No centro de pesquisa e desenvolvimento do Grupo Boticário, em São José dos Pinhais (PR), um setor chama a atenção. Em uma sala à meia-luz, cujas paredes mostram projeções com imagens e sons de diferentes cenas da natureza, pessoas trabalham em meio a várias fragrâncias e objetos que remetem às antigas perfumarias, e frases que conectam o perfume à elementos intrínsecos ao ser humano: memórias, felicidade, experiências.
Trata-se do Núcleo de Inteligência Olfativa, área do grupo em que especialistas criam fragrâncias e definem estratégias para o desenvolvimento de novos produtos, com foco no consumidor e lançando mão de tecnologia de ponta. O setor é comandado por César Veiga, primeiro perfumista do grupo, que assumiu o cargo em janeiro deste ano, mas atua na companhia há 25 anos.
“Trabalhamos na validação olfativa de novos ingredientes nesta área, que foi recentemente reformulada para se tornar mais rica e imersiva. Trabalhamos com sensações, transformamos o invisível em algo tangível. Não conseguimos tocar cheiros, mas conseguimos senti-los, e por isso somos movidos por todos os nossos sentidos neste ambiente,” explica Veiga.
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Com mais de 25 anos de casa, Veiga tem em seu currículo o desenvolvimento de clássicos da marca, como Malbec, Lily e outros, como Egeo, primeiro perfume do mercado a ser desenvolvimento inteiramente com inteligência artificial, em 2019. A empresa não revela quanto exatamente tem investido nas iniciativas de tecnologia, mas o valor aumentou dez vezes nos últimos quatro anos.
“O mundo das fragrâncias é milenar. Conseguimos colocar todo o nosso conhecimento que temos da área no computador e os algoritmos conseguem acelerar mais as conexões, nos mostrar caminhos”, diz Veiga, sobre a forma que o Grupo Boticário, cujas marcas incluem Quem Disse, Berenice?, Eudora e O.u.i, desenvolve perfumes.
Veiga explica que o grupo combina técnicas tradicionais para capturar cheiros, e então usa IA para “traduzi-los” em uma fórmula ou ingredientes e analisá-los para identificar padrões e novas combinações de fragrâncias. “Minha profissão pode ser associada à IA, mas não há máquina que possa substituir a sensibilidade humana”, diz o perfumista, acrescentando que, ao aplicar a tecnologia a informações como briefings, público-alvo e o conhecimento interno existente, é possível encurtar processos do desenvolvimento de uma fórmula que levariam até dois anos, para 24 horas.
Um vasto repertório
O uso da inteligência artificial no trabalho, é mais uma das nuances do vasto ferramental de que Veiga dispõe para fazer o seu trabalho. O perfumista e seu time têm à disposição mais de 350 ingredientes de origem natural – que incluem desde cheiros típicos do Brasil como jaborandi, até o de palmeiras típicas de Cuba – além de outras centenas de insumos de origem sintética.
“Se recebemos um briefing com um conceito em que, por exemplo, queremos transportar um consumidor a uma cachoeira, com a água gelada e corrente com a natureza ao redor, buscamos ingredientes que façam essa tradução olfativa”, diz o perfumista, que também leva em conta insights de áreas como neurociência para fazer pontes entre a pesquisa olfativa e sua relação com bem-estar e comportamento humano.
Com graduação em Farmácia, Veiga se apaixonou pela perfumaria em 1996, quando fez um estágio na área e pôde unir arte e ciência: “Sou apaixonado por transformar ideias em produtos que tornarão o mundo mais belo e as pessoas mais felizes, tocando o coração delas. Eu tinha uma bagagem técnica, mas minha veia artística ainda adormecida: quando encontrei a perfumaria, entendi que estaria realizado”, conta.
Desde então, o perfumista tem trilhado uma formação complementar que já soma cerca de seis anos em países como Estados Unidos, Alemanha e França, onde recentemente passou pelo ISIPCA (Institut Supérieur International du Parfum, de la Cosmétique et de l’Aromatique Alimentaire), renomado instituto francês fundado pelo perfumista Jacques Edouard Guerlain.
Além de estar antenado nas tendências do mercado de perfumaria, Veiga viaja ao redor do mundo em busca de sensações e cheiros diferentes, além de ser flautista e pintor. “Tudo vira inspiração: música, arte, literatura, experiências. A exposição a cenários em que o comportamento humano se manifesta são parte da nossa atualização”, conta.
Segundo o especialista, esse repertório pessoal também agrega à sua capacidade de projetar fragrâncias que vão satisfazer os desejos futuros do consumidor. “Não trabalhamos com o dia de hoje: estamos sempre pensando no futuro, tendências olfativas para daqui a quatro, cinco anos”, diz Veiga.
Tendências na perfumaria
Ao comentar sobre qual será o perfume da moda em 2028, Veiga diz que até antes da pandemia, a regra para fragrâncias era de cheiros”muito gourmand, muito dark”. “Tudo era doce, pesado. E hoje, [após a Covid-19] temos essa coisa de respirar, que é uma tendência que sempre vem depois de grandes crises, uma forma de deixar tempos difíceis para trás. Hoje, temos feito isso”, diz.
O consumidor pós-Covid procura fragrâncias mais leves, e leva em conta aspectos como o contato com a natureza, sustentabilidade e beleza. “São [fragrâncias] mais transparentes, orvalhadas e não tão pesadas como as fragrâncias gourmand de dez anos atrás. O que não quer dizer que a procura por [perfumes mais antigos] vai deixar de existir, mas terão também pessoas procurando o novo, e o que ainda não está disponível no mercado”, ressalta.
Outra tendência para este segmento é o desenvolvimento de perfumes compartilháveis. “Quando a perfumaria surgiu, não existia essa coisa de que a rosa é algo feminino e a madeira, masculina. Vemos um retorno disso, em que a grande tendência é não rotular mais [os perfumes] por gênero, mas sim por estilo de vida”, finaliza.