Em 1997, na Vila Olímpica da Mangueira, no Rio de Janeiro, Ingrid Silva dava seus primeiros passos como bailarina. Aos oito anos de idade, a dança ainda era apenas uma diversão oferecida pelo projeto social “Dançando Para Não Dançar” na sua comunidade. Não era superior ao seu amor pela natação, por exemplo, que ela praticava desde os três anos. Mas bastou apenas alguns pliés e rodopios para que Ingrid se apaixonasse pelos movimentos do balé clássico.
“Quando pequena, eu nunca quis ser bailarina, foi tudo acontecendo de forma orgânica. Através do projeto social, tive a oportunidade de frequentar a escola de dança Maria Olenewa, fiz estágio no grupo Corpo e, quando tinha uns 12 anos, uma professora perguntou se eu queria fazer do balé uma profissão. Naquele momento, aquilo já tinha virado meu sonho”, relembra Ingrid. A partir de então, a jovem começou a se dedicar inteiramente à dança. Alcançou a maioridade com sapatilhas nos pés e uma ideia tentadora na cabeça: tentar a carreira internacional.
Nascida no país com a maior população negra fora do continente africano, Ingrid não enxergava espaço e oportunidade para alguém com a sua cor de pele nas companhias de balé clássico do Brasil – algo que a intriga até hoje. Isso a motivou a enviar um vídeo dançando para uma audição no The Dance Theatre of Harlem, em Nova York. Foi sua primeira tentativa – e o suficiente para que fosse notada entre 200 outras participantes e chamada para uma avaliação presencial com o diretor da companhia, Arthur Mitchell, primeiro bailarino negro do New York City Ballet, na metrópole norte-americana.
Em 2008, voou pela primeira vez para o lugar que a faria ter certeza de que poderia seguir uma carreira na dança. “Foi ali que eu encontrei diversidade. As oportunidades para a arte e para a minha carreira profissional estavam em Nova York. Hoje em dia sou a bailarina principal da companhia, o que é muito importante e impactante.”
Nova York protagonizou um papel importante na vida de Ingrid, mas também apresenta desafios diários. Embora tenha sido palco de oportunidades, a cidade tem uma desigualdade racial que se escancara em diversos aspectos do dia a dia. Ao perceber isso, Ingrid começou a se mobilizar em ações por igualdade e ganhou reconhecimento mundial no ano passado ao liderar a corrida por uma linha de sapatilhas com tons para a pele negra. Já em 2020, sua iniciativa é mostrar o preconceito racial na saúde através do projeto The Call.
VIESES RACIAIS
Em 2017, Ingrid lançou a EmPowHer NY, uma organização sem fins lucrativos que oferece uma plataforma colaborativa criada para compartilhar histórias e dar voz a mulheres reais, que estão determinadas a atingir seus objetivos apesar dos desafios que enfrentam. Em meio a diversos projetos, no início de março de 2020, em parceria com a agência The Bloc, foi lançado o The Call Experiment. Com a participação da atriz Corin Wells, o objetivo do estudo é mostrar a diferença no atendimento em uma linha direta de enfermagem 24 horas de acordo com a cor de pele de quem faz a ligação.
Com nomes distintos e característicos de certas raças ou culturas – como Lakisha Washington (negra) e Sarah Shield (branca), por exemplo – a atriz ligou para o atendimento algumas vezes reclamando dos mesmos sintomas. Os resultados mostraram que 77% das ligações com “nomes negros” terminaram com a recomendação de ir a uma unidade de atendimento de urgência, um protocolo para pequenos problemas de saúde. No entanto, o “nome branco” – que usou exatamente o mesmo script – foi aconselhado a ir ao pronto-socorro, que é o protocolo para qualquer paciente com sintomas urgentes.
“Aqui nos EUA as pessoas têm nomenclaturas diferentes. Dependendo do nome é possível prejulgar se é latino, negro ou branco”, explica Ingrid. Sendo assim, as ligações da atriz não foram atendidas de forma igualitária, mas sim com um filtro de preconceito. “As pessoas não deveriam ser julgadas pelos seus nomes ou raças, e sim pelo que elas realmente estão sentindo naquele momento… Os resultados do projeto foram surpreendentes.”
