Desmascarando as teorias da conspiração por trás da gripe russa de 1889

25 de maio de 2020
Heritage Images/GettyImages

O remédio mais famoso para a gripe russa era a bola de fumaça carbólica, fabricada em Londres

Com a pandemia de Covid-19 varrendo o mundo no início de 2020, uma teoria da conspiração sobre a doença viralizou nas redes sociais: a gênese dela, afirmam os adeptos, não foi o coronavírus SARS-CoV-2. Em vez disso, a pandemia foi causada pela introdução da banda larga 5G, sendo que a radiação das torres de celular equipadas com a tecnologia é a verdadeira culpada.

Você não precisa ser o Dr. Fauci para saber que as teorias da conspiração sempre foram um sintoma previsível das pandemias. Mais de um século atrás, os teóricos da conspiração da época tentaram colocar a culpa de uma eclosão mortífera de gripe em uma inovação tecnológica semelhante.

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Em 31 de janeiro de 1890, a edição europeia do New York Herald publicou uma matéria que insinuava que a luz elétrica era, de alguma forma, responsável por um surto mundial de gripe. Afinal, “a doença se alastrou principalmente por cidades onde a luz elétrica é de uso comum”, dizia a matéria, que continuava assinalando que esse mal “atacou funcionários de telégrafos em toda parte”.

A doença em questão foi a primeira pandemia de gripe moderna, conhecida como gripe russa ou “La Grippe”. A enfermidade surgiu provavelmente em alguma parte do Império Russo em 1889 e logo se espalhou pelo mundo em ondas sucessivas. Ela levou somente quatro meses para chegar a todos os cantos do planeta; os Estados Unidos atingiram o pico em janeiro de 1890. Mais de um milhão de pessoas (de um total de 1,5 bilhão) morreram em todo o mundo naquela primeira onda.

A gripe russa foi, em parte, consequência de um mundo recém-globalizado. Ferrovias e navios transatlânticos a vapor eram meios perfeitos para a propagação da moléstia, acelerando seu crescimento em todos os países e continentes. Como na Covid-19, essa pandemia anterior também provocou um surto de desinformação, conspirações e inúmeros tratamentos questionáveis. Em vez da internet, essas ideias eram divulgadas por jornais e telégrafos – mas com impacto semelhante.

Reportagem de jornal de 1890 afirmava que a luz elétrica era responsável pela gripe russa

“As pessoas têm uma necessidade epistemológica de saber a verdade, além de uma necessidade existencial de se sentir seguras”, diz Karen Douglas, pesquisadora que estuda a psicologia das teorias da conspiração. “Em tempos de crise, essas necessidades não são atendidas, então as teorias da conspiração podem parecer atraentes.”

Quando surgiram os relatos da gripe russa, a ciência médica estava no meio de uma transição importante. O início do século 19 foi dominado pelo que é conhecido como “teoria do miasma” – a ideia de que as enfermidades se espalham pela inalação de “ar ruim” proveniente de matéria em decomposição. Em meados do século 19, porém, a teoria dos germes – o que hoje entendemos como a ideia de que a doença é causada por micróbios – foi se difundindo cada vez mais, apesar de os adeptos do miasma terem persistido até o início do século 20.

Mesmo com os avanços da medicina até 1889, as causas da pandemia de gripe russa ainda eram desconhecidas. Embora cientistas como Edward Jenner e Louis Pasteur já tivessem desenvolvido vacinas para proteger contra doenças, a descoberta do primeiro vírus só viria três anos depois. E foi só no início dos anos 1900 que foram descobertos vírus capazes de infectar humanos. O fato de que a gripe russa e a pandemia de gripe espanhola de 1918 foram causadas por vírus influenza foi constatado definitivamente apenas em 1933.

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Devido a essa lacuna de conhecimento vital em 1889, médicos e pesquisadores não conseguiam explicar a nova moléstia que se espalhava pelo mundo. Relatos em jornais contemporâneos registravam as muitas e variadas teorias que os médicos da época tinham sobre o surto. Um relato no Boston Globe observava suas semelhanças com a dengue. Um artigo no New York Times a comparava à doença que havia vitimado o presidente William Henry Harrison em 1841. Essa incerteza sobre a natureza da gripe ajudou a alimentar teorias da conspiração e especulações malucas sobre suas causas.

As prototeorias da conspiração da gripe russa têm paralelos muito próximos na pandemia de hoje. Embora os cientistas saibam muita coisa sobre o novo coronavírus que causa a Covid-19, isso não impediu o surgimento de especulações sobre suas origens. Uma teoria da conspiração proeminente é que o vírus é foi criado de propósito em laboratório, por meio de bioengenharia, para causar a pandemia. Dependendo da teoria na qual você acredita, os culpados da Covid-19 vão do governo chinês ao governo dos EUA e até a Bill Gates, cofundador da Microsoft. É praticamente certo que o coronavírus que está por trás desta pandemia evoluiu de forma natural – já existem evidências genéticas consideráveis nesse sentido –, mas isso não inibe as elucubrações desenfreadas.

