Como uma rapper do YouTube se tornou suspeita de uma fraude de R$ 20 bi em bitcoins

20 de março de 2022
Reprodução/ Eyepress - Newscom

Heather Morgan e seu marido, Ilya Lichtenstein, são acusados de lavar 119.754 bitcoins roubados da Bitfinex

No dia de seu casamento, em novembro de 2021, Heather Morgan era o centro das atenções. Cercada dos dois lados por pessoas que a abanavam com folhas douradas de palmeira, ao som de uma linha de baixo distorcida, ela fez um rap no espaço de eventos de Los Angeles para amigos e familiares reunidos para a cerimônia.

O noivo, Ilya Lichtenstein, assistia. A dupla havia descrito o evento em um vídeo no YouTube como “uma celebração do nosso eu verdadeiro e do nosso amor”. Mas a performance de Morgan sob seu alter-ego rapper “Razzlekhan” acabou se tornando um símbolo do que seria a vida do casal.

Apenas três meses depois, eles seriam presos pelo governo dos Estados Unidos e acusados de lavar uma fortuna de bilhões de dólares em bitcoins que foram roubados da exchange de criptomoedas Bitfinex em 2016. O casal não foi acusado do roubo em si.

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No dia do casamento, 13 de novembro, os dois sabiam que eram investigados pela polícia. Quando foram presos em 8 de fevereiro, o Departamento de Justiça norte-americano divulgou a ação como “um grande revés para os criminosos cibernéticos que exploram criptomoedas” e disse ter recuperado os bitcoins, que são avaliados em US$ 3,6 bilhões – foi a maior apreensão financeira da história dos Estados Unidos.

A atenção da mídia se concentrou no bizarro alter-ego de Morgan, Razzlekhan – uma personagem que ela criou para o YouTube que fazia raps sobre assuntos que iam de sucesso e dinheiro à comida e viagens. Seu relacionamento com Lichtenstein, de 34 anos, acrescentou tempero à história, com alguns veículos rotulando-os como o casal Bonnie e Clyde das criptomoedas.

Por trás das manchetes, o que permaneceu um mistério foi como Morgan, de 31 anos, uma mulher de origem humilde da zona rural da Califórnia – onde ela descreveu ter trabalhado com colhendo nozes e limpando casas –, ganhou uma riqueza inimaginável e depois se tornou motivo de piada.

A fortuna roubada da Bifinex cresceu de US$ 70 milhões em 2016 para mais de US$ 4 bilhões por causa da disparada do preço do bitcoin.

O interesse de todo mundo sobre o caso cresceu, e, dias após as prisões, tanto a Netflix quanto a Forbes anunciaram que lançarão documentários sobre o casal.

A Forbes entrevistou 18 pessoas que conheciam Morgan e Lichtenstein, e algumas delas compartilharam mensagens de textos, áudios e vídeos de Morgan. O material mostra uma mulher determinada a se tornar uma referência do Vale do Silício e que lançou sua própria startup, uma empresa de marketing chamada Salesfolk. Isso foi antes de conhecer Lichtenstein, um homem que parecia despertar o pior dela, de acordo com pessoas que a conheciam.

Morgan se sentia atraída por “caras que estavam um pouco acima de seu nível, alguém que ela poderia usar para impulsionar sua própria carreira”, diz Haley Hidalgo, que afirmou já ter sido a melhor amiga e funcionária de Morgan. “Acho que a diferença é que Ilya era mais inteligente do que os outros [homens com quem ela se relacionou].”

Em fevereiro, os procuradores federais disseram em uma petição apresentada à Justiça que o casal ainda tem acesso a 25 mil bitcoins, que valem aproximadamente US$ 1 bilhão. A análise fornecida à Forbes pela Elementus, um mecanismo de busca de blockchain que rastreia transações de bitcoin, descobriu que o casal conseguiu proteger essa parte da fortuna que não foi apreendida pelas autoridades por meio de uma complexa série de transferências de criptomoedas.

Max Galka, CEO da Elementus, disse que os bitcoins foram transferidos mais de 20 mil vezes, o que indica que algum tipo de software de automação foi usado.

Galka disse à Forbes que alguns dos bitcoins não apreendidos foram transferidos através do mercado da darknet Hydra, que tem sede na Rússia. “É o maior mercado darknet existente”, diz ele. “É altamente improvável que a polícia consiga continuar rastreando esses valores.”

De acordo com a Elementus, a última vez em que o montante foi transferido foi em 25 de janeiro, pouco antes do casal ser preso em seu apartamento em Wall Street.