MEDICINA INCONSISTENTE
O The Call Experiment foi filmado antes dos trágicos eventos que levaram à morte de George Floyd, colocando um holofote sobre o racismo sistêmico e vários outros tópicos de desigualdade racial ao redor do mundo, tornando-os mais relevantes do que nunca. Tanto a EmpowHer NY quanto o The Bloc compartilham os mesmos valores fundamentais de diversidade, inclusão e impacto nos pacientes dentro do espaço da saúde, então essa parceria parecia inevitável.
“Quando fui convidada por Bernardo Romero, diretor de criação do The Bloc, para participar do The Call, senti que era um momento crucial para intensificar, compartilhar e falar sobre este assunto usando minha voz como ativista”, destacou a bailarina.
Porém, o projeto não foi seu primeiro contato com essa realidade discriminatória do sistema de saúde. “Percebi pela vivência. Com a EmPowHer NY, temos tido contato com muitas mulheres que passam por esse tipo de tratamento nos hospitais. Outras nem têm ideia de que isso está acontecendo, mas escutam comentários como ‘negros não sentem dor, são fortes, aguentam’. Isso não existe”, reforça. “É um mito que reverberou por muito tempo. Mas muitas vidas acabam sendo perdidas por conta dessa inconsciência na medicina.”
Embora essa iniciativa não tenha sido inspirada pela pandemia de coronavírus, é difícil ignorar que a comunidade negra esteja morrendo de Covid-19 em números desproporcionalmente altos nos Estados Unidos – e no Brasil. “Claramente, uma tendência está sendo observada”, afirma Bernardo Romero, diretor de criação do The Bloc. “É mais relevante do que nunca.”
Quer se trate de coronavírus, câncer de mama, doença cardíaca, cuidados maternos, derrame ou outra emergência de saúde, a comunidade negra não está recebendo a mesma atenção que seus colegas brancos. “Isso vem acontecendo há muito tempo”, diz Ingrid. “Já passou da hora de falarmos sobre esse assunto para todo o mundo. Esta é a nossa maneira de dizer que já chega!”
Para combater essas disparidades, os parceiros de projeto dizem que os profissionais de saúde devem reconhecer que o racismo influencia nos cuidados com a saúde, de forma consciente ou inconsciente. Eles desejam que este programa cumpra exatamente esse papel: iluminar não apenas o problema, como também encorajar a trabalharmos juntos para reduzir as disparidades raciais e étnicas na saúde.
O QUE VOCÊ PODE FAZER PARA AJUDAR
EmpowHer NY e The Bloc criaram vários projetos para instruir e incitar mudanças, incluindo uma série de programas de treinamento online e petições. “Qualquer pessoa, em qualquer lugar, pode ajudar a fazer a diferença simplesmente visitando o site da EmPowHer New York e assinando nossa petição”, explica Ingrid. “Nós encorajamos as pessoas a compartilharem nas redes sociais e em outros meios de comunicação, além de terem conversas com pessoas próximas sobre o assunto. Sensibilizar é fundamental, exigindo a atenção que o tema merece.”
Romero também enfatiza a importância de agir, especialmente no que diz respeito à eleição deste ano. “Fale! Vote!”, ele incentiva. “Coloque pressão no congresso!”, diz.
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O objetivo final seria estabelecer um treinamento obrigatório para hospitais e serviços de saúde para garantir atendimento de qualidade para todo mundo. Mas, enquanto isso não acontece, a bailarina prega que os pacientes mesmos se defendam. “Eu tenho feito isso às vezes. O único problema é que alguns dos médicos não ouvem, então como podemos seguir em frente?”, pergunta, já com a resposta na ponta da língua. “Quanto mais barulho fizermos sobre isso, mais podemos trabalhar juntos para eliminar esse problema.”
Para Ingrid, essa é a única forma de fazer com que as pessoas enxerguem a realidade, recorrente e escondida em meio a outras diversas desigualdades do cotidiano. “Só quem é negro sabe o que é o racismo. É muito importante compartilhar para que pessoas que nunca passaram por isso ouçam e sejam empáticas”, finaliza.
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