Enquanto os incêndios florestais se alastravam em outubro passado, mais de 1 milhão de norte-californianos sofriam com apagões devido aos cortes de energia elétrica destinados a reduzir a probabilidade de que os ventos fortes provocassem novas queimadas. Na fumaça, KR Sridhar sentiu o cheiro da oportunidade. Sua empresa, a Bloom Energy, de capital aberto, vende células de combustível – caixas de aço que geram eletricidade a partir de gás natural. As caixas, que ela chama de servidores de energia, emitem um fluxo quase puro de dióxido de carbono, um importante gás do efeito estufa, prometendo fazer isso com menos danos que as usinas tradicionais e com muito menos poluentes atmosféricos, como óxido de nitrogênio e óxidos de enxofre.
Melhor ainda, as unidades da Bloom recebem combustível por meio de dutos subterrâneos, não afetados pelos ventos Diablo que ameaçavam os cabos de alta tensão da Califórnia e levaram a quedas de energia que Sridhar considera intoleráveis em qualquer sociedade moderna, quanto mais no Vale do Silício.
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“Toda vez que ocorre um desastre, o preço da energia aumenta porque alguém tem que pagar pelo dano”, diz Sridhar. “Esse é o catalisador da mudança.” A Bloom está tirando proveito da falta de energia, cortejando possíveis clientes em zonas de risco de incêndio para se protegerem de falhas na rede com “microrredes” da Bloom, como as 26 instaladas até agora na Califórnia, que alimentaram os clientes durante os apagões do ano passado.
Em seus 19 anos de atuação, a companhia instalou milhares de suas caixas de 15 toneladas em todo o mundo para grandes empresas de tecnologia, como Apple, AT&T e PayPal, que estão dispostas a pagar para garantir energia 24 horas por dia, sete dias por semana para data centers nos quais o custo do tempo de paralisação é de quase US$ 9 mil por minuto. Muitos dos clientes estão em estados com os preços de energia mais caros e com altos subsídios à energia limpa, como Nova York, onde a Home Depot os instalou como geradores de apoio “onde quer que façam sentido do ponto de vista econômico”, segundo o diretor de energia da rede nos EUA, Craig D’Arcy. As caixas Bloom operam sem parar na Caltech há mais de uma década, fornecendo quase 30% da energia ao campus de Pasadena. “Ter energia estável é muito importante para os cientistas”, diz Jim Cowell, diretor de instalações da Caltech. “Eliminamos os intermediários da rede.”
Este deveria ser um momento para a Bloom brilhar. “Graças ao fraturamento hidráulico, o gás natural já está aí”, diz Sridhar. E, no entanto, apesar das grandes promessas, é improvável que as caixas de Sridhar transformem a rede na Califórnia ou em qualquer outro lugar. Os motivos são vários, mas tudo se resume a isto: sua tecnologia é suja demais e cara demais.
A Bloom nunca deu lucro, a despeito de pelo menos US$ 1,7 bilhão em capital investido, parte do qual foi levantada com base em declarações falsas. Em breve, ela poderá ficar sem pista para decolar, à medida que os lucrativos créditos tributários acabem e o financiamento seque. Sridhar já contratou o banco de investimentos Jefferies para ajudar a reestruturar mais de US$ 300 milhões em dívidas que vencem no fim deste ano. As ações caíram quase 50% desde que a Bloom levantou US$ 282 milhões em seu IPO, em 2018. E agora autoridades reguladoras e até políticos locais estão em conflito com a empresa. Cidades como Berkeley se voltaram contra o gás natural por não ser suficientemente ecológico. Recentemente, um tribunal impediu o condado de Santa Clara, no coração do Vale do Silício, de receber novas instalações da Bloom, a menos que elas fossem abastecidas, por exemplo, com biogás (exorbitantemente caro) trazido de lagoas de esterco ou aterros sanitários.
Uma década atrás, Sridhar previa que sua tecnologia de células de combustível estaria hoje em todas as casas, ao custo de US$ 3 mil cada uma. Na realidade, nem uma única casa, nos Estados Unidos, tem sua própria caixa de energia – nem mesmo a casa de US$ 7,6 milhões de Sridhar em Woodside, na Califórnia. Em vez disso, suas caixas são usadas principalmente por clientes industriais e comerciais e custam em torno de US$ 1,2 milhão a unidade. Sem subsídios, elas geram energia a um custo aproximado de 13,5 centavos de dólar por quilowatt-hora, ante 10 centavos de dólar por kWh no caso da rede elétrica em âmbito nacional.