Anúncios de 1890 promoviam “curas” para remover o excesso de catarro

“Trata-se de um exemplo clássico de um fenômeno, nas pesquisas sobre teorias da conspiração, em que as pessoas veem padrões que são impossíveis ou, na melhor das hipóteses, muito improváveis”, diz a Dra. Douglas. “As pessoas basicamente ‘ligam os pontos’ quando essas ligações não deveriam ser feitas. Quando há tantas informações por aí e elas muitas vezes contradizem umas às outras, as pessoas ficam mais propensas a enxergar esses padrões ilusórios.”

Embora não se falasse nada sobre engenharia genética na década de 1890 (afinal, o próprio DNA só seria descoberto quase 70 anos depois), isso não impediu que as teorias mais fantásticas sobre a origem da gripe russa infectassem o público. Além da ideia de que os postes telegráficos ou a eletricidade pudessem ser responsáveis pela propagação da doença, o Dr. William Gentry, de Chicago, chamou a atenção dos jornais ao afirmar que havia isolado os micróbios causadores da pandemia.
Segundo o Dr. Gentry, a fonte desses micróbios era a poeira estelar que passa pela atmosfera da Terra a intervalos regulares de 16 a 17 anos. Mais sensatos, outros médicos rejeitaram a ideia do Dr. Gentry – preferindo cogitar o papel da poeira vulcânica, da migração de pássaros ou de outras causas igualmente equivocadas.

Essa falta de entendimento sobre a nova cepa mortal da gripe deixou os médicos confusos quanto à melhor maneira de tratá-la. Um artigo de 1889 na revista científica The Lancet admitia que “nossa falta de conhecimento pleno sobre a natureza da doença dificulta a sugestão de outras medidas de profilaxia que não a observância uniforme das regras gerais de higiene”. (Esse é outro paralelo com a pandemia de hoje que dá o que pensar: até o momento, o único tratamento aprovado para a Covid-19 é o remdesivir, que recebeu autorização da Food and Drug Administration dos EUA para uso emergencial graças a resultados de ensaios clínicos que demonstram que ele é capaz de reduzir as internações hospitalares.)

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Na falta de tratamentos de base científica para a gripe russa, diversas terapias duvidosas proliferaram – tirando proveito do fato de as pessoas estarem com medo de um mal para o qual não existia tratamento conhecido. Isso também tem paralelos na pandemia atual. A FDA enviou várias advertências a uma série de empresas que estão promovendo curas enganosas, desde chás de ervas até soluções de prata coloidal, passando pela ingestão de detergente.

Anúncios de jornais do século 19 também apregoavam uma série de “curas” da gripe russa. O óleo de rícino foi incentivado como tratamento por pelo menos um jornal, e outros protocolos incluíam um inalador brônquico e uma bateria elétrica (que, de quebra, prometia melhorar a visão). Até mesmo médicos divulgaram a ideia de que o segredo para evitar infecções era beber conhaque e comer ostras.

O remédio mais famoso para a gripe russa, no entanto, era a bola de fumaça carbólica. Essas bolas eram fabricadas em Londres e muito propagandeadas. Elas liberavam uma “fumaça” de pó de fenol finamente moído (ingrediente comum nos sabonetes da época), o qual era aspirado pelas narinas. A empresa que produzia esse tratamento prometia que ele evitaria que os clientes contraíssem a gripe russa. E, se o produto falhasse, a empresa prometia pagar a seus clientes 100 libras – cerca de US$ 13 mil em valor atual. Em dezembro de 1891, a Sra. Elizabeth Carlill comprou um desses produtos e o usou em diversas ocasiões. Então, sucumbiu à epidemia.

Como as bolas de fumaça carbólica não funcionaram, Carlill e o marido entraram com uma reclamação na Carbolic Smoke Ball Company, mas ela foi ignorada. Em 1892, o casal moveu um processo contra a empresa. No caso Carlill versus Carbolic Smoke Ball Company, o tribunal considerou que a Sra. Carlill tinha direito ao dinheiro e que a Carbolic Smoke Ball Company violou o contrato por não ter pagado a ela quando apresentou a reivindicação. A decisão foi um desagravo para a Sra. Carlill; o caso em si ainda é citado como precedente em jurisdições de direito consuetudinário, como os Estados Unidos, e até hoje é ensinado frequentemente em aulas de direito.

Em outro paralelo com a pandemia de Covid-19, existia também uma classe de medicamentos situada na fronteira entre a boa ciência e o desejo ilusório. Durante a pandemia de 1889, o quinino, um medicamento antimalárico predecessor da cloroquina e da hidroxicloroquina, era promovido por jornais e médicos como tratamento para a gripe russa. Parece que muitos membros do establishment médico se opuseram ao uso do quinino como tratamento para a doença, mas esses alertas não foram ouvidos.

