Com o slogan “a saúde dos ricos para os pobres”, o hospital Umberto Primo entraria para a história de São Paulo com o nome de Hospital e Maternidade Matarazzo. Foi inaugurado em 14 de agosto de 1904, no terreno de 27 mil metros quadrados que hoje fica entre as ruas São Carlos do Pinhal, Itapeva e alameda Rio Claro – embora sua semente remeta à criação da Societá Italiana de Beneficenza in San Paolo, em 1878. Por falta de recursos, no entanto, o início das obras – e o plano de atender os imigrantes italianos – teve que ser adiado até 1895.
Contando com fundos recolhidos de famílias que vieram da Velha Bota, como os Pignatari, Crespi, Falchi e, principalmente, os Matarazzo, o prédio começou a tomar a forma neoclássica prevista pela prancheta do arquiteto italiano Giulio Micheli. Dividido entre alas para pessoas que podiam e não podiam pagar pelo atendimento médico, o hospital ganhou novas estruturas de estilos heterogêneos até 1974, então um complexo de dez edifícios, como a capela Santa Luzia (1922) e a Maternidade Filomena Matarazzo (1943) – Filomena foi a mulher de Francesco Matarazzo (1854-1937), com quem teve 13 filhos.
O local foi tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) em 1986 e fechou as portas para o público em 1993. O roteiro de abandono de um dos pontos mais privilegiados da cidade, colado à avenida Paulista, começou a ganhar novas linhas quando surgiu no script o empresário francês (nascido no Estados Unidos, criado na Costa do Marfim e na Líbia) Alexandre Allard, de 51 anos. Ele arrematou o terreno por R$ 117 milhões em 2011, depois de quatro anos de estudos em como poderia revigorar a área e iniciar um dos projetos arquitetônicos e comerciais mais ousados do país. Nascia o Cidade Matarazzo.
“Eu estava criando um monstro, não parava de viajar, Jeff Bezos queria me ver a cada 15 dias.”
Com o investimento de R$ 2 bilhões, Allard é majoritário na sociedade que fez com a holding Chow Tai Fook Enterprises Ltd. (de Hong Kong) para colocar em pé (tome fôlego, pois a lista é longa): um hotel Rosewood (150 quartos); um centro de convenções; um centro cultural com teatro e auditório; um estúdio de música; uma área gastronômica (34 restaurantes); um mercado de produtos orgânicos; um campus para empreendimentos de tecnologia criativa; um centro de compras (mais de 300 lojas); estacionamento de 1.500 vagas e a Torre Mata Atlântica (93 metros, 25 pisos e oito subsolos), com 122 suítes comercializadas pela Coelho da Fonseca, que vão de 109 a 800 metros quadrados – quem assina a torre é o arquiteto francês Jean Nouvel (prêmio Pritzker em 2008), a primeira obra dele na América Latina. A assinatura do interior do projeto e da direção artística também é pesada e cheia de prêmios: Philippe Starck. Tudo isso sob a sombra de 45 mil metros quadrados de um parque e 10 mil árvores plantadas. Parte do Cidade Matarazzo tem inauguração prevista para maio de 2020; todos os espaços devem estar funcionando até o fim de 2021.
Como cartão de visitas da criatividade que move Allard, em 2014 ele montou a mostra Made By… Feito por Brasileiros, abrindo as portas do terreno para visitantes apreciarem trabalhos de artistas feitos para o espaço, mas logo desmontados após a exposição. De vídeos performáticos como Baba Antropofágica, de Lygia Clark, à instalação de Daniel Senise, passando por filmes clássicos do cineasta José Mojica Marins, um extenso cardápio de artistas atraiu um público de 100 mil pessoas.
