nova York, investiu na SpaceX: “Antes da SpaceX, o governo era o principal cliente. Você precisava desse cliente para fazer as coisas funcionarem. Então, Elon Musk e a SpaceX fizeram um grande esforço para levar o governo a levá-los a sério.”
Musk revelou uma combinação de carisma e execução que lembra Howard Hughes. No final de 2003, por exemplo, Musk “lançou” o foguete Falcon 1 de sua empresa, colocando-o para atravessar o país em um caminhão. O modelo ficou estacionado em frente ao Smithsonian Air and Space Museum (museu localizado em Washington, D.C. e que mantém a maior coleção de aeronaves e naves espaciais do mundo). Mas isso foi depois de testar os motores e obter sucesso.
Outro marco para a indústria foi alcançado em 2004, quando a SpaceShipOne, uma espaçonave criada pelo engenheiro aeroespacial Burt Rutan e sua empresa Scaled Composites, realizou dois voos suborbitais bem-sucedidos. Isso permitiu à Rutan reivindicar o prêmio de US$ 10 milhões da competição Ansari XPRIZE, um incentivo oferecido para estimular o desenvolvimento de veículos espaciais privados. A tecnologia foi posteriormente licenciada por Sir Richard Branson para a Virgin Galactic, que visa levar turistas ao espaço ainda neste ano.
O entusiasmo pelos esforços espaciais privados começou a borbulhar mesmo em Washington D.C.. Em 2004, o Congresso aprovou uma legislação que ajudou a abrir um caminho regulatório para as empresas de lançamento comercial. Shelli Brunswick, COO da Space Foundation, que defende a exploração espacial, credita isso como uma base fundamental para o lançamento orbital da SpaceX nesta semana. “Ela se baseia na legislação certa, no financiamento certo, nas políticas corretas nos últimos 20 anos”, diz.
Em 2005, a Nasa começou a mudar a forma como fazia negócios com o advento do seu programa de Serviços de Transportes Orbitais Comerciais. Patrocinado pelo então administrador da Nasa, Mike Griffin, o programa mudou a maneira como a agência fazia negócios. Em vez de assumir a liderança em engenharia e design, a agência espacial simplesmente identificou as capacidades de transporte e convidou as empresas a oferecer lances para cumpri-las.
A SpaceX aproveitou a oportunidade, ganhando um contrato com a Nasa em 2006 que proporcionou US$ 278 milhões para desenvolver seu foguete Falcon 9, lançado com sucesso pela primeira vez em 2010. A empresa assinou um contrato separado de US$ 1,6 bilhão com a agência espacial em 2008 para enviar carga para a Estação Espacial Internacional, ação realizada em 2012, quando sua cápsula Dragon se tornou a primeira espaçonave particular a atracar na estação.
Uma das razões para esse sucesso, diz Anderson, da Space Angels, é que as empresas de espaçonaves tradicionais não prestaram muita atenção à oportunidade. “Os grandes empreiteiros de defesa não acharam que valesse a pena, porque os montantes eram muito pequenos”, diz ele. “Mas para a SpaceX, uma empresa jovem e apoiada por empreendedores, era uma grande quantia.”
A mudança cultural desencadeada pelo programa de carga comercial da Nasa ajudou a diminuir outras barreiras para os empreendedores espaciais. Jeffrey Manber, por exemplo, voltou à cena com uma nova empresa, a Nanoracks, que em 2010 instalou uma plataforma de pesquisa na Estação Espacial Internacional, permitindo que os clientes realizassem experimentos no espaço. Em 2014, instalou um sistema de implantação na estação que poderia ser usado para colocar pequenos satélites em órbita.
Com o passar da década, a SpaceX começou a oferecer serviços de lançamento para outros clientes comerciais, como empresas de telecomunicações, a preços drasticamente mais baixos que seus concorrentes (incluindo as empresas de foguetes russas). Com a SpaceX e a Nanoracks, o custo do espaço rapidamente se tornou drasticamente menor, abrindo novas oportunidades de negócios.
Um beneficiário dessas oportunidades foi a Planet, que implantou sua primeira constelação de pequenos satélites para capturar imagens da superfície da Terra para atividades como exploração de petróleo e gás em 2014. Os satélites foram lançados para a Estação Espacial Internacional em um foguete sob um contrato de carga comercial da Nasa e impulsionados para orbitar a partir do sistema de lançamentos da Nanoracks. A empresa sediada em San Francisco agora é avaliada em mais de US$ 2,2 bilhões, segundo a Pitchbook (empresa de dados focada no mercado privado).
Estimulados por esse sucesso e outros semelhantes, os investidores começaram a migrar para o setor espacial comercial. De acordo com um relatório da Space Angels, desde 2009, foram investidos mais de US$ 30 bilhões em mais de 530 empresas espaciais separadas. Existem vários unicórnios espaciais apoiados por empreendimentos, incluindo Planetet, SpaceX e a fabricante de foguetes com base em Los Angeles Rocket Lab.
O sucesso com a carga convenceu a Nasa a adotar uma abordagem orientada pelo mercado para retornar o voo espacial humano ao solo americano. “O setor espacial comercial realmente ganhou excelência em capacidade comercial e técnica”, diz Phil McAlister, diretor de voos espaciais comerciais da Nasa.
Em 2014, a Nasa concedeu contratos para voos espaciais comerciais tripulados a duas empresas: Boeing, a robusta empresa aeroespacial que trabalha com a Nasa desde os anos 1960, e a SpaceX. Combinados, os dois contratos valem em torno de US$ 6,8 bilhões. “Foi uma grande mudança na prestação de contas e responsabilidade para o setor privado, voltado para a velocidade e a relação custo-benefício. São coisas que a Nasa sabe da relevância, mas não estão realmente em nossas competências essenciais”, ri McAlister.
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Isso não significa que a Nasa esteja totalmente ativa no desenvolvimento das naves espaciais de qualquer empresa, diz McAlister. Mas ele vê isso como uma colaboração que combina a melhor experiência do governo com a do setor privado. Ele reconhece que nem sempre foi fácil isso acontecer.
“Foi uma grande mudança cultural para nós: dar um passo atrás e dizer que vamos dar parte desse controle ao setor privado”, diz ele. “E isso foi muito, muito difícil para a Nasa, porque sentíamos que éramos os especialistas nisso. Eu acho que esse foi o maior desafio desde o início.”
Para Jeffrey Manber, a SpaceX enviar astronautas ao espaço “é o ponto de exclamação” nas últimas décadas de empreendedorismo. “É isso que essa missão realmente trará de volta ao público americano e ao mundo”, diz ele. “Que o setor privado agora é um parceiro consolidado na abertura da fronteira do espaço.”
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