O xadrez geopolítico na Europa obrigou até as grandes potências a incrementar as reservas de energia gerada à base de combustíveis fósseis ou nuclear, o que encarece a matriz e dificulta o controle da inflação. Nessas economias, pouco acostumadas à turbulência, o cenário é de caos. Ainda é outono no Hemisfério Norte, mas o calendário para a implementação de soluções não é generoso, tampouco flexível: faltam menos de dois meses para o inverno europeu, quando o clima é mais rigoroso, e o período de luz natural cai para cinco horas no dia.
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O Brasil pode exercer um papel crucial no embate da União Europeia (UE) com a Rússia, sem sequer precisar rever sua posição de neutralidade em relação ao conflito no leste europeu. Está sob os holofotes globais por ser uma potência exportadora de energia, afirma o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), Nivalde de Castro. A abundância de matéria-prima renovável e a cadeia energética maduratornam o mercado estratégico para a produção do hidrogênio verde, promessa para a descarbonização das economias.
Internamente, o setor também se prepara para mudanças. Com a redução das barreiras para o ingresso de consumidores no mercado livre, ambiente em que a energia elétrica é negociada diretamente com fornecedores – dinâmica semelhante à do setor de telecomunicações –, o horizonte é de incremento da demanda por energias renováveis.
De acordo com o plano de expansão energética do Ministério de Minas e Energia, a capacidade instalada do mercado de energia livre e distribuída (de geração local ou descentralizada) deve chegar a 55 gigawatts (GW) até 2031, salto de 120%. O volume representa 20% da matriz projetada para o ano.
POTENCIAL VERDE
O hidrogênio só é considerado verde se tobtido em processos sem emissão de carbono, nas usinas de energia eólica, solar e de biomassa. Como o bloco europeu não tem condições de produzir esse tipo de hidrogênio para atender à própria demanda, está formando um mercado internacional de energia no qual países com áreas disponíveis, sol e vento são potenciais parceiros.
A corrida por esse mercado, que deve ultrapassar US$ 2,5 trilhões até 2050, é para abocanhar uma fatia generosa dos 20% do consumo global de energia que estarão concentrados no hidrogênio, conforme projeção do Hydrogen Council. Os investidores querem montar esse cavalo selado e elegeram o Brasil para explorar a próxima fronteira do mercado de energia. Os aportes já anunciados em projetos de hidrogênio verde no país somam mais de US$ 27 bilhões, 10% do total global.
Com previsão de início das operações a partir de 2025, nos contratos, concentrados em portos na região Nordeste, fala-se de geração de 1,4 mil empregos diretos e na produção de 16,1 milhões de toneladas de hidrogênio verde por ano e de 2,8 milhões de toneladas de amônia verde, que atenderiam principalmente ao mercado externo.
“Há perspectiva de cinco anos para geração de hidrogênio verde no Porto de Pecém, no Ceará, que é o projeto mais avançado no território nacional. Já os outros dependem de uma concentração de forças. Ainda não atingimos o ponto de não retorno, então os projetos podem enfrentar entraves”, avalia Hermano Pinto Junior, diretor do núcleo de energia e infraestrutura da Informa Markets. Todavia, o ponto central, lembra Nivalde de Castro, é que a Europa avance nos leilões de hidrogênio verde. Até lá, o país tem muita estrada (ou água) pela frente.
DESAFIO VERDE
O Brasil já é um país de energia limpa, o que o coloca em vantagem na corrida. A matriz nacional tem 80% de toda sua fonte vinda de energia renovável, contra 14% no mundo. “Temos um dos melhores ambientes de geração de energia renovável no mundo, com matérias-primas baratas para a produção de hidrogênio verde”, avalia Lucas Araripe, diretor de novos negócios da Casa dos Ventos, empresa de energias renováveis. A companhia estuda áreas nos portos para começar projetos de licenciamento e preparação para produzir hidrogênio e amônia para exportação e para o mercado doméstico.
O combustível responde por até 75% dos custos de produção do hidrogênio, mas a energia renovável do Brasil está em patamares de preços mais baixos no mercado internacional, o que garante a produção de energia verde competitiva. Com oferta alavancada e incentivos fiscais, desde 2018 a energia eólica brasileira é a mais barata. Já o preço da energia solar nacional teve uma queda de 95% (de US$ 359/MWh para US$ 17/MWh) entre 2009 e 2020, que se deu em parte pelo barateamento dos painéis fotovoltaicos.
