O trabalho em home office deixou de ser apenas um sinal dos novos tempos tecnológicos: a Covid-19 o transformou em ferramenta a serviço da política de saúde pública. Isso porque as regulamentações surgidas para disciplinar a pandemia não se limitam a estimulá-lo, mas o colocam como meio de viabilizar o isolamento social, ou mesmo como uma medida compulsória a ser adotada, em determinados casos, por todos os empregadores.
Para implementar com regularidade o teletrabalho, contudo, é preciso, antes de mais nada, atenção à nossa idosa CLT.
É verdade que a reforma trabalhista de 2017 — a maior alteração legislativa em matéria de trabalho feita desde 1943 – foi quem trouxe, pela primeira vez, uma regulamentação específica sobre o tema no Brasil. O objetivo declarado era dar uma resposta legal às novas formas de contratação surgidas a reboque da revolução tecnológica que, neste início de século XXI, reinventa as interações humanas e edifica uma nova realidade nas relações de trabalho.
Naquela altura, contudo, sequer se poderia imaginar a situação excepcional que o mundo viveria em 2020. Bem por isso, essa regulamentação foi pensada como parte de um todo — apenas um aspecto a ser lido e interpretado em conjunto com o molde tradicional celetista. Em outras palavras: o teletrabalho foi tratado como medida excepcional, de modo que veio acompanhado de indissociáveis burocracias e requisitos objetivos.
De acordo com a CLT, por exemplo, o teletrabalho, para se enquadrar nos limites da legalidade, deve ser registrado em contrato, com a especificação das atividades a serem desempenhadas e há de ser preponderantemente fora das dependências da empresa (excluindo-se, portanto, a flexibilidade de diversos arranjos em que se poderia trabalhar um ou dois dias em home office).
Somam-se a todos os requisitos legais, ademais, os conceitos e princípios clássicos do Direito do Trabalho que impõem interpretações restritivas e nem sempre adequadas aos novos tempos tecnológicos. É o que ocorre, por exemplo, com as limitações e controle de jornada.
O isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 expôs esse anacronismo com robustez. De repente, mais do que um luxo ou uma excepcionalidade, o home office tornou-se imperiosa necessidade que se universalizou e foi além: mostrou que veio para ficar.
Uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas feita em julho deste ano aponta que cerca de 90% das empresas brasileiras alteraram seu modo de operar em razão da pandemia. Em atividades administrativas, o home office foi adotado por mais de 80% das organizações. Em mais de 50% delas, as alterações serão declaradamente incorporadas de forma definitiva. É este, portanto, o novo normal, para se utilizar a expressão da moda. Vale dizer: a legislação recentemente aperfeiçoada encontrou seu cruel teste de realidade. E já começam a aparecer debates e conflitos de interpretação quanto ao trabalho nessas condições. São levantadas questões como a flexibilidade de horários, o controle de jornada, o custeio de equipamentos, os limites de responsabilidade do empregador e do empregado pela segurança do ambiente de trabalho.
De certa forma antevendo isso, o governo federal havia feito incluir na Medida Provisória nº 927, editada para flexibilizar regras trabalhistas em razão da pandemia, todo um capítulo sobre teletrabalho. Ao lado, portanto, de dispositivos que asseguravam regras mais flexíveis quanto às férias, banco de horas e FGTS, foi estabelecida uma espécie de desburocratização total do trabalho remoto: garantiu-se aos empregadores a possibilidade de estabelecer qualquer regime de trabalho à distância, independentemente da existência de registros e de acordos, mesmo coletivos; estendeu-se a autorização de trabalho remoto para estagiários e aprendizes; e estabeleceu-se que o tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada não constituía horas de trabalho.
Contudo, a MP 927 perdeu vigência em 19 de julho, por não ter sido convertida em lei, em razão, alegadamente, da falta de consenso quanto às mais de mil emendas parlamentares apresentadas (sugestões de alteração de texto).
Estamos todos de volta, pois, ao já velho texto celetista que, com suas limitações e interpretações, pede uma nova atualização para os tempos que virão. Impõe-se tratar o home office como a normalidade que já se fez presente e não como a excepcionalidade que merecia distinção. É preciso adaptar a velha lei ao novo normal.
Ana Fischer é juíza do Trabalho da 3ª Região. Integrou a comissão de redação da Reforma Trabalhista e de outras normas legais. É uma das coordenadoras do GAET – Grupo de Altos Estudos do Trabalho do Ministério da Economia.
Siga FORBES Brasil nas redes sociais:
Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn
Participe do canal Forbes Saúde Mental, no Telegram, e tire suas dúvidas.
Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.
Tenha também a Forbes no Google Notícias.
Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião de Forbes Brasil e de seus editores.