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Ao falar da própria linha do tempo profissional, o empresário deixa clara a importância do caráter inovador desde seus primeiros trabalhos. Após a temporada na África, voltou a estudar na França, atuou como publicitário na década de 1980, mas ganhou dinheiro mesmo nos anos 1990, coletando informações de consumidores, montando e vendendo bancos de dados gigantes. Criou a Consodata em 1994, empresa que seria vendida em 2000 por 400 milhões de euros para a Telecom, da Itália. “Aos 30 anos, eu já era bilionário”, resume. Chegou a um ponto que, pressionado pela mulher, abandonou a carreira para curtir a vida (viajando de barco mundo afora) e ter dois filhos, Sacha, de 18 anos, e Milla, de 16. “Eu estava criando um monstro, não parava de viajar, Jeff Bezos queria me ver a cada 15 dias, outros presidentes de empresas também me acionavam, precisava sair disso, embora muita gente ache estupidez pular fora de um negócio que hoje valeria uns US$ 15 bilhões.”
Acompanhe a seguir a entrevista com Alexandre Allard, que se empolga ao falar do empreendimento de tal maneira que, vez ou outra, estapeia a mesa com vigor.
Forbes: Por que você nasceu nos Estados Unidos e passou a infância na África?
Alexandre Allard: Para te dizer a verdade, eu nasci por acidente. Não acho que meu pai estava esperando ter um bebê com a minha mãe. Eles acabaram se casando por causa da gravidez. Os dois são franceses. Ele, de uma região costeira; ela, das montanhas. Meu pai era engenheiro, sempre gostou de cavar buracos, que na época significava encontrar água. O sonho dele era ir para a África, trabalhar na Legião Francesa. Mas um dia foi para o Peru em uma missão, e lá conheceu minha mãe, que era professora de uma escola. Nasci nos Estados Unidos e seis meses depois meu pai pegou uma missão na África. Primeiro fomos para a Líbia, depois Costa do Marfim. Tenho um irmão que nasceu na França e uma irmã que nasceu na África. Acho que eles não tiveram comigo a mesma atenção que deram para meus irmãos. Estudei em uma escola de africanos. Era a única criança branca.
Como foi essa época?
Tenho várias memórias da minha infância na África, mas uma voltou muito forte quando tomei ayahuasca pela primeira vez aqui no Brasil, em Alto Paraíso (GO). Lembro com clareza. Eu olhando as minhas mãos de manhã. Por que elas eram brancas? Eu chorava por elas não serem pretas. Acordava e logo pensava: “Por que eu sou branco?”. Ia para a escola e era um desafio ser o único branco.
Como você “descobriu” o Brasil e por que veio para cá?
Descobri o Brasil com dois cantores em meu barco, quando estava na Córsega, em Porto Vecchio. Toquinho e Chico Buarque. Eles vieram cantar em um festival e o prefeito me perguntou se eu poderia levá-los para um tour na ilha. Eles que me falaram que eu deveria conhecer o Brasil. Então, fui para o Rio de Janeiro pela primeira vez. Mas só quando fui à Bahia é que eu me apaixonei pelo país. Salvador é a minha cidade, me sinto em casa. Conheci Ivo Pitanguy [1926-2016], uma pessoa muito inspiradora e sofisticada: não existia nada mais brasileiro que ele. Também me apaixonei por sua propriedade em Angra dos Reis.
Qual foi a sua primeira ideia de negócios aqui?
Foi quando negociei o banco de dados do Grupo Abril, em 1996, com Roberto Civita [1936-2012]
Como o terreno do Cidade Matarazzo entrou no seu radar?
Em 2004, decidi enviar um funcionário para encontrar um imóvel na cidade. Ele pesquisou durantes anos. Quando vim conhecer o imóvel em 2007, aqui ao lado, não gostei. Quando nós subimos no topo do prédio para tirar uma foto e observar a vizinhança, eu vi este lugar [terreno do Matarazzo].
Qual sua primeira impressão de São Paulo?