Onde os 25 mil bitcoins estão guardados é uma pergunta sem resposta. Quase quatro meses após Morgan cantar rap em seu casamento, a devoção inabalável dela ao homem que alguns chamavam de seu “Clyde do Cripto” pode chegar ao fim à medida que as negociações para uma delação premiada avançam.

Os advogados que inicialmente defenderam tanto Morgan quanto Lichtenstein escreveram em uma petição apresentada em 11 de fevereiro ao tribunal que a investigação do governo dá “saltos conclusivos e sem fundamento”, e que as alegações dos procuradores são “especialmente frágeis em relação a Morgan”. Morgan decidiu contratar advogados diferentes dos de seu marido em 28 de fevereiro.

Tanto Morgan quanto Lichtenstein devem comparecer em 25 de março a uma audiência. O advogado de Lichtenstein, Samson Enzer, não respondeu aos pedidos de comentários. Zak Sawyer, porta-voz do novo advogado de Morgan, Marshall Miller, afirmou que a defesa não comentaria o caso.

Origem humilde

Durante a infância na pequena cidade de Tehama, na Califórnia – com 400 habitantes, dois pontos de ônibus e duas igrejas – ela queria escapar.

“Quando eu era criança, eu não tinha muitos amigos, e foi muito difícil porque ninguém acreditava em mim, me apoiava, me entendia e ninguém queria fazer as coisas que eu queria fazer profissionalmente”, disse ela em um vídeo do YouTube publicado em janeiro de 2021. “Foi um pesadelo.”

Morgan descreveu ter sido vítima de bullying inúmeras vezes e vários de seus ex-colegas de classe disseram à Forbes que ela era ridicularizada por causa de um problema de fala. Ela se transferiu para uma escola maior em Chico, a 30 minutos de carro da cidade, e afirmou que um professor lá também a desencorajou a seguir suas ambições profissionais.

“Você é um peixe grande em um pequeno lago, mas se for para o mar, pode se afogar”, Morgan recorda o professor ter dito. “Lembro-me de pensar … ‘Isto não é um lago, é uma poça de lama, mas eu sou um tubarão, pertenço ao oceano!'”

Anos depois, as pessoas que moravam na cidade natal de Morgan ficaram surpresas ao saber das acusações contra ela – e também chocadas com detalhes de sua vida pessoal que vieram à público desde então. “É uma história e tanto”, disse o prefeito de Tehama, Robert Mitchell, à Forbes.

Pessoas que conheceram Morgan durante sua infância e adolescência dizem que ela se destacava por sua inteligência. “Mesmo entre os nerds, Heather era considerada bastante nerd”, disse uma ex-colega de escola agora conhecida como Kitty Davies, em um vídeo do TikTok. “Ela era uma daquelas garotas que tomavam notas realmente meticulosas das aulas”, disse ela.

Morgan estudou japonês, o que a levou a um programa de intercâmbio no Japão. Era algo que ela acreditava que realizaria seu “sonho de sair [da zona rural da Califórnia] e ir para muito longe”, ela escreveu mais tarde.

“Uma expatriada em mercados emergentes”

Depois de se formar em economia na Universidade da Califórnia, em 2011, Morgan morou em Hong Kong, onde trabalhou na Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong dando aulas para estudantes sobre a cultura americana.

Quando ela chegou ao Cairo em 2012 para uma pós-graduação em economia internacional, seu sonho de infância de escapar de uma pequena cidade dos Estados Unidos havia se tornado realidade.

Com seu senso de aventura, Morgan criou um círculo de amigos e às vezes brincava dizendo que era uma “narcisista”, segundo Hayley Hidalgo, que foi sua colega na Universidade Americana do Cairo.

Durante esse tempo, Morgan era uma fã ávida do rapper satírico Lil Dicky, conhecido pelos vídeos no YouTube, e do trio de comédia The Lonely Island, liderado por Andy Samberg. Às vezes, do nada, Morgan começava a cantar seu próprio rap freestyle. “Eu pensei: aqui está uma pessoa interessante”, diz Hidalgo. “Eu a considerei como minha melhor amiga por vários anos.”

Morgan às vezes dizia coisas que não faziam sentido, de acordo com Hidalgo e outros amigos. Frequentemente, ela afirmava que era economista e, em postagens em seu blog, assinava como “economista e escritora”. Hidalgo achou isso estranho, porque apesar de ter um diploma de bacharel em economia, Morgan não trabalhou como economista.
Morgan também dizia estar escrevendo um livro sobre a comunidade gay no Cairo. Depois, passou a dizer para todo mundo que era turca, alegando que seu nome verdadeiro era Heather Reyhan. (Na verdade, é Heather Rhiannon Morgan.)

