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É surpreendente como a mídia global pode gerar enorme burburinho sobre um determinado assunto sem antes perguntar as questões mais óbvias e pertinentes. O que os turcos estão fazendo? Qual é o jogo aqui? Eles conseguiram tolerar anos de execuções de estrangeiros no país — de combatentes da resistência tchetchena a ativistas da oposição síria. Mas, de repente, se preocupam com o desaparecimento de um ativista dentro do que na verdade é um território saudita sob a lei internacional. Claro que eles — todos — devem se sentir indignados. Mas desenvolver um coração sensível de uma hora para outra também sugere outros cálculos em curso.
Os sauditas apoiam o Estado militarista do Egito justamente por reprimir a Irmandade Muçulmana. Erdogan odeia esse modelo de governo e teme o seu retorno na Turquia — os militares turcos são considerados inimigos tradicionais. Além disso, quando os estados do Golfo liderados pela KSA tentaram impor um bloqueio ao Qatar, os turcos intervieram para quebrá-lo e assinaram um acordo para abrigar uma base militar da Turquia no país.
Essencialmente, Ancara e Riad disputam a liderança do mundo muçulmano sunita. O presidente Erdogan, como neo-otomano, quer que o governo turco atue como fons et origo — expressão em latim que significa “origem e origem”, princípio de tudo — do legítimo islamismo do velho modo imperial.
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E não para por aí. Os turcos têm uma razão ainda maior para propagandear a causa da morte de Kashoggi. Talvez este seja, aliás, o principal motivo de tudo. E tem a ver com os EUA.
Primeiro, acompanhe a versão mais simples da história e, se você for um verdadeiro nerd na estratégia geopolítica, poderá sacar os detalhes menores.
Em linhas gerais, quando Donald Trump impôs sanções à Turquia por deter o evangelista Andrew Brunson, a lira turca perdeu cerca de 40% do valor — perda acumulada até a data de hoje. Foi como se a Casa Branca mandasse um recado para Erdogan: temos vários métodos para alterar seu poder sobre a Turquia. Entre eles, podemos arruinar sua economia.
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Desde o primeiro dia, Ancara mantém controle sobre as informações a respeito da morte do jornalista, que são liberadas gota a gota. Com efeito, os turcos contra-atacaram a Casa Branca. A ameaça tem como alvo não apenas a economia norte-americana, quando Donald Trump luta como nunca por apoio, mas também a cotação global do dólar, moeda de reserva mundial, escorada pelo petrodólar.
Para os mais interessados no cenário, a história remonta à era de Obama, mais precisamente a março de 2016, quando autoridades norte-americanas prenderam o turco-iraniano Reza Zarrab por ajudar o Irã a contornar as sanções econômicas impostas por Washington por meio do Halkbank da Turquia, onde ele trabalhou no auge do regime de sanções.
Os arquivos incluíam telefonemas de Erdogan, então primeiro-ministro, dizendo ao filho para guardar milhões de euros em casa. Essas gravações já vazaram na Turquia, mas o presidente alegou que eram falsas e venceu as várias eleições que disputou depois.
Em suma, os EUA têm exercido pressão sobre Erdogan de diversas maneiras há algum tempo, não apenas com evidências contra a corrupção em torno dele. Por fim, o caso Zarrab estabeleceu condições legais para sanções do tipo Magnitsky — o contador russo especializado em ações anticorrupção — contra os confidentes de Erdogan e seus familiares.
Uma vez que todos esses movimentos revelam um processo de planejamento cuidadoso de ambos os lados, é de se perguntar se os turcos sabiam de antemão sobre a pretendida visita de Kashoggi ao consulado e o que o aguardava lá.