A moeda comum de Brasil e Argentina é uma má ideia e não vai funcionar

24 de janeiro de 2023
Vincent Mundy/Reuters

Trigo argentino: parceria comercial importante com o Brasil

A notícia caiu como uma bomba na segunda-feira (23). O jornal inglês Financial Times repercutiu declarações de autoridades argentinas de que Brasil e Argentina estavam preparando o lançamento de uma moeda comum, denominada “sur” (sul, em espanhol), a ser anunciada durante a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Argentina, em sua primeira viagem internacional.

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Durante a manhã, a preocupação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi deixar claro que a proposta não tem nada a ver com uma unificação monetária entre os dois países. Real e peso seguiriam existindo, com seus bancos centrais e suas políticas monetárias autônomas. A proposta visa apenas obter um instrumento que facilite as transações comerciais entre os dois países.

Comércio exterior

Por que uma moeda comum (e não única)? A principal função é facilitar as transações. Brasil e Argentina são parceiros comerciais relevantes. Em 2022, o saldo foi positivo para o Brasil em US$ 2,2 bilhões (R$ 11,3 bilhões), com o Brasil exportando US$ 15,3 bilhões e importando US$ 13,1 bilhões. Em termos absolutos, a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, perdendo apenas para China e Estados Unidos.

Essas transações podem ser processadas em dólares, e nem sempre a Argentina tem disponibilidade de moedas fortes. Ao usar uma moeda comum para processar as importações, exportações e demais transações financeiras entre os dois países, é possível incrementar os negócios sem pressionar as taxas de câmbio. Por exemplo, a Argentina poderá importar mais do Brasil sem que isso pressione as cotações do peso.

Porém, enquanto o Brasil segue comprando trigo, lácteos e hortifrutis em quantidade –  a Argentina representa a  maior pauta de importações do agro, com US$ 4,2 bilhões em 2022 –, a venda de produtos industriais para o vizinho ao sul vem perdendo espaço para a concorrência chinesa, cujos preços mais competitivos compensam as despesas de frete. Para o Brasil, ter um instrumento de facilite as exportações ajudaria a bloquear a invasão de produtos chineses.

Ideia antiga

Instalar uma moeda comum entre os dois países é extremamente difícil neste momento. Os dois países têm taxas de juros, de inflação e situações fiscais radicalmente diferentes, e uma moeda comum não se sustentaria devido a essas diferenças. Mesmo assim, a proposta não é nova.

Há mais de três décadas, em 1987, o então presidente brasileiro José Sarney e seu colega argentino, Raúl Alfonsín, criaram o gaúcho, para facilitar as transações entre os dois países. A ideia era evoluir para uma moeda única, na esteira das mudanças políticas. Ambos os países tinham derrubado suas ditaduras militares, e o espírito era de integrar as democracias.

O gaúcho, como era de se esperar, não deu certo. Tanto Brasil quanto Argentina ainda teriam um longo caminho até estabilizar seus preços. O Brasil só conseguiria superar a hiperinflação em 1994, com o Plano Real. E a Argentina tentou a dolarização em 1991, algo que deu fantasticamente errado dez anos depois.

Diferenças estruturais

Segundo Pedro Raffy Vartanian, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, já existe um sistema de troca direta de reais por pesos argentinos em operações de importação e exportação. Denominado Sistema de Pagamento em Moeda Local (SML), ele foi formalizado por Brasil e Argentina em 2008 e elimina a necessidade de conversão para dólares nas transações internacionais. O SML funciona para outros países, como Uruguai e Paraguai.

Vartanian avalia que é importante diferenciar a proposta de uma moeda comum da de uma moeda única. Uma moeda comum é uma “unidade de conta”, diz ele. “É um mecanismo que permite a realização de transações entre pessoas e países, pelo qual as moedas são convertidas para a realização da troca, mas cada país continua com sua própria moeda”, diz. Já uma moeda única, afirma, substitui as moedas nacionais. O melhor exemplo é o euro, que circula em todos os países da Europa que aderiram à moeda comum.

Para ele, o principal entrave é o estado da economia argentina, que está muito debilitada. “A Argentina acredita que resolverá seus problemas econômicos com a fórmula mágica da moeda única, mas isso não só é inviável como não resolveria os problemas estruturais argentinos.

Segundo o economista Roberto Dumas, estrategista-chefe do banco Voiter, é preciso que várias condições sejam atendidas. “É necessário que haja uma paridade cambial entre o peso e real, mas isso é muito difícil devido aos cenários econômicos díspares entre a Argentina e o Brasil”, diz ele. “Pode ser que isso ocorra daqui a 20 anos, quando os ciclos econômicos e os cenários fiscais dos dois países entrarem em uma convergência.”