Morgan se tornou um elemento central da cena de festas LGBTQ do Cairo, de acordo com um amigo que ela conheceu na Tunísia, que descreve os eventos como “um pouco underground”. A comunidade gay enfrenta uma dura repressão no Egito, mas Morgan organizou festas e registrou um domínio na internet, o ComeOutCairo.com (SaiaDoArmárioCairo.com), embora o site nunca tenha se materializado.

Então, um dia, no início de 2013, Morgan entrou de supetão na sala de Hidalgo no Cairo e anunciou que ia voltar para a Califórnia.

“Não estou ganhando dinheiro”, disse ela, segundo Hidalgo. “Preciso ganhar dinheiro.”

Apesar de afirmar no LinkedIn que ela concluiu um mestrado na Universidade Americana do Cairo, um porta-voz da instituição disse à Forbes que Morgan deixou a universidade depois de um semestre e nunca obteve seu diploma.

Uma pequena multidão de amigos se reuniu para se despedir de Morgan. “Havia uns oito carros, todos os amigos dela foram dizer adeus a ela”, diz o amigo que ela conheceu na Tunísia.

Tentando enriquecer no Vale do Silício

Morgan desembarcou na Bay Area e começou a tentar construir relacionamentos profissionais com empreendedores.

“Eu abandonei minha identidade como expatriada em mercados emergentes para afundar meus dentes em um novo tipo de desafio: startups de tecnologia”, ela escreveu em seu blog. Segundo ela, ela passou meses dormindo nos sofás dos amigos nessa época, tinha poucos pertences e “sobrevivia à base de comida chinesa”.

Ela acabou conhecendo um jovem empresário jordaniano chamado Hussam Hammo, que havia sido aceito no programa de aceleração 500 Startups para lançar uma empresa de jogos chamada Tamatem.

Como uma mulher norte-americana com um conhecimento básico de árabe, Morgan era a pessoa perfeita para apresentar a empresa aos investidores, segundo Hammo. Ela disse a ele que era muçulmana praticante e jejuava durante o Ramadã.

Embora Hammo não pudesse pagá-la – o programa lhe deu apenas US$ 37 mil (cerca de R$ 185.700) e três meses para fazer a Tamatem decolar –, Morgan teve acesso a um grupo seleto de investidores e empreendedores sem os percalços de ter que abrir sua própria empresa.

Um mês depois de ingressar na aceleradora, ela apareceu em um vídeo promocional da 500 Startups, intitulado “Thrifty Startup”, uma paródia do sucesso do rapper Macklemore “Thrift Shop”. Na gravação, aspirantes a fundadores de startups falam sobre como vão “angariar alguns fundos” e estão “procurando alguns milhões”.

Um colega da 500 Startups, Talvinder Singh, que gravou grande parte do vídeo em um condomínio de Mountain View, disse que durante as filmagens Morgan de repente tirou a roupa e ficou só de calcinha e sutiã.

“Ninguém sabia como reagir”, disse ele à Forbes. “Para mim, foi um choque cultural.” Outro membro do grupo, que pediu para permanecer anônimo, acrescentou: “Ela fez questão de estar no centro [do vídeo]”.

A mudança para o Brasil

Depois que o programa foi concluído, em julho de 2013, com uma série de reuniões de investidores em Nova York, Hammo retornou à Bay Area com a intenção de continuar trabalhando no Tamatem com Morgan. Mas depois de dias tentando, sem sucesso, entrar em contato com ela, colegas informaram que ela havia se mudado para o Brasil e se casado com outro membro do 500 Startups.

O noivo era Bruno de Souza, que havia co-fundado um aplicativo que permitia aos usuários rastrear seus animais de estimação. “Foi incompreensível”, diz Hammo.

Em um e-mail para a Forbes, Souza disse que teve um “relacionamento intenso” com Morgan, que começou durante seus poucos dias em Nova York, mas acrescentou que o casamento tinha como objetivo principal garantir um visto para que ela pudesse ficar no Brasil e trabalhar em sua startup.

A relação terminou logo. Hidalgo conta que Morgan disse a ela em outubro de 2013 que foi forçada a “fugir” do Brasil porque o relacionamento havia se tornado “abusivo”. Em uma mensagem enviada a outro amigo e compartilhada com a Forbes, Morgan escreveu que voltou para a Califórnia depois de descobrir que Souza a estava “traindo e muitas outras coisas”.