No momento, a energia verdadeiramente renovável está muito mais barata do que a da Bloom. Sem subsídios, a energia solar e a eólica terrestre custam 4 centavos de dólar por kWh, de acordo com a empresa de gestão de ativos Lazard.
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Não pense nem por um segundo que Sridhar, de 59 anos, está desanimado. “É um ritmo de progresso incrível”, diz ele, sobretudo em comparação com seu ponto de partida. Ele cresceu na Índia, onde os apagões são comuns, e frequentou o Instituto Nacional de Tecnologia Trichy, no estado de Tamil Nadu, no sul da Índia, e então foi aos EUA para cursar um doutorado em engenharia mecânica. Depois, trabalhou no Laboratório de Tecnologias Espaciais da Universidade do Arizona, onde desenvolveu uma máquina geradora de oxigênio para as missões da Nasa a Marte. Quando o Mars Polar Lander caiu, em 1999, o projeto dele foi cancelado. Sem se deixar abater, ele trabalhou para inverter essa tecnologia e transformar metano e oxigênio em dióxido de carbono e eletricidade.
Em 2001, Sridhar foi um dos fundadores da empresa que viria a ser a Bloom e logo conheceu John Doerr, o lendário e bilionário capitalista de risco que ficou rico financiando empresas de tecnologia como Amazon, Google e Sun Microsystems. A firma de Doerr, Kleiner Perkins, investiu cerca de US$ 60 milhões na Bloom e ainda é dona de quase 14%, depois de ter vendido cerca da metade de sua participação de um ano para cá. Entre os outros investidores de longa data estão a New Enterprise Associates, o fundo soberano do Kuwait e fundos de pensão do Canadá e da Nova Zelândia.
Em 2008, Sridhar havia instalado as primeiras caixas no Google, de cujo conselho de administração Doerr é membro há muito tempo. Houve problemas desde o princípio. Essas máquinas iniciais foram montadas manualmente, lembra Sridhar, em uma loja no aeródromo de Moffett, no condado de Santa Clara, e não na linha de montagem automatizada de hoje. Um ex-executivo da Bloom afirma que essas primeiras caixas precisavam ser monitoradas 24 horas por dia, sete dias por semana, e que os módulos internos, com centenas de pastilhas de células de combustível de 10 por 10 centímetros, precisavam ser trocados algumas vezes por ano, ao custo de US$ 225 mil cada uma. Outra complicação desses intricados dispositivos eram os sistemas de filtragem – tambores de metal cheios de pedras de catalisadores sólidos que separam compostos de enxofre e outros contaminantes do gás metano. Segundo o mesmo executivo, na primeira vez em que os técnicos esvaziaram os tambores, eles simplesmente sugaram o catalisador e acabaram espalhando um cheiro de ovo podre por toda a vizinhança. A Bloom chamou de “boato” o relato do executivo.
Porém, assim como outros adeptos da filosofia de “fingir até conseguir”, Doerr e Sridhar agiram como se tudo já estivesse equacionado. Em 2010, em uma entrevista com Leslie Stahl no programa televisivo “60 Minutes”, eles anunciaram as caixas como o futuro da geração de energia limpa e verde. “A caixa Bloom visa a substituir a rede elétrica – é mais barata do que a rede, é mais limpa do que a rede”, disse Doerr a Stahl. Em coletiva de imprensa realizada logo depois, Sridhar disse aos repórteres que a caixa era capaz de fornecer energia ao custo de “9 a 10 centavos de dólar por quilowatt-hora”.
Mas isso não era totalmente verdadeiro. A empresa insiste que, de fato, vendeu alguma energia a esse preço tão baixo, mas somente após aplicar subsídios generosos e operar com prejuízo. (Um porta-voz da Kleiner Perkins diz que é comum vender com prejuízo para aumentar a participação no mercado.) Ela confirma que, em 2010, seu custo não subsidiado era de 19 centavos de dólar por kWh. Agora, após uma década de P&D e forte queda dos preços do gás natural, o custo da montagem, instalação, manutenção e abastecimento dessas caixas ainda está em 13,5 centavos de dólar por kWh. Subsídios como o lucrativo crédito fiscal federal para investimentos reduzem o custo um pouco mais – 1,5 centavo na Califórnia. Isso pode ser atraente para clientes que pagam mais por kWh em alguns estados com preços altos. No entanto, a média nacional de energia no varejo é de 10 centavos e vem caindo, diz Ed Hirs, pesquisador da Universidade de Houston e consultor em energia da consultoria tributária BDO. “Essa tecnologia está destinada ao fracasso na maior parte do país, onde a Bloom está concorrendo com energias renováveis reais, como a solar e a eólica, que desceram a curva de custos muito mais rapidamente”, explica Hirs. “Adicione baterias, e você poderá obter uma confiabilidade parecida a um custo muito menor, sem emissões de carbono.” Los Angeles assinou um contrato de 25 anos para comprar energia solar mais bateria a 2 centavos de dólar por kWh.
A Bloom está muito longe de poder oferecer esses preços, embora a tecnologia esteja melhorando. Enquanto suas primeiras caixas duravam menos de dois anos até serem substituídas, hoje afirma que conseguiu elevar a vida útil a quase cinco anos. O que seria mais impressionante é se ela conseguisse ganhar dinheiro. Até agora, a empresa registrou mais de US$ 2,7 bilhões em prejuízos acumulados, e essa cifra continua crescendo. Nos nove meses até setembro de 2019, a Bloom registrou um prejuízo líquido de US$ 195 milhões sobre um faturamento de US$ 668 milhões. Para cobrir seus prejuízos, a empresa obteve a ajuda dos moradores de Delaware, onde a companhia de energia Delmarva Power está há oito anos em um projeto de 21 anos com a Bloom. Em votação realizada em 2011, a Assembleia Geral de Delaware permitiu que a Bloom se habilitasse para seu programa de energias renováveis, apesar de as unidades dela não serem movidas a combustível renovável. Por esse benefício ecológico subjetivo, os 300 mil clientes da Delmarva em Delaware se viram pagando uma tarifa mensal equivalente a cerca de 16 centavos de dólar por kWh gerado por 123 caixas Bloom. Delaware também concedeu US$ 12 milhões em subsídios. Registros estaduais mostram que, nos 12 meses findos em maio de 2019, a Delmarva pagou mais de US$ 34 milhões à empresa operacional da Bloom por energia elétrica que vendeu à rede por apenas US$ 9 milhões. Como se não bastasse, em 2012, Sridhar prometeu 900 empregos em sua fábrica em Delaware, mas até agora apenas 340 deles se concretizaram. O objetivo declarado do projeto era cumprir uma série de metas de desenvolvimento econômico e de política energética, e estava previsto que seu custo seria maior do que o do atacado.
Pelo menos a tecnologia da Bloom é mais limpa do que a de uma usina comum, certo? Nem sempre. Quando as caixas são novas, funcionam com eficiência ideal, convertendo quase 65% de seu combustível de metano em eletricidade e emitindo 308 quilos de dióxido de carbono por megawatt-hora. A título de comparação, as emissões totais do setor de energia dos EUA eram de 415 quilos por MWh em meados de 2019, segundo o Instituto Scott da Universidade Carnegie Mellon. Ela também é melhor do que as usinas movidas a gás natural, que emitem 386 quilos, e muito melhor do que as movidas a carvão, com emissão superior a 635 quilos. No entanto, à medida que as células de combustível envelhecem, o processo eletroquímico perde eficiência. Com base em cálculos da Forbes, algumas das caixas mais antigas de Delaware vêm emitindo 435 quilos de CO2 por MWh. Na Califórnia, onde a concessionária local PG&E gera energia a 95 quilos por MWh, a Bloom pode estar perdendo sua atratividade.
E ainda há a questão dos resíduos perigosos. Ao entrar com pedido de licença de operação em Delaware, a Bloom respondeu negativamente quando questionada se seus sistemas gerariam algum resíduo perigoso. Quando, em 2014, as autoridades reguladoras começaram a fazer mais perguntas, a Bloom revelou que seus sistemas de filtragem estavam captando uma série de dejetos nocivos, como arsênico, benzeno, enxofre e chumbo. Indagada por que estava enviando esse material perigoso de Delaware a processadores e incineradores em todo o país, sem seguir as regras, a Bloom respondeu que achava estar isenta porque não abria os tambores. Não, disse a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA, na sigla em inglês), que, em 2015, lembrou a Delaware que deveria impor regras de materiais perigosos “não menos rigorosas” do que os regulamentos federais, com responsabilidade pela gestão de resíduos “do início ao fim”. A Bloom insiste que não “produz” resíduos perigosos, que começou a lidar com as unidades de dessulfuração de maneira diferente após a EPA ter fornecido a orientação e que agora está em conformidade com a EPA. A agência ainda está tentando cobrar uma multa de US$ 1 milhão da Bloom.