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Em dezembro de 1889, um jornal de Boston noticiou que pessoas estavam tomando quinino para combater a doença. No mesmo mês, uma matéria investigativa no Kansas City Star lamentava a alta dos preços dos comprimidos de quinino e observava que sua demanda estava deixando o remédio fora do alcance dos portadores de malária. Isso tem seu próprio paralelo hoje: tem havido vários relatos de que a demanda excessiva de hidroxicloroquina pode prejudicar os pacientes de artrite reumatoide, para os quais esse medicamento é prescrito frequentemente como tratamento.

Embora ainda estejam sendo realizados estudos sobre a eficácia desses tratamentos para a Covid-19, há poucas dúvidas de que esses medicamentos podem ser altamente tóxicos, e vários estudos clínicos confirmam isso. Em um trágico caso de desespero, um homem de Phoenix morreu (e a esposa foi hospitalizada) após ingerir um derivado da cloroquina destinado à limpeza de tanques de peixe, na tentativa de prevenir a doença.

Essa tragédia também tem um paralelo infeliz na gripe russa. Jornais de janeiro de 1891 noticiaram pelo menos dois casos em que famílias que sofriam da gripe russa tomaram por engano o veneno estricnina, pensando estar ingerindo quinino. Muitas dessas pessoas morreram em consequência disso.

Uma dose insalubre de desinformação, teorias da conspiração e adoção de tratamentos questionáveis é bastante comum durante epidemias e pandemias, diz a Dra. Douglas, acrescentando que a psicologia dessas coisas está entrelaçada. “As pesquisas indicam que quem acredita em teorias da conspiração tem maior propensão a recorrer a remédios alternativos e a desconfiar da medicina convencional.”

O mais alarmante é que a propagação de desinformação e a falta de confiança nas evidências científicas têm o potencial de provocar danos reais. Recorrer a tratamentos não testados pode levar as pessoas a não receber os cuidados de que precisam, expondo-as a um risco maior. E, se algumas alternativas, como beber chás de ervas, são relativamente inofensivas, outras não são. A prata coloidal, por exemplo, contra cujo uso a FDA vem alertando, pode causar descoloração permanente da pele e dificultar a absorção de medicamentos pelo corpo, inclusive de antibióticos.

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Eventualmente, a disseminação de teorias da conspiração também pode causar danos concretos. No Reino Unido, onde a ideia de que o 5G causa a Covid-19 se enraizou em um segmento significativo da população, têm acontecido dezenas de ataques a torres de telecomunicações. Embora ninguém tenha morrido ainda, não é por falta de tentativa: os teóricos da conspiração britânicos têm escondido lâminas de barbear em pôsteres contra o 5G nos postes telefônicos e ameaçado ferir as pessoas que trabalham nessas torres de telefonia celular.

Ao mesmo tempo em que as empresas estão se apressando para desenvolver uma vacina para a Covid-19, os teóricos da conspiração podem impedir as pessoas de tomá-las. Ativistas antivacina voltaram-se à Covid-19, protestando contra as iniciativas de desenvolvimento de vacinas e unindo-se a manifestantes fartos das regras de isolamento. “Pesquisas experimentais também mostram que a exposição a teorias da conspiração aumenta a hesitação em tomar vacinas”, comenta a Dra. Douglas. E as pesquisas de opinião confirmam isso: em pesquisa recente, um em cada cinco norte-americanos disse que não tomaria uma vacina para o coronavírus se ela estivesse disponível.

Talvez a teoria da conspiração mais traiçoeira relativa à Covid-19 seja uma que parece inofensiva: a simples subestimação dos males causados pela enfermidade. Não é necessário procurar muito no Facebook ou no Twitter para encontrar especulações de que o medo da Covid-19 é exagerado. Do mesmo modo, existem inúmeros artigos de opinião e segmentos de TV dedicados à ideia de que o prejuízo econômico causado pelas regras de isolamento causa mais danos do que a pandemia em si.

“Isso é muito comum porque permite que as pessoas finjam que não há nada errado e possam seguir com a vida”, esclarece a Dra. Douglas. “É um exemplo de raciocínio motivado. As pessoas acreditam no que querem acreditar.”

Mais uma vez, existe um precedente histórico na pandemia de gripe russa. Em um artigo sobre a doença no New York Times mencionou-se que, apesar de a moléstia estar se alastrando, ela era, em grande medida, inofensiva. “Não há nada de fatal no resfriado universal”, escreveu o autor.

Quando a epidemia diminuiu, alguns meses depois, a gripe russa já havia matado mais de 2,5 mil nova-iorquinos, fazendo de Nova York a cidade a mais atingida nos Estados Unidos.

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