Souza negou ser abusivo com Morgan, ou traí-la, e afirma que ela estava “deprimida”. Ele acreditava que a norte-americana havia inventado uma história para explicar por que estava deixando o Brasil. “Acho que ela desejava contar a história em que ela era uma sobrevivente”, disse ele. Registros judiciais obtidos pela Forbes mostram que Morgan pediu o divórcio em janeiro de 2014 e a separação foi finalizada oito meses depois.

“Este é Ilya”

No final de 2013, Hidalgo voou para São Francisco para visitar Morgan. Ela ainda não tinha dado início formal ao divórcio, mas já havia começado a namorar outra pessoa. Em um jantar, apresentou Hidalgo ao homem parado desajeitadamente ao lado dela.

“Este é Ilya”, Hidalgo lembrou Morgan dizendo. “Ele é um black-hat hacker.” A expressão é usada para descrever hackers que atuam em benefício próprio ou com má-intenções.

Com cabelos escuros e grossos e um sorriso vincado, Lichtenstein era visto por alguns de seus colegas como um pária com intenções escusas. “Acho que ele foi o primeiro cara que eu conheci que era tão estranho quanto Morgan”, disse um dos amigos dela.

Nascido em Rostov, na Rússia, e criado nos arredores de Chicago, na cidade de Glenview, Illinois, Lichtenstein se interessava por história e videogames. Um ex-colega de classe lembrou que, durante o ensino médio, Lichtenstein lhe pedia canetas emprestadas.

“Um dia ele me deu um pedaço de papel em branco e me pediu para assinar meu nome nele”, disse o colega. “Eu fiz isso, e então ele escreveu um contrato dizendo que eu havia consentido em dar minha caneta para ele.”

Era uma versão em pequena escala do tipo de sistema que moldaria sua carreira como um hacker autoproclamado. Em 2009, Lichtenstein se descreveu como um “enorme geek” que havia sido o “líder da equipe de matemática… e que até conseguiu namorar algumas garotas que estavam fora do meu alcance”.

Depois de se formar na Universidade de Wisconsin, Madison, em psicologia, ele se mudou para a Califórnia.

Como milhares de pessoas que chegaram ao Vale do Silício, Lichtenstein ficou imediatamente encantado. “Dois meses atrás, larguei o que estava fazendo, vendi tudo o que tinha, me despedi de meus amigos e namorada e me mudei do Centro-Oeste para São Francisco”, escreveu ele em setembro de 2010.

“Foi provavelmente a melhor decisão que já tomei. Não que eu estivesse infeliz antes, mas é tão… diferente aqui.”

Também como outros recém-chegados, ele parecia focado em ficar rico. “Tenho uma regra simples para lidar com emails recebidos”, escreveu ele em seu blog, influencehacks.com.

“Se você me enviar um email e eu não o conheço, preciso saber em cerca de 15 segundos se ler esse email vai me render mais dinheiro. Se, após 15 segundos de leitura, eu não souber disso, passo para o próximo email.”

Lichtenstein lançou uma enxurrada de empreendimentos online que incluíam um site de namoro e um site que vendia suplementos para (supostamente) aumentar a capacidade de raciocínio.

Ele também trabalhou em uma ferramenta de hacking para contornar a ferramenta de segurança captcha.

Seu projeto de maior sucesso foi a MixRank, uma startup de marketing com foco em dados, que decolou depois que ele participou em 2022 da Y Combinator (aceleradora que investe em empresas iniciantes) e recebeu financiamento do bilionário Mark Cuban.

Três de seus colegas do Y Combinator disseram à Forbes que ele era gentil, tímido e feliz em compartilhar sua experiência em marketing.

Lichtenstein conheceu Morgan em 2013, quando ele atuou como mentor da 500 Startups e ela estava trabalhando com Hammo na Tamatem. Durante uma palestra em junho daquele ano, ele falou sobre sua experiência de abrir uma empresa.

Hammo lembrou que Lichtenstein apareceu em Nova York durante o fim de semana do 500 Startups em julho de 2013 – o mesmo fim de semana em que Morgan e Souza começaram seu relacionamento – quando os empresários saíram para comemorar em um bar.

Hammo diz que Morgan parecia bêbada e que viu Lichtenstein tentando convencê-la a ir embora com ele. Quando Hammo perguntou o que estava acontecendo, Morgan disse que estava tudo bem e depois deixou o bar com Lichtenstein.