Uma Nova York dos trópicos que deu errado. Mas era exatamente o cenário para o que eu queria, pois desde o começo a minha ideia era um projeto grande sobre diversidade. A coluna espinhal da minha mudança e interesse pelo país é que eu sempre acreditei, desde o primeiro dia que vim para cá, em 1992, que existe algo aqui. Eu não sei como a minha cabeça funciona, mas ela faz uma projeção e aí eu construo baseado nisso. Normalmente estou 20, 30 anos à frente das outras pessoas. Se você pegar o que escrevi em 1986 sobre base de dados e olhar hoje, é exatamente o que está acontecendo.
Que outros destinos você conhece no Brasil?
Eu viajei muito. Acho que conheço mais o Brasil do que muitos brasileiros. Os brasileiros vão mais para Miami. Eles não vão para o Mato Grosso. Eles não sabem onde fica o Acre. Mesmo Manaus: eles sabem que é no norte, mas não sabem exatamente onde. Meu lugar favorito é a Bahia. Acho que é absolutamente incrível a sensação de como uma colonização europeia foi tomada por negros. Tenho sonho de ter um hotel lá, mas agora estou totalmente focado aqui. E eu amo o Rio de Janeiro – é impossível não amar; é a cidade mais bonita do planeta, vivi lá por muitos anos, em Ipanema. Todos os dias que acordava e olhava para a minha janela, ficava encantado. A Chapada Diamantina também é uma área impressionante, sem equivalente no planeta.
Como descreveria o seu dia?
Acordo bem cedo, lido com a Europa. Entre 6h30, 7h tento ir para a ginástica. Depois, tomo meu café da manhã. Chego aqui e temos 25 projetos dentro de um megaprojeto, todos bem diferentes entre si.
Em comum, os projetos demonstram que você gosta muito de arte e de arquitetura. Quando isso começou?
Não existe nada mais poético do que o processo criativo. Amo quando vejo alguém em um estúdio de música, trabalhando em como agregar as notas, amo a moda, criei algumas marcas fabulosas [como a Faith Connexion], amo quando vejo alguém preparando um desfile. Sou um amante do processo criativo porque acredito que isso salvará o mundo. A arquitetura é muito importante porque ela molda como os humanos vivem – é uma responsabilidade gigante. Com este pedaço de terra, eu espero mudar uma cidade inteira, contaminar São Paulo e outras cidades no planeta. Quando você percebe que pode fazer isso, é incrível.
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Como compara o que está fazendo no Cidade Matarazzo com o que fez no Royal Monceau [hotel parisiense favorito de artistas nos anos 1930, que estava decadente quando Allard promoveu a Festa da Demolição, em 2008, convidando celebridades a derrubar a decoração antiga na base da marreta e da picareta]?
O Le Royal Monceau é uma pequena parte do que estou fazendo agora. Se você olhar para o projeto [atual], é tudo que eu já fiz em minha vida. A parte tecnológica será a mais avançada do planeta. Do ponto de vista social, você verá uma fazenda urbana, empoderamento de aldeias indígenas. Tudo que aprendi durante a vida estou aplicando aqui.
Você conheceu Philippe Starck no Royal Monceau?
Não, eu o conheci fazendo um projeto no centro de Pequim [bairro de Qianmen] em 2004. Ele é amigo. O meu luxo é trabalhar com os melhores do mundo, sempre tive essa oportunidade.
Como você define o Cidade Matarazzo?
É uma máquina gigante para celebrar a diversidade brasileira. Olha, eu não faço esse projeto para o Brasil. Faço para o mundo. Os brasileiros, por acaso, estão por perto. O Brasil e essa cidade representam as raízes do futuro. E eu estou aqui para ajudar os frutos a vigorarem.
O projeto se mostrou mais complexo do que você imaginou inicialmente?
Muito mais. Realmente complexo, mas ficará muito melhor do que imaginei. É um projeto extremamente cansativo, mas sou incansável, tenho uma energia imensa e fui feito para isso. No fim, entregaremos algo incrível.
Reportagem publicada na edição 72, lançada em novembro de 2019
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