O Brasil provou à Europa ser um parceiro economicamente mais vantajoso que países do Mediterrâneo, como Marrocos e Tunísia. O custo de produção energética nesses países é mais elevado, assim como a gestão de tráfego marítimo. Do nordeste brasileiro, são seis dias de navio até a Europa.
Faltam, no entanto, respostas para como exportar a energia. As alternativas disponíveis na indústria hoje são liquefazer o hidrogênio, um processo complexo, ou transformá-lo em amônia. O caminho mais provável, acreditam os especialistas, é o da geração de produtos verdes a partir dessa energia. De toda forma, ainda não há um desenho desse mercado: se os países exportadores produzirão a energia verde para que a produção aconteça fora ou se haverá um deslocamento da cadeia de suprimentos global para aproximar a produção eletrointensivas às fontes de energia.
“Avançamos com investimentos tímidos e atraso nas fontes de baixo impacto ambiental`, pegando carona na onda internacional. É o que acontece hoje com as eólicas offshore”, avalia André Flávio, diretor-executivo do setor de energia da EY. Neste ano, o Brasil caiu quatro posições (para 13º) no ranking global da consultoria que mede a atratividade dos países em energia renovável. Mesmo com desafios internos,
a retração se deu pelo cenário externo. “Com a corrida na Europa pela substituição de combustível fóssil, o investimento migrou para os mercados locais, já que não tivemos acelerador de renováveis nesse período.” A tendência, acredita, é que o país volte a avançar no índice, como fez nos últimos 20 anos. Por ora, a única certeza é a de que o Brasil não será um ponto isolado nesse mercado.
RAIO-X DA MATRIZ BRASILEIRA
O governo vem diminuindo barreiras para o mercado livre, em que a energia é hoje mais barata em relação ao mercado cativo. Em 2023, o piso cairá para 500 kW de consumo. A perspectiva de inclusão do consumidor varejista, no entanto, é para depois de 2024. Mas Castro e a equipe do Gesel acompanham o desenrolar do cenário com atenção. “O governo está estimulando a transição, mas talvez não esteja medindo a velocidade adequada para que não haja desequilíbrio. Há de se lembrar que a crise do apagão de 2001 foi em parte isto: privatização acelerada, liberalização do mercado e suspensão de investimentos do Estado”, avalia.
Nesse processo, as distribuidoras já não têm contratado muita energia no mercado regulado. Prova disso são os resultados do último leilão (A-5), para o qual se apresentaram apenas duas distribuidoras, e o certame A-6, cancelado pela ausência de demanda no mercado regulado.
André Flávio, da EY, enxerga que a entrada de novos consumidores no mercado livre deve fazer os preços se estabilizarem em um patamar superior. “Temos pesquisado o que vai pesar nessa escolha: a fonte verde ou a mais barata? Os estudos mostram que o consumidor tende a seguir com a mais barata”, revela. Ele vê uma curva ascendente para a matriz verde, mesmo que não haja adoção massiva no mercado livre.
No entanto, a fonte solar deve arrancar até 2031 e tomar o segundo lugar em capacidade instalada, com 16% da matriz. Eólica cairia para a quarta posição, com 11%, mas a projeção do governo não considera offshores. Por isso, o cenário futuro da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) é mais otimista: salto de 68% nos próximos anos, para mais de 37 GW até 2026.
Para a biomassa, a UTE Cidade do Livro estabeleceu um marco ao vencer o primeiro leilão de reserva de capacidade com um projeto verde. Voltada ao desenvolvimento de uma cadeia de fornecimento nacional, focada em impacto social, a usina terá capacidade de geração de 80 MW (sendo 10 MW para consumo próprio). A IBS Energy, autora da proposta, já tem planos para uma segunda unidade nesses mesmos moldes, mas questiona a priorização de políticas públicas para matrizes eólica e solar, beneficiadas por programas de incentivos nos últimos 10 anos. A margem para expansão da capacidade instalada do biogás, para
a Associação Brasileira de Biogás (ABiogás), é da ordem de 40 vezes o parque atual.
Sobre os leilões, o diretor de operações Murillo Galli defende: “caímos num limbo em que não existem políticas públicas para a energia gerada da biomassa. O preço da biomassa é mais alto que eólica e solar, mas fica competitivo no cenário do gás, em que perde em escala. Ainda assim, existem questões qualitativas e de segurança que não estão sendo consideradas nesses projetos”.