“Eu não tive um bom pressentimento sobre ele”, diz Hammo.

Uma startup para chamar de sua

Quando Morgan e Lichtenstein começaram a namorar, no final de 2013 – depois que ela voltou do Brasil –, Morgan deixou a casa que compartilhava com outras pessoas e foi morar no apartamento de Lichtenstein, que tinha vista para os arranha-céus de São Francisco.

Nas redes sociais, ela postou imagens deles voando de primeira classe para Hong Kong, Panamá e México.

Ela lançou sua própria startup, a Salesfolk, que oferecia campanhas de marketing por email a empresas, uma habilidade que Morgan desenvolveu depois de trabalhar tentando obter reuniões com investidores e consultores para a Tamatem.

Lichtenstein serviu como seu conselheiro. “Ela é uma força singular de copywriting, capaz de mudar a maneira como você pensa sobre a aquisição de clientes e elevar sua empresa para o próximo estágio de seu crescimento”, escreveu Lichtenstein no LinkedIn quando Morgan lançou a empresa em março de 2014. “Fale com ela agora.”

Morgan contratou Hidalgo como sua primeira funcionária. Trabalhando remotamente, Hidalgo recebia US$ 1.300,00 (cerca de R$ 6.530,00) por mês – um salário decente para o Cairo – para ajudar nas campanhas de email e organizar reuniões com clientes. Hidalgo diz que Morgan criou pelo menos dois perfis de funcionários fictícios no LinkedIn para dar a impressão de que a empresa era maior do que era.

Com o relacionamento de Morgan e Lichtenstein evoluindo, ela começou a usar o escritório da MixRank em São Francisco para trabalhar, lembrou um ex-funcionário da start-up que conta que ela consultava Lichtenstein sobre como administrar a Salesfolk.

Em uma manhã de 2015, Hidalgo recebeu um telefonema de Morgan, dizendo que havia consultado Lichtenstein e decidido demiti-la porque “os negócios estavam indo devagar”.

Hidalgo está entre vários amigos que cortaram o contato com Morgan nessa época.

Liechtenstein também começou a fugir de suas responsabilidades profissionais. Em maio de 2016, ele deixou abruptamente a MixRank. Foi desconcertante, disse um ex-funcionário, considerando a trajetória ascendente do negócio.

“Nós todos ficamos tentando descobrir por que ele tinha ido embora naquela época. Estávamos indo muito bem. Nossa receita estava crescendo muito rapidamente”, disse a pessoa. O outro cofundador da MixRank, Scott Milliken, não respondeu aos pedidos de comentários.

Mais tarde, ficaria claro que o casal estava envolvido em algo muito além do marketing digital.

O roubo de 119.754 bitcoins da Bitfinex

Em 2 de agosto de 2016, a Bitfinex, uma das maiores exchanges de criptomoedas do mundo, anunciou que havia sofrido uma violação de segurança e que “alguns de nossos usuários tiveram seus bitcoins roubados”. No mês seguinte, a exchange registrada nas Ilhas Virgens Britânicas descobriu que um hacker, ou hackers, havia roubado 119.754 bitcoins, então avaliados em cerca de US$ 66 milhões (R$ 331,57 milhões).

O Departamento de Justiça descobriu durante as investigações que o roubo foi realizado por meio de um recurso de segurança chamado multi-sig, que requer pelo menos duas partes para concluir qualquer transação: neste caso, a Bitfinex, o proprietário do bitcoin ou um provedor de carteira digital conhecido como BitGo,

A Bitfinex disse que era “impossível que nossos usuários perdessem seus bitcoins por ataques hackers a nós ou a roubos”. Mas Mike Belshe, CEO da BitGo, a fornecedora de carteiras da Bitfinex, afirmou no Twitter que a empresa não foi hackeada ou violada no incidente. A Bitfinex teve uma grande invasão em vários sistemas e usuários.” Belshe se recusou a esclarecer seu tuíte.

Em retrospectiva, parece que Morgan pode ter deixado um rastro de pistas. Em 2017, ela afirmou durante uma apresentação do Salesfolk que a empresa havia gerado US$ 64,7 milhões em receita em 2016, de acordo com os slides da apresentação vistos pela Forbes. No que pode ser uma coincidência, o valor é próximo ao dos bitcoins que foram roubados da Bifinex, que valiam US$ 66 milhões na época.

