O empregador convoca o empregado apenas quando há demanda e o paga somente pelas horas trabalhadas, sem o compromisso de nenhum desembolso até o próximo serviço, que pode ocorrer depois de dias, semanas ou até meses. O empregado, por sua vez, registra-se em vários empregadores para, quando quiser e apenas se quiser, prestar serviços a qualquer um deles. Aos habituados com as rígidas regras trabalhistas brasileiras, esse arranjo pode soar estranho ou mesmo ilegal – lembra o estilo norte-americano de contratação ou o trabalho autônomo informal. Trata-se, contudo, de um dos vínculos de empregos previstos na brasileiríssima CLT: o contrato de trabalho intermitente.
O contrato intermitente foi criado pela Reforma Trabalhista de 2017 como uma resposta jurídica ao desemprego e à informalidade. É um contrato flexível que faz sentido em um país com milhões de trabalhadores que atuam de forma autônoma, fora do sistema legal, fazendo “bicos”. Sua característica principal, a intermitência, o faz ideal para setores como o de comércio e de serviços – em especial para bares, restaurantes e estabelecimentos voltados ao turismo.
Desde que surgiu, no entanto, o contrato de trabalho intermitente vem sendo objeto de críticas contundentes por parte da comunidade jurídica. Os defensores do discurso do “tudo ou nada” argumentam que se trata de uma precarização do emprego porque se transmite ao empregado o risco do negócio — no caso, a volatilidade da demanda — e, assim, não se garante a ele um ganho mínimo por mês. (É um raciocínio que não leva em conta, todavia, o fato de que a alternativa a esse trabalhador seria fazer, no indigno e frequentadíssimo ambiente da informalidade, exatamente o que este vínculo de emprego o permite. A diferença vantajosa, portanto, é que o vínculo formal lhe estende a cobertura legal e previdenciária e o retira, desse modo, da invisibilidade. Não é pouca coisa.)
Tais críticas acabaram por trazer alguma insegurança jurídica a essa espécie de contratação. Empregadores temerosos da resistência por parte dos tribunais e das entidades trabalhistas vinham se abstendo de usar a modalidade que, por isso, era vista como o patinho feio da Reforma Trabalhista.
Ocorre que a crise trazida pela pandemia de Covid-19 parece ter criado um ambiente para que o patinho feio vire cisne. E já se veem penas brancas. O contrato intermitente tem sido a estrela dos números de emprego nos últimos meses, com indicadores que destoam dos demais. Enquanto milhares de vagas normais são fechadas todos os meses, ele teima em apresentar saldos positivos: em março, foram mais de 6 mil novas vagas sob essa modalidade; em maio, mais de 2,4 mil; e, em junho, enquanto perdíamos mais de 10 mil vagas de emprego, o intermitente acrescia mais de 5 mil novos postos de trabalho à formalidade. Findo o primeiro semestre deste frustrante 2020, o contrato intermitente é a única forma de contratação que apresentou saldo positivo de vagas no ano.
Isso é compreensível. O trabalho sob demanda encaixa-se com perfeição à situação excepcionalíssima que enfrentamos: de cautelosa atividade empresarial, em meio à abrupta paralisação econômica. A conjuntura, afinal, é de imprevisibilidade dos meses vindouros; de rígido controle de custos; de obrigação de se operar com limitação espacial em razão das medidas de prevenção; de impossibilidade, enfim, de se fazerem compromissos trabalhistas de longo prazo. Diante disso, é quase um milagre jurídico poder contar com uma forma legal de mão de obra que se ajuste à cada necessidade momentânea. E ao menos parte dos empregadores parece ter percebido que estamos diante de uma boa oportunidade de usá-la. Do ponto de vista do trabalhador, este mesmo cenário incerto e de crescente desemprego torna também preferível a contratação flexível e sob demanda, em lugar de simplesmente estar alijado do mercado formal.
Junte-se a isso uma outra razão pela qual o atual ambiente torna propício o crescimento de vagas do contrato intermitente: a resistência a esse tipo de contratação tende a se arrefecer. A crise excepcional e imprevista tem, de fato, trazido maior tolerância à flexibilização de regras e princípios trabalhistas, inclusive por parte dos tribunais. Isso ficou evidente, por exemplo, quando o STF, ao analisar as normas emergenciais de manutenção do emprego, as validou quase completamente, tendo criado, inclusive, o surpreendente e histórico precedente de prevalência dos acordos individuais sobre a lei. Também nos tribunais trabalhistas já se veem julgados mais compreensíveis à excepcionalidade do momento, como, por exemplo, as renegociações de acordos anteriormente homologados ou flexibilizações de requisitos formais de bancos de horas e do trabalho remoto durante o isolamento social. Parece haver, enfim, um certo consenso quanto à necessidade de cooperação para retomada econômica e para a solução da inédita crise sanitária.
Eis, portanto, o cenário e a hora para lançar mão dessa espécie de contratação que tem tudo para se tornar um importante instrumento de retomada do emprego. Trabalho sob demanda: é só começar a usar.
Ana Fischer é juíza do Trabalho da 3ª Região. Integrou a comissão de redação da Reforma Trabalhista e de outras normas legais. É uma das coordenadoras do GAET – Grupo de Altos Estudos do Trabalho do Ministério da Economia.
Siga FORBES Brasil nas redes sociais:
Facebook
Twitter
Instagram
YouTube
LinkedIn
Participe do canal Forbes Saúde Mental, no Telegram, e tire suas dúvidas.
Baixe o app da Forbes Brasil na Play Store e na App Store.
Tenha também a Forbes no Google Notícias.
Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião de Forbes Brasil e de seus editores.