Alguns investidores foram induzidos ao erro ao longo do caminho. Em 2012, a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês) proibiu temporariamente Dwight Badger e Keith Daubenspeck, cofundadores da corretora Advanced Equities, de exercer suas funções após uso de informações falsas e realização de diligências negligentes, respectivamente, para ajudar a Bloom a arrecadar US$ 150 milhões. Entre as afirmações incorretas estavam a de que a Bloom tinha US$ 3 bilhões em pedidos da CIA e de uma rede de supermercados e a de que ela receberia um empréstimo de até US$ 300 milhões do Departamento de Energia. Em e-mails escritos à SEC, Badger alega possuir cópias de apresentações feitas ao conselho da Bloom (o qual tem, entre os membros, Doerr e o ex-secretário de Estado Colin Powell) que provam que esta mentiu aos investidores. Em 2014, os corretores chegaram a um acordo no valor de US$ 16,7 milhões, grande parte em direitos de compra de ações se e quando a Bloom abrisse o capital. Após o IPO, o preço das ações da Bloom nunca subiu o suficiente para deixar Badger e Daubenspeck in the money. Em 2019, eles entraram com uma ação contra Sridhar por induzi-los ao acordo de maneira dolosa. A Bloom afirma que a ação não tem mérito.
Em 25 de julho de 2018, dia do IPO da Bloom, Sridhar mentiu aos repórteres do site “MarketWatch” ao dizer que a empresa estava lucrando desde o segundo trimestre e que, naquele ano, teria fluxo de caixa positivo e lucro de acordo com os princípios contábeis geralmente aceitos, quando, na verdade, ainda estava perdendo dinheiro. A Bloom divulgou uma correção no dia seguinte e garante que Sridhar “simplesmente cometeu um erro”. Outros investidores que compraram ações da Bloom processaram Sridhar e a empresa por, entre outras coisas, esconder mais de US$ 2 bilhões em obrigações futuras relacionadas à manutenção e substituição de caixas Bloom antigas, segundo estimativas do vendedor a descoberto Nate Anderson, da Hindenburg Research. A Bloom negou o relatório da Hindenburg; os processos estão tramitando. Conforme explica um ex-executivo da Bloom, esta depende da receita das caixas novas para ajudar a compensar os crescentes custos de manutenção das antigas: “Eles precisam continuar vendendo mais no front-end para pagar o back-end”.
Nos últimos meses, a Bloom levantou mais de US$ 250 milhões com empresas como a Southern Company para trocar suas caixas antigas em Delaware. A Bloom pôde vislumbrar uma onda dessas substituições antes da eliminação gradual, em 2023, do lucrativo crédito fiscal federal para investimentos, no valor de até 30% do capital investido. Quando esse crédito terminar, também terminará uma via de financiamento confiável. Um fato que salienta a possibilidade de a Bloom estar com os dias contados é a saída de vários executivos e a iminente aposentadoria de seu diretor financeiro. A ex-senadora dos EUA Kelly Ayotte também deixou o conselho e foi substituída por Jeff Immelt, ex-CEO da General Electric.
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Se há um raio de esperança nessa história, é o fato de que existem muitos lugares no mundo com o ar mais sujo do que o da Califórnia e onde as pessoas podem ter interesse no que a Bloom está vendendo. No Japão, a empresa fez parceria com o Softbank em diversas instalações; na Coreia do Sul, construiu recentemente sua primeira “Torre de Energia” – uma estrutura de quatro andares com as laterais abertas, repletas de suas caixas – e agora está analisando, junto com a Samsung, como usar as caixas para fornecer energia a navios.
Sridhar insiste que seus preços continuarão caindo, enquanto sua resiliência vai aumentar. Ele obtém inspiração em imagens de satélite que mostram o mundo à noite, penduradas nas paredes dos escritórios da Bloom. As luzes brilhantes no meio da escuridão representam a grande maioria da população do mundo. “Os outros 2 bilhões estão basicamente sem rede e sem sorte”, diz ele. “O que me levou a abrir a empresa é a mesma coisa” que o motiva agora: sentir “que deixei uma marca”.
Reportagem publicada na edição 76, lançada em abril de 2020
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