Para Hidalgo e outros ex-funcionários da Salesfolk que conversaram com a Forbes, esse número não era crível para uma empresa que parecia não ter tido mais de cinco funcionários e pagava salários entre US$ 10 mil (R$ 50.240) e US$ 30 mil (R$ 150.710).

Um ex-estagiário da startup disse à Forbes que eles foram demitidos repentinamente em 2016 porque a empresa não podia pagá-los. Dois anos depois, Morgan disse a uma exchange de criptomoedas que a Salesfolk ganhava “cerca de US$ 8.500,00 ou menos por contrato”, segundo os promotores.

Investigadores reconstruíram os movimentos de Morgan nessa época. Em 2019, ela postou nas redes sociais sua localização em um momento em que o casal supostamente estava lavando os bitcoins.

De acordo com uma declaração da Receita Federal norte-americana, Morgan indicou que estava na capital ucraniana de Kiev em agosto e setembro de 2019. Segundo os arquivos digitais apreendidos de Lichtenstein, as autoridades conseguiram combinar os números de rastreamento de “pacotes de fornecedores da darknet” enviados a eles da Rússia durante este período.

A essa altura, muitas das postagens em redes sociais de Morgan se concentravam em sua persona rapper, Razzlekhan, que publicava mensalmente vídeos musicais no YouTube.

“Mais destemida e sem vergonha do que nunca, ela está enfrentando todo mundo, desde grandes empresas de software até o setor de saúde e finanças”, seu site dizia.

Ainda alegando ser economista, Morgan começou a escrever na Forbes dos Estados Unidos como colaboradora, aludindo às suas habilidades em sua biografia: “Quando ela não está fazendo engenharia reversa nos mercados negros para pensar em maneiras melhores de combater fraudes e crimes cibernéticos, ela gosta de fazer rap e desenhar roupas de streetwear.”

À medida que o preço do bitcoin subia, os raps de Morgan se tornaram mais frequentes e ousados. Em uma música citada pelos promotores, ela diz: “Roubo sua senha com um golpe / todos os seus fundos transferidos”. Em outro, chamado de “Ameaça à sociedade”, ela se descreveu como “a rainha do catfishing”.

Lavando bitcoins roubados

Mas o tempo estava se esgotando para o casal. Sua ruína parece enraizada no espinhoso problema de como sacar um tesouro de bitcoins roubados – algo semelhante a vender um quadro de Matisse roubado. De acordo com o inquérito, Lichtenstein e Morgan precisaram de anos e várias transferências para supostamente lavar os bitcoins ilegais e se apropriar deles.

“Quanto mais você espalha os bitcoins, maior é a chance de você ser pego”, diz Galka, CEO da Elementus, à Forbes por email. “Eles provavelmente não tinham um plano para isso quando [supostamente] roubaram os fundos. Realmente não pensaram em tudo”.

Parecia que o casal também não estava vivendo como se tivesse acesso a bilhões de dólares. De acordo com os promotores, a pequena startup de criptomoedas de Lichtenstein, Endpass, recebeu um cheque de US$ 11 mil (cerca de R$ 55 mil) por meio do Paycheck Protection Program, o programa federal criado para proteger empregos nos primeiros dias da pandemia.

Apenas algumas semanas depois, os bitcoins ligados ao roubo foram usados ​​para comprar, entre outras coisas, um vale-presente de US$ 500 (R$ 2.500,00) do Walmart, que foi utilizado para fazer compras no nome de Morgan, de acordo com a declaração da Receita Federal norte-americana.

Lichtenstein e Morgan pareciam ser dois lados da mesma moeda. Vinculados pela inteligência e pelo amor, eles complementavam as habilidades um do outro. Quando os agentes federais invadiram seu apartamento em Wall Street em janeiro, encontraram passaportes falsos, telefones descartáveis, US$ 40 mil (R$ 201 mil) em dinheiro e evidências de que o casal planejava fugir para a Ucrânia ou para a Rússia.

Agora, Lichtenstein está em uma cela de prisão e Morgan está em prisão domiciliar. Uma lista de suas conquistas depois de escapar de uma cidade pequena dos Estados Unidos e antes de ser acusada ainda pode ser encontrada em sua página do LinkedIn. Elas incluem seu diploma da Universidade da Califórnia, ter frequentado a Universidade Americana do Cairo, a fundação da Salesfolk, os raps de Razzlekhan e ter escrito para a Forbes como colaboradora, entre outras coisas.

No topo da página, Morgan deixou uma reflexão. “Com palavras e software”, escreveu ela, “você pode escrever seu próprio destino”.