Dia Mundial do Refugiado: 5 empreendedores que estão reconstruindo a vida no Brasil
Beatriz Calais
20 de junho de 2021
Divulgação
Renée Ross-Londja é da Guiana Inglesa e Lambert da República Democrática do Congo.
O estudante universitário de jornalismo Anas Obeid vivia um início próspero de carreira em 2012. Aos sábados, apresentava um programa de 10 minutos em um canal televisivo em Damasco, capital da Síria. Faltando apenas um ano para se formar, o jovem já tinha experiência em rádio, jornal e televisão, e uma vontade imensa de crescer até que um grupo terrorista – que mais tarde ficou conhecido como Estado Islâmico – cruzou o seu caminho e o fez refém. Junto de mais sete jornalistas, Obeid foi preso e, quase uma década depois do ocorrido, ainda não sabe como saiu vivo. Grande parte de seus colegas não teve a mesma sorte.
A família de Obeid pagou o resgate e, após o reencontro, fugiu para o Líbano, o país mais próximo, para escapar da guerra que avançava na Síria. No vizinho de fronteira, o jovem atuou junto às Nações Unidas em campos de refugiados e ONGs voltadas para crianças, mas não conseguia achar emprego facilmente. “Eles tratavam a gente muito mal. Naquela época, já tinha muitos sírios se refugiando no país, então os libaneses não queriam que tomássemos seus postos de trabalho”, relembra. Sem condições de vida no país, o jovem começou a buscar outras opções de asilo. “Eu passei por quase todas as embaixadas do mundo e ninguém me deu passaporte. O único lugar que abriu as portas para mim foi o Brasil. Cheguei aqui em julho de 2015.”
Obeid faz parte dos 5,5 milhões de sírios – maior grupo de refugiados do mundo segundo os últimos dados do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) – que foram forçados a fugir de seu país por conta da guerra civil. “Eu não sou estrangeiro, sou refugiado. O estrangeiro sai voluntariamente, mas eu fui retirado. Obrigado a sair e deixar para trás minha família e minha cultura. A vontade de voltar existe, mas é difícil. Não sei se eu tenho coragem”, desabafa. Seu sentimento é compartilhado por cerca de 26,4 milhões de refugiados ao redor do mundo.
No Brasil, de acordo com o relatório “Refúgio em Números”, feito em 2020 pelo Conare, há 31.966 pessoas reconhecidas como refugiadas – indivíduos que estão fora de seus países de origem devido à violação de direitos humanos ou perseguição relacionada a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política. A maior parte desse grupo é de venezuelanos, seguidos por sírios e congoleses.
Daniel Velez* (sobrenome fictício por política da ONG Visão Mundial, que não permite compartilhar informações pessoais) faz parte do contingente de venezuelanos que decidiu apostar no Brasil para buscar uma vida melhor. “Eu conseguia trabalhar, mas a questão econômica do país era muito difícil. Para sobreviver, eu trabalhava cerca de 18 horas por dia”, conta ele. Formado em arquitetura, Velez trabalhou por 25 anos como marceneiro e, embora agora tenha seu próprio negócio no Brasil, a AM Móveis Planejados, sua recepção no país, em 2017, não foi fácil. “Na primeira semana, já percebi que mão de obra venezuelana é muito desvalorizada. As pessoas pagam muito pouco porque acham que estamos morrendo de fome e temos que aceitar qualquer coisa.”
A realidade exposta por Velez fica mais clara quando olhamos os dados sobre o ingresso de imigrantes no mercado de trabalho brasileiro. Segundo informações de uma pesquisa realizada pelo Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e pela CSVM (Cátedra Sérgio Vieira de Mello), embora os pedidos de refúgio tenham aumentado cerca de 160% de 2018 para 2019, a entrada de refugiados e solicitantes no mercado de trabalho formal cresceu apenas 52%. Além disso, a taxa de desemprego medida entre refugiados é de 19,5%, um índice bem superior à média nacional, que gira em torno de 12%. Uma diferença grande considerando-se que refugiados apresentam uma qualificação superior: cerca de 37% deles têm curso superior, em comparação aos 17% de brasileiros.
A ignorância e o preconceito contribuem de forma expressiva para essa estatística. Mesmo com informação de fácil acesso, algumas empresas ainda têm receio de contratar refugiados por achar que a prática é irregular, passível de causar problemas com o Ministério do Trabalho ou com a Polícia Federal. Quando isso se une ao preconceito, a questão se torna ainda mais complexa. “Para alugar o ponto do meu escritório foi muito difícil. As pessoas não confiavam em mim”, revela Velez. “Mas eu decidi que não iria trabalhar de graça, muito menos desistir.”
NÃO SE LUTA SOZINHO
Hoje, Velez vive bem graças ao seu negócio. Ele ressalta, no entanto, que para chegar a este ponto, o apoio da ONG Visão Mundial foi muito importante. A partir do projeto “Ven, Tú Puedes”, financiado pelo PRM (Escritório de População, Refugiados e Migração do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América), Velez e diversos outros venezuelanos conseguiram apoio para colocar suas ideias empreendedoras em prática. O programa, até o momento, atende imigrantes da Venezuela que estão morando nas cidades de Boa Vista, Roraima, Manaus, Amazonas e na capital paulista.
“O ápice do nosso trabalho é a apresentação de planos de negócios sustentáveis”, conta Catty Lopes, uma das responsáveis para resposta a emergências da ONG Visão Mundial. “Os refugiados apresentam suas ideias, são avaliados por uma banca e os melhores planos recebem um capital semente para impulsionar o negócio. O Velez foi um desses escolhidos.” A instituição oferece, ainda, oficinas, cursos de capacitação e mentoria para os atendidos. De 2019, ano inicial do projeto, até agora, cerca de 100 imigrantes da Venezuela conseguiram emprego.
O plano para os próximos anos, com o aumento da crise migratória, é começar a focar esforços também em outras nacionalidades. Para Catty, casos como o de Velez dão esperança para a continuidade do trabalho. “Um dia, ele estava buscando emprego. Hoje, ele proporciona espaço de trabalho para outras pessoas, inclusive brasileiros. É muito bom assistir a isso”, destaca.
A boa notícia é que o trabalho da ONG Visão Mundial não é o único focado em ajudar refugiados no país. Com apoio e parceria do Sesc-SP, a agência da ONU para refugiados Acnur e a Rede Brasil do Pacto Global criaram a plataforma Refugiados Empreendedores, que promove cursos de capacitação, feiras, eventos, oficinas e ampla divulgação dos trabalhos dos imigrantes.
O próprio Obeid, que na Síria estudava jornalismo, teve seu caminho direcionado para o empreendedorismo quando chegou ao Brasil. No Sesc-SP, conduziu oficinas e participou de feiras para divulgar uma de suas habilidades: a produção de perfumes. “Sempre fiz o meu próprio perfume com as essências árabes. De repente, aqui no Brasil, as pessoas começaram a elogiar e dizer que eu estava muito cheiroso, até que um amigo perguntou por que eu não vendia”, conta, com bom humor. Gerado a partir da mistura de essências árabes – geralmente almíscar, sândalo, âmbar e oud -, com álcool e fixador, Obeid começou a produzir os perfumes de forma caseira e vender na internet.
A partir daí, ampliou sua oferta para produtos de artesanato árabe, consultoria de cheiros e se desenvolveu como perfumista. “Deu certo, mas agora eu sonho alto aqui no Brasil. Quero ser diretor de cinema e estou escrevendo um livro”, revela. “Na pandemia, uma questão ficou muito clara para mim. Todo mundo ficou com muito medo de perder a família, o trabalho, quem sabe até a vida. Para os refugiados, esse é um medo constante.”
Para marcar o Dia Mundial do Refugiado, comemorado hoje (20), contamos, a seguir, cinco histórias de pessoas que largaram tudo em suas terras natais e vieram empreender no Brasil: