Comida é coisa sagrada. Um simples ovo de Páscoa já mostra isso. A relação do alimento com as religiões tem uma intensidade que vai além de receitas tradicionais – e deliciosas. Juntas, revelam preceitos, práticas, preferências – a alma, enfim, de uma família, uma comunidade, uma cidade, um país. A identidade alimentar é, muitas vezes, sinônimo de identidade religiosa.
A Bíblia, por exemplo, narra várias histórias envolvendo sacrifícios de animais para atrair prosperidade e novos e melhores tempos, como a terra prometida dos hebreus. Foi no catolicismo, por exemplo, que o vinho deixou de ser uma bebida pagã para se tornar nobre, celestial, simbolizando o sangue do filho do criador. O pão se multiplicou em número, formas e sabores.
O judaísmo, por sua vez, desenvolveu uma gastronomia cuidadosa e envolvente. Conhecida como comida kasher ou kosher, ela é abençoada por um rabino em um ritual de espiritualidade e pureza. O primeiro passo para entender a cozinha kasher (palavra que significa “permitida” em hebraico) explica que o alimento é o primeiro item de nossas necessidades – por isso deve ser puro, imaculado. Carne só de animais ruminantes e com casco partido (caso do gado, da ovelha, do veado, do carneiro e do bode). Nunca de porcos ou cavalos. Os peixes permitidos são os que têm escamas e barbatanas – entre os marginais estão camarão, polvo e lula, pois se alimentam de detritos do mar. Aves de rapina também são proibidas, assim como qualquer bicho rastejante. Nenhum dos animais kasher pode sofrer antes do abate, e seu sangue deve ser completamente drenado. Há também grande cuidado com itens chamados neutros – massas, ovos, verduras, frutas e guloseimas não podem, por exemplo, ser misturados com leite ou carnes. Culinárias festejadas e globalizadas como a chinesa, a francesa, a italiana, a japonesa e a indiana também podem ser kasher, desde que preparadas de acordo com a lei judaica.
Já os muçulmanos têm seus códigos culinários (e outros comportamentos do dia a dia) estipulados a partir do código halal (que também significa “permitido”, agora em árabe). O “sim” e o “não” estão sinalizados no Alcorão em pelo menos 24 versículos sobre prescrições alimentares. Boa parte coincide com a lei judaica, mas há particularidades. Aqui, todos os peixes são autorizados. Mas estão proibidas todas as bebidas que contenham álcool – pois elas alteram a consciência.
Os hindus não comem carne de animais. Acreditam que, na hora do abate, o animal carrega consigo mágoas, rancores, ódio, medo… Assim, a base da alimentação é vegetariana, e esse costume se estende à cozinha indiana clássica, onde não se come carne bovina.
Nas religiões de origem africana, como o candomblé e a umbanda, tudo o que se cozinha é dirigido aos deuses. Cada orixá tem seu gosto particular, e esse gosto reverbera em seus seguidores. Quem gosta de acarajé, por exemplo, deixa Iansã feliz. Qualquer farofa na mesa afasta Oxalá, assim como abóbora faz o mesmo com Xangô. E o pitoresco xinxim de galinha saúda Oxum.
O valor religioso da comida pode ser medido até pelo “não comer”. O jejum está presente em diversas crenças: entre os muçulmanos durante o ramadã; entre os judeus no Yom Kippur; entre os católicos na Semana Santa. Para budistas, o jejum é uma prática comum no dia da oração, para se rezar com mais intensidade.
Tenha ou não uma religião, não preciso dizer a você que comer – de preferência, bem – é